Reportagem atualíssima e imperdível
A mais ampla e melhor reportagem já
publicada sobre o Supremo na imprensa brasileira — um feito do repórter
Luiz Maklouf Carvalho, publicado na revista piauí em agosto de 2010.
O Supremo, quosque tandem?
A indicação dos juízes, os pedidos de vistas, os conflitos de interesse, o ativismo e as disputas entre ministros – a agenda de dificuldades do STF
A indicação dos juízes, os pedidos de vistas, os conflitos de interesse, o ativismo e as disputas entre ministros – a agenda de dificuldades do STF
O desembargador Antonio Cezar Peluso queria virar ministro do Supremo
Tribunal Federal quando Fernando Henrique Cardoso estava na
Presidência. Amigos fiéis pelejaram pelo seu nome e o presidente gostava
dele, mas a vaga não foi sua. “O Peluso é bom e eu queria nomeá-lo,
mas a vez era de uma mulher”, disse Fernando Henrique.
A decisão foi mais de Ruth Cardoso do que dele. E a também
desembargadora (mas federal) Ellen Gracie, indicada e escorada por
Nelson Jobim, ganhou o posto. Quando o reinado tucano findou, Peluso
disse a amigos: “Acabou. Vou me aposentar como desembargador e
aproveitar a vida.”
Jamais imaginou que o petismo fosse buscar um conservador como ele. Mas
hoje lá está ele, na cadeira de presidente, com a alegria de um menino
esforçado que conseguiu chegar a primeiro da classe. Peluso não se
importa com a definição de “paciência zero”, que percorre o tribunal.
Se for acrescentada a expressão “com a burrice”, é capaz de aplaudir.
Também não se altera com observações sobre decisões atrapalhadas ou
incoerentes do Supremo, que recendem a insegurança jurídica.
“No Brasil, o mundo jurídico não reage à altura aos erros do Supremo”,
disse. “A maioria das críticas não tem pertinência, não avança no
conteúdo, o que seria fundamental para melhorar a qualidade. Nos
Estados Unidos, eles não perdoam. Há uma produção acadêmica com massa
crítica sobre as decisões da Suprema Corte.”
Aparentemente, ficou satisfeito com a observação de que é um dos poucos
ministros capazes de se meter em discussões complexas de improviso,
sem ler. Retrucou com uma citação de Fulton Sheen: “Quem se dirige aos
outros deve dar preferência em falar sem ler, porque não corre o risco
de perder a espontaneidade.” O Google informa que Fulton Sheen
(1895–1979) foi um arcebispo católico americano. Quem mais saberia
isso, e ainda mais de memória, senão o ministro Peluso?
Peluso teve um tio arcebispo, foi seminarista, acalentou o desejo de ser papa e nunca imaginou que outro que não FHC o levasse ao Supremo (Foto: Carlos Humberto / STF) |
Ele teve um tio arcebispo, com quem morou por muitos anos. Foi
seminarista por causa disso, e acalentou o desejo de ser papa. Mas
desistiu e em 1962 foi cursar Direito numa faculdade católica de Santos.
“Eu achava que comunista comia criancinha e apoiei os militares”,
disse. “Foi um erro do qual me arrependi.”
Peluso não tem nem mestrado nem
doutorado. Começou os dois, mas não os concluiu. No doutorado
inconcluso, seu orientador foi Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da
ditadura e juiz do Supremo. “Uma ótima pessoa”, é a sua opinião.
Peluso situa seu arrependimento do apoio à ditadura antes do Ato
Institucional nº 5. Gosta de contar sobre sua atuação pró-direitos
humanos em presídios abarrotados, quando era corregedor auxiliar do
Tribunal de Justiça de São Paulo. Disse que uma vez fez um relatório
“violentíssimo” contra o delegado Sérgio Fleury, o torturador, a quem
chamou de “famigerado”, sendo posteriormente obrigado a cortar o termo
por ordem superior.
Foi para o Supremo, como agradeceu no discurso de posse, por obra e
graça de Márcio Thomaz Bastos, e, claro, a concordância do presidente
Lula. Tem na casa fama de metódico, irritadiço e autoritário. Numa
entrevista, é reservado, irônico e, quando quer, bem-humorado. Gosta do
chamado samba de raiz – só de ouvir, esclareceu.
Não é de comentar os votos, mas se explicou no caso do processo contra
Antonio Palocci por quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo
dos Santos Costa. Não aceitou a denúncia porque a tipificação do crime
estava errada. “Não havia prova de que Palocci tinha mandado quebrar o
sigilo do caseiro, mas havia prova de que sabia que isso havia sido
feito, e não tomou providência, o que configura o crime de
prevaricação”, disse. “Como a denúncia não o criminalizava por isso, só
pude votar como votei.”
Peluso assumiu a presidência com 700 processos prontos para levar a
julgamento nas plenárias de quarta e quinta-feira. “É muita coisa”,
disse, embora seja menos de 10% dos processos em tramitação. “Precisamos
ser mais breves”, continuou, criticando as intervenções demoradas,
inclusive as suas (a leitura do seu voto pela extradição de Cesare
Battisti demorou cinco horas).
Admirador do sistema americano, no qual a deliberação não é pública,
gostaria que o Supremo adotasse uma forma colegiada de tomar decisões,
com os ministros conversando entre si antes dos julgamentos. A Corte
americana tem sessões públicas para os “hearings”, uma espécie de
sustentação oral dos advogados, mas muito mais interativo que no Supremo
brasileiro. Os juízes americanos, contudo, deliberam em sessões
fechadas e também por escrito, trocando entre eles memorandos que vão e
voltam, por meses. As sessões também são fechadas na Alemanha, na
Espanha, na Itália, na África do Sul e no Canadá.
“O processo de formação de opinião pode ser reservado de modo formal,
porque é assim informalmente, já que alguns ministros conversam a
respeito dos casos”, disse o presidente do Supremo. “O problema do
Brasil é a gente nunca saber o que a corte pensa. Saber isso traria
maior transparência e segurança jurídica.” Peluso sabe que há forte
resistência à colegialidade, especialmente da parte de Marco Aurélio
Mello. Mas acha que com paciência e habilidade poderá avançar.
Peluso precisará disso e de algo mais para concretizar duas bandeiras
que anunciou. A primeira é a redução das férias do Judiciário de
sessenta para trinta dias, uma heresia para quem se beneficia de dois
meses de folga. A outra é o aumento de salários do Supremo, uma heresia
para quem não trabalha lá.
“Você já sabe do que nós vamos falar”, disse Lula ao advogado-geral da
União, José Antonio Dias Toffoli. O assunto era a próxima vaga do
Supremo. Toffoli respondeu: “Eu sei do que nós vamos falar, presidente,
mas eu não vou aceitar porque o seu preferido, o do coração, não sou
eu.” Lula encerrou o assunto: “É, mas o Sig não quis, e vai ser você
mesmo.” Um abraço selou o convite e a concordância de Toffoli. Sig é o
apelido do advogado Sigmaringa Seixas, um dos amigos mais queridos do
presidente. Poderia ter ido para o Supremo desde a primeira levada
lulista – três de uma vez – mas nunca aceitou os convites. “Eu prefiro
advogar”, disse, em seu escritório, explicando o desapego.
De uns mais, de outros menos, Márcio Thomaz Bastos foi o avalista de
todos os oito ministros que Lula indicou e o Senado referendou. Para
quem reclama da qualidade da atual corte, ele diz: “O presidente Lula
quis fazer um Supremo arejado, mais aberto e voltado para a nação, ao
invés de um em fim de carreira, voltado para si próprio. Um Supremo
capaz de experimentar, com todos os riscos inerentes a isso, até o risco
de Brasília estranhar.” Deu um breque, pensou e continuou: “O
mecanismo de indicação é muito bom, desde que o Senado cumpra o seu
dever de escrutinar e investigar os indicados. É isso que faz funcionar
o sistema de pesos e contrapesos. Mas isso não tem existido,
infelizmente.”
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Mozart
Valadares Pires, acha que a forma atual de indicação “não atende aos
princípios republicanos”. A Associação elaborou uma proposta de emenda
constitucional para mudá-la que está tramitando no Congresso. Ela
estabelece a idade mínima de 45 anos de idade e vinte de atividade
jurídica. Os indicados comporão uma lista sêxtupla, elaborada pelos
ministros do tribunal, que será submetida à escolha do presidente da
República. O nome indicado terá que ser aprovado por três quintos dos
votos do Senado.
No gabinete ao qual ainda está se habituando, Toffoli recebe sem
gravata. Era o final de expediente, depois de uma sessão cansativa. Ele
tem uma cafeteira nova, que ele mesmo trouxe, mas isso não dispensa a
presença do garçom Manuel Nunes Barbosa. Na média, ele serve 120
cafezinhos por dia no gabinete do ministro mais jovem da corte, onde
cerca de quarenta funcionários dão expediente, fora os advogados que o
ministro costuma receber (com agenda anunciada na internet).
“É claro que o cargo me fez mudar”, disse o ministro mais jovem.
“Antes, numa advocacia com forte viés político, eu é quem tinha que
provar, correr atrás. Agora, são os outros que têm que provar a mim. É
algo mais recluso, mais retirado da sociedade e da vida. Aqui você tem
que se despir de preconceito, paixão e opções pessoais. Fácil não é, mas
me sinto maduro para a função.” Como nasceu e viveu num colegiado – é o
oitavo filho, de nove – o ministro acha que não está tendo maiores
dificuldades para se adaptar ao coletivo. “Quem chega aqui não precisa
provar nada para ninguém”, disse. “Aqui não tem bandido nem mau-caráter.
Há as vaidades, mas é só.”
Fernando Henrique Cardoso indicou três ministros. Um deles, Gilmar
Mendes – tal como Toffoli para Lula –, era seu advogado-geral da União.
“Esse Toffoli, que só vi uma vez na vida, o Senado tinha que tê-lo
investigado muito mais”, disse o ex-presidente. “Tinha que ter feito
isso porque ele foi advogado do PT, foi advogado pessoal do Lula, e é
muito moço, não tem títulos. Não estou dizendo que não pudesse ter
aprovado a indicação. Mas devia demonstrar para a opinião pública que,
pelo menos, ele tinha potencial para ser um bom ministro. Tenho uma boa
impressão dele, acho até que vai virar um bom juiz. Mas acho arriscado
nomear alguém que pode virar um bom juiz. É melhor botar alguém que já
seja.” Ao ser indicado, Toffoli tinha uma condenação em primeira
instância, da qual foi posteriormente absolvido.
Apesar de Lula ter indicado oito ministros, o Supremo lhe criou embaraços ao aceitar a denúncia dos implicados no mensalão |
Ainda que tenha indicado oito juízes, Lula nunca teve a maioria da
corte. Tanto que o Supremo lhe criou embaraços ao aceitar a denúncia dos
implicados no mensalão. E contrariou expressamente uma decisão do
ministro da Justiça quando deliberou que Cesare Battisti pode ser
extraditado. Tampouco se pode dizer que nele exista uma ala de esquerda e
outra de direita. Nem que haja uma clivagem entre conservadores,
liberais e progressistas, seja em matéria social, econômica ou de
costumes.
Nos Estados Unidos, a existência secular de dois campos bem definidos, o
republicano e o democrata, encontra expressão ideológica na Corte
Suprema. Lá, todo mundo sabe quem são os juízes conservadores e
liberais. No Brasil, a polarização entre PT e PSDB é recentíssima, não
teve projeção institucional – e ambos dependem da geleia geral
peemedebista. E mesmo que se admita que os dois partidos tenham uma
ideologia identificável, ainda assim é difícil discernir um do outro no
terreno dos princípios jurídicos.
A ausência de balizas é agravada pela irrelevância da jurisprudência no
Judiciário brasileiro. Uma decisão do Supremo não cria uma norma que
venha a servir de orientação no futuro. Com o desrespeito frequente ao
que foi previamente decidido, o tratamento de uma mesma questão, em
poucos anos, pode ser bastante diferente. Com isso, os juízes estão à
vontade para atuar individualmente.
“O Supremo é menos um colegiado e mais uma soma de individualidades, e
isso é ruim para a democracia”, disse Luís Roberto Barroso em sua casa,
no Lago Sul. Advogado com banca renomada, mestre pela Universidade
Yale, Barroso é um dos nomes cogitados pelo presidente Lula para
substituir Eros Grau, que se aposentou no mês passado. Pelo menos dois
ministros, Celso de Mello e Marco Aurélio, gostariam de tê-lo como
colega.
“As instituições devem ser preservadas, mesmo quando o seu desempenho
não corresponde ao ideal”, disse Barroso como preâmbulo para as suas
ideias de mudança. “O ideal seria julgar uns mil casos emblemáticos por
ano, com visibilidade, transparência e qualidade.” Pensa que
ex-ministros não deveriam voltar à ativa. “Ao final do mandato, o melhor
é escrever as memórias, ou ser professor”, disse. Advoga uma
“revolução da brevidade”, ou seja, que os votos sejam mais curtos.
Também acha que o voto do relator deveria circular entre os ministros
antes do julgamento em plenário, “para que todos possam preparar-se
melhor, inclusive os discordantes, o que evitaria a frequência de
pedidos de vistas.”
O pedido de vistas, no entender do ex-presidente Maurício Corrêa, “é o
drama pior, mais terrível, mais lamentável, do Supremo. Tem ministro lá
que está com processo desde que tomou posse”. Ele mostrou duas regras
do regimento, criadas na sua gestão, estabelecendo prazos para os
pedidos de vista e para a devolução das notas taquigráficas revisadas.
“Na minha época, os prazos eram respeitados”, disse. “O problema é que
eles relaxaram, ninguém cumpre.” Um outro ex, Ilmar Galvão, brincou: “O
pedido de vista está mais para vista grossa.”
Celso de Mello, o decano da casa, também acha exagerada a quantidade de
pedidos de vista e se queixa da demora dos colegas em trazer de volta
os processos. Mas não lhe venham com essa história de brevidade, de
falar menos. Entre as deferências regimentais ao decano figura a de ser o
último a falar. “Quando a sessão está no finalzinho e o Celso pede a
palavra, eu só falto chorar”, disse, brincando, Gilmar Mendes.
Mas é isso mesmo: os relatórios e votos de Mello costumam ser enormes, e
ele não tem a mais remota preocupação de que aquilo possa ou esteja
incomodando quem quer que seja. “Isso aqui é história, e a minha
obrigação é fazer o melhor possível”, disse, já perto da meia-noite, em
seu gabinete enorme no 6º andar do anexo ii.
Notívago a la José Serra, Mello conseguiu que um ascensorista fique à
disposição de seu gabinete madrugada afora. É que ele vira as noites
lá, com diversos funcionários. Costumava sair com o dia amanhecendo. Mas
agora, por ordens médicas, não passa das duas da manhã. O ministro
abusa da saúde. Além de ser louco pelos sanduíches do McDonald’s, toma
um café que parece uma borra, de tão grosso. Está tentando controlar as
duas manias.
“Nunca falei com Daniel Dantas, nem pessoalmente nem pelo telefone,
conheço-o de ver na tevê, como todo mundo”, disse o ministro Gilmar
Mendes na cabeceira da mesa de seis lugares no seu gabinete. Não fazia
nem um mês que deixara a presidência do Supremo. Andava distante dos
microfones da imprensa e mais calado nas sessões, mas disse se sentir
“muito bem, com a sensação do dever cumprido”. Tirante o ministro
Joaquim Barbosa, acha que a sua gestão contou com a aprovação dos
colegas, do mundo jurídico e da grande imprensa. Citou como exemplos os
editoriais elogiosos do Estado e da Folha de S.Paulo.
Duas semanas antes de deixar o cargo, Mendes fez um périplo por três
capitais do Nordeste num dia só. Visitou projetos sociais do Conselho
Nacional de Justiça, também presidido por ele. Um dos projetos que
incrementou foi o dos mutirões carcerários, que, segundo números do CNJ,
libertaram 20 mil presos em condições irregulares em todo o país.
“Sentimos que mandamos bem”, disse o ministro, tranquilo e sem sapatos,
no jatinho oficial. “Avançamos muito no processo eletrônico, que tem
diminuído bastante o acúmulo de processos. O STF hoje é o tribunal mais
respeitado do país. E evitamos um namoro explícito com o estado
policial. Havia um quadro explosivo que nos levava a um modelo em que a
polícia mandava no Ministério Público e em juízes da primeira
instância. Era preciso arrostar esses abusos. E eu tive medo de ter
medo.”
É aqui que entra o banqueiro Daniel Dantas, alvo da Operação
Satiagraha. Mendes mandou soltá-lo duas vezes, concedendo-lhe habeas
corpus quando o juiz Fausto de Sanctis quis manter o dono do Opportunity
na prisão. Mendes considerou que o juiz, erradamente, se subordinara
ao Ministério Público e ao delegado encarregado da investigação,
Protógenes Queiroz. De Sanctis não quis dar entrevista a respeito: “Por
impedimento legal não posso falar de fato concreto, as decisões falam
por si”, disse-me ele.
“Juiz é elemento de controle do inquérito, não é sócio da
investigação”, afirmou Gilmar Mendes, sobrevoando Salvador. Ele contou
os antecedentes de sua primeira decisão: “A Guio me ligou, dizendo que
podiam prender até a Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. O governo
estava de cócoras em relação aos abusos da polícia. Eu tinha que dar um
basta naquilo, fosse Daniel Dantas ou fosse qualquer um.” “Guio” é
Guiomar Mendes, esposa do ministro.
Agentes da Polícia Federal em ação na polêmica Operação Satiagraha (Foto: Ricardo Moraes/AP) |
Outro risco de estabelecimento de um “estado policial” surgiu, segundo
Mendes, quando a revista Veja publicou uma reportagem sustentando que
um telefonema de Mendes com o senador Demóstenes Torres havia sido
gravado ilegalmente, e apresentou como evidência a transcrição da
conversa. Com a certeza de que fora grampeado por um órgão do
Executivo, Mendes ligou para Fernando Henrique Cardoso. Eles são
amigos. Nos tempos de Gilmar na presidência, Fernando Henrique entrava
pela garagem do Supremo. “Foi só uma vez, na posse”, disse o
ex-presidente.
“Eu estava numa fazenda”, contou Fernando Henrique em São Paulo. “O
Gilmar estava indignado. Disse que ia reagir à altura, chamando às falas
o presidente Lula. Eu o incentivei a ir em frente.” Mendes foi. “Não
há mais como descer na escala da degradação institucional”, declarou
ele à imprensa. “Gravar clandestinamente os telefonemas do presidente
do STF é coisa de regime totalitário. É deplorável, ofensivo, indigno.”
No dia seguinte, uma delegação do STF integrada por Mendes, Ayres
Britto e Cezar Peluso foi ao Planalto sem ter sido convidada. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva os recebeu.
Perguntei ao ex-presidente se, numa situação semelhante, receberia a
comitiva. Fernando Henrique ajeitou-se na poltrona e respondeu: “Não sei
se teria aceitado aqueles termos. Talvez tivesse exigido uma reparação
pública antes, uma desculpa. Mas o Lula é de passar a mão na cabeça
dos aloprados e de todo mundo. Ele não é de confrontar. Ele só
confronta na retórica, o comportamento dele é o de um conciliador.”
Lula acha que esse foi um dos momentos de seu governo em que ele foi
mais adulto e mais ciente do seu papel institucional – e menos ele
próprio.
No encontro, os três juízes deram como certo que gente do Executivo
bisbilhotava a mais alta corte e o Congresso, e cobraram providências.
Enfático, o ministro Franklin Martins, da Comunicação Social, argumentou
que a denúncia do grampo não tinha comprovação porque o áudio não
aparecera. E disse que o governo não podia ser responsabilizado sem
provas. Os ministros mal reconheceram sua interlocução. Lula mais ouviu
do que falou. Dias depois, à guisa de reparação, mas sem explicitá-la,
determinou que o delegado Paulo Lacerda saísse da chefia da Agência
Brasileira de Inteligência.
“Não retiro uma vírgula do que disse”, falou Mendes no avião. “Eu e o
presidente Lula temos uma ótima relação.” A aproximação foi iniciada
pouco depois de Mendes assumir o comando da corte, quando se articulou
um jantar no Alvorada, junto com Nelson Jobim e Eros Grau. Depois de uns
uísques, o gelo foi quebrado e a conversa com o presidente fluiu. A
aproximação se consumou quando o Supremo, com o voto de Mendes, decidiu
que o ex-ministro Antonio Palocci não deveria sequer ser investigado
pela acusação de quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.
Numa conversa com assessores, o presidente disse então que Mendes era
“um juiz sem mesquinharia, que pensa no país e na governabilidade”.
A atitude de Mendes de ir ao Planalto cobrar providências se inscreve
numa tendência em alta nos últimos anos, a do ativismo jurídico. Ela é
produto das dimensões paquidérmicas assumidas pelos Estados
contemporâneos, em contrapartida à velocidade das comunicações e
reclamos da cidadania. Na prática, leva os tribunais a pressionarem
diretamente, e mesmo a exercerem funções de administradores públicos e
de legisladores. Com isso, tornam-se inevitáveis os atritos, de maior ou
menor monta, com o Executivo e o Congresso. Tornam-se correntes,
igualmente, aquilo que alguns juristas chamam de protagonismo (o
Judiciário se tornar sujeito da vida político-institucional) e
personalismo (juízes se tornarem quase celebridades, pois deixam de
falar apenas nos autos, como reza o formalismo).
O ativismo jurídico ocorreu quando o Supremo decidiu que, ao trocarem
de partido durante a legislatura, parlamentares perderão o mandato. Com
isso, buscou atenuar a troca de legendas no Congresso, que costumava
ocorrer logo após as eleições. Noutra imersão em águas do Legislativo, a
corte decidiu que, em caso de greves, o funcionalismo deve seguir a
legislação imposta aos trabalhadores do setor privado.
Gilmar Mendes foi protagonista e personalista na sua presidência. “O
presidente de um poder, como é o caso do Supremo, tem mais é que falar,
não nos autos, mas bem alto”, disse. Maria Tereza Sadek, professora de
ciência política da Universidade de São Paulo, concorda com a premissa:
“O conceito de que juiz só fala nos autos está ultrapassado no mundo
inteiro.” Mas não considera a questão tranquila: “O problema é saber
qual é o limite para a liturgia do cargo. O Gilmar não foi o primeiro
ativista do Supremo. Houve o Sepúlveda, e depois o Jobim. O Gilmar
extrapolou um pouco, eu critico isso, mas acho que ele é uma figura
pluridimensional, que fez uma revolução, principalmente no Conselho
Nacional de Justiça, e tem que ser respeitado por isso.”
O advogado Reginaldo de Castro, ex-presidente nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil, insurgiu-se contra a indicação de Gilmar Mendes
para o Supremo. E pediu que a Comissão de Constituição e Justiça do
Senado vetasse a indicação. Suas acusações não prosperaram. “Não quero
voltar a isso”, disse Castro em seu escritório, depois de acender uma
bagana de cigarro que esconde de si próprio, para ver se larga o vício.
“Mas tenho que reconhecer que ele fez uma grande gestão na presidência
do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça.” Mendes deu de ombros,
olimpicamente, quando falei dos que quiseram vetá-lo, como Castro e o
jurista Dalmo de Abreu Dallari.
Tirante que o ouvido esquerdo não está nas melhores condições, Dalmo
Dallari vai bem, obrigado, nos seus 78 anos. Tem um gato, dos grandes,
que arranha vigorosamente a perna da poltrona quando quer colo, que ele
dá. Na sala de sua casa, há um retrato no qual um jovem Lula posa ao
lado de um dos dez netos de Dallari. Em outra foto, o Lula de hoje
aparece com a sua filha Mônica. O jurista começou a entrevista com
quatro propostas para o Supremo.
Três delas têm seguidores: que o STF vire uma corte constitucional, que
os indicados sejam escolhidos preliminarmente por votação direta da
comunidade jurídica, e só depois pelo presidente e pelo Congresso, e que
os ministros tenham mandato de dez ou quinze anos. A quarta, que
considera tão ou mais importante que as outras, é singular: tirar o
Supremo de Brasília e levá-lo de volta ao Rio. “A proximidade com o
centro político é muito prejudicial”, disse o professor aposentado da
Universidade de São Paulo, fazendo cafuné no pescoço do bichano. “Na
Alemanha, a Corte Constitucional fica a muitos quilômetros de Berlim”,
exemplificou.
Dallari conheceu Gilmar Mendes quando este era advogado-geral da União e
auxiliava o ministro Nelson Jobim, da Justiça, em questões indígenas.
“Tive uma péssima impressão dele nas reuniões em que nos encontramos;
eu defendendo os índios, e ele desenvolvendo uma argumentação típica de
grileiro de luxo, de quem vê o índio como empecilho ao desenvolvimento
nacional”, disse. “Depois houve uma denúncia, da revista Época,
mostrando que ele, na Advocacia-Geral da União, contratava o seu
próprio estabelecimento de ensino para dar cursos a servidores de lá.
Para mim, isso é corrupção.”
Em maio de 2002, Dallari publicou na Folha de S.Paulo um artigo,
“Degradação do Judiciário”, com essas e outras acusações. “Se essa
indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar
que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o
combate à corrupção e a própria normalidade constitucional”, diz um dos
trechos. O argumento técnico era que Mendes não tinha reputação
ilibada, exigência constitucional para o posto.
Ainda à frente da Advocacia-Geral, Mendes pediu que o procurador-geral
da República o defendesse. O procurador entrou com uma ação penal
contra Dallari pelos crimes de injúria e difamação. Enquanto o processo
tramitava, o Senado aprovou a indicação de Mendes, com quinze votos
contrários, de um total de 72, um número bastante alto. O juiz federal
Sílvio Luís Ferreira da Rocha sentenciou que o artigo de Dallari se
enquadrava no adequado direito de crítica, sem configurar ofensa à
honra, e determinou o arquivamento do caso. Mendes não recorreu.
“Não retiro uma vírgula do que escrevi”, disse Dallari exibindo a
sentença. Ao contrário de Reginaldo de Castro, continua a criticar
Mendes: “A gestão dele como presidente foi muito negativa, com excesso
de personalismo. Em busca de autopromoção, agiu como um verdadeiro
inquisidor.”
Dalmo Dallari: “Não retiro uma vírgula do que escrevi” (Foto: Enamat.gov.br) |
Mesmo depois da viagem de três capitais nordestinas em um só dia, que
terminou de madrugada, Gilmar Mendes estava a postos na manhã seguinte,
um sábado, dando uma aula no Instituto Brasiliense de Direito Público. O
IDP é uma faculdade particular que fica numa área de 6 mil metros
quadrados da Asa Sul. Ela pertence a três professores: Inocêncio Coelho,
Paulo Branco e Gilmar Mendes. “É tudo perfeitamente constitucional”,
ele disse, acrescentando que constituiu os advogados Sepúlveda Pertence e
Sergio Bermudes a abrir processo contra publicações e jornalistas que
afirmaram ou insinuaram o contrário.
“Eu tenho que vir, porque muitos se matriculam por causa do meu nome”,
disse o ministro durante o intervalo. “Querem ter uma aula com o
presidente do Supremo.” A aula daquela manhã durou três horas e teve
quinze alunos como espectadores. De maneira profunda e didática, ele
falou sobre o controle de constitucionalidade, tema das suas
dissertações de mestrado e doutorado na Universidade de Münster, na
Alemanha. Deu vários exemplos citando casos do próprio Supremo.
Durante a presidência de Gilmar Mendes, Joaquim Falcão, professor de
direito constitucional da Fundação Getulio Vargas, foi juiz-conselheiro
do Conselho Nacional de Justiça. Um dos casos que lhe caiu nas mãos foi
uma representação contra o juiz Ari Ferreira de Queiroz, de Goiânia. O
juiz era sócio-proprietário do Instituto de Ensino e Pesquisa
Científica, uma escola semelhante à de Gilmar Mendes, embora mais
modesta. A representação visava impedir que Queiroz fosse,
simultaneamente, juiz e dono de uma faculdade.
No seu despacho, Joaquim Falcão afirmou que “nos Estados Unidos, o juiz
não pode emprestar o prestígio de seu cargo para promover interesse
privado”. E se perguntou: “Pode um juiz contribuir com o prestígio de
seu cargo, que é público, para beneficiar os interesses privados seus
e/ou de outros?”
Para responder, foi ao artigo 36, inciso I, da Lei Orgânica da
Magistratura: “É vedado ao magistrado exercer o comércio ou participar
de sociedade comercial, inclusive de economia mista, exceto como
acionista ou cotista.” O juiz Queiroz – ou o ministro Gilmar Mendes – se
enquadrariam nessa exceção. Mas não para Joaquim Falcão. Ele sustentou
que o juiz pode participar numa sociedade comercial “exclusivamente
como acionista ou cotista, ou seja, de forma não individualizável. De
modo que a pessoa física não se utilize do prestígio gozado pelo
magistrado como titular de um cargo público”. Portanto, um juiz pode
ser acionista e cotista numa sociedade comercial em que sua propriedade
esteja diluída e seja anônima. Quando o juiz é reconhecido como
proprietário individual de uma sociedade comercial, segundo Falcão, ele
“está claramente exercendo ato de empresa, já que o prestígio de seu
cargo está sendo utilizado para buscar lucros, contrariando, portanto,
as proibições legais”.
Na decisão, Falcão determinou “o imediato desligamento do magistrado de
sua qualidade de sócio-cotista e a desvinculação total da imagem do
magistrado e do Instituto”. O juiz Queiroz, de Goiânia, acatou a
decisão. Por que Falcão não levou a questão ao plenário do Conselho
Nacional de Justiça, presidido por um dos sócios proprietários do
Instituto Brasiliense de Direito Público? Porque Falcão achou que Gilmar
Mendes teria maioria dos votos a seu favor.
“Ministro, não me queira, não: é fria para o senhor”, disse, com forte
sotaque cearense, Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima para o ministro
Marco Aurélio Mello. Bacharel em direito, formada na mesma turma de
Gilmar Mendes, a doutora Guiomar era, naqueles meados de 1995, chefe de
gabinete de um ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Na época em
que esteve no mesmo tribunal, Marco Aurélio ficou bem impressionado com
a competência da doutora Guiomar e a convidou para trabalhar com ele
quando foi para o STF.
“Eu trabalho com seis coisas: amor, humor, garra, organização, método e
celeridade”, explicou Guiomar ao contar a história. Como era isso que
Marco Aurélio queria, ele não entendeu. E ela explicou: “É fria porque
eu tenho dois defeitos graves e um gravíssimo.” O ministro ouviu os
graves: “Eu fumo em recinto fechado” e “Sou insolente, questiono ordem e
vou bater de frente com o senhor.” Marco Aurélio relevou o primeiro e
elogiou o segundo. Guiomar expôs o defeito gravíssimo: “Eu gero
dependência.” Deve ser verdade, pois ela trabalhou com Marco Aurélio por
muitos anos.
Guiomar conheceu Gilmar Mendes no segundo semestre de 1975, quando se
transferiu da faculdade de direito de São João da Boa Vista, no
interior paulista, para a Universidade de Brasília. Tinha 23 anos e
estava grávida do terceiro filho de seu primeiro marido, um capitão
aviador da Força Aérea Brasileira. Mendes, quatro anos mais novo, também
estudava direito na UnB. Ficaram amigos, sem nenhuma sombra de
interesse sentimental. Formados, cada qual tocou sua vida. Mendes teve
uma breve passagem pelo Itamaraty, estudou na Alemanha, casou, teve dois
filhos, separou-se, serviu aos governos Collor e Fernando Henrique, e
virou ministro do Supremo. Guiomar teve mais quatro casamentos, e
outros dois filhos, passou em um concurso para a Advocacia-Geral da
União e foi assessora de dois ministros da ditadura, Petrônio Portella e
Ibrahim Abi-Ackel.
Um dia, ambos separados, Mendes propôs que a velha amizade virasse
namoro. “Não dá, tu é o Chico, meu irmão”, ela disse, referindo-se ao
ex-deputado federal Francisco Feitosa, seu irmão. O juiz continuou
insistindo, mas ela só aceitava convites para almoçar. Até que um dia,
em 2001, foram jantar na Academia de Tênis. Ele era advogado-geral da
União, no governo de Fernando Henrique, e ela estava no Supremo com
Marco Aurélio. “Quero não, Gil”, continuava a dizer. Mas o ministro já
se fizera gostar pelos filhos e pela mãe dela.
Ficaram noivos em 13 de agosto de 2002, dia do aniversário de Guiomar,
numa festa para poucos na casa dela. Um dos convidados foi Marco
Aurélio, que não queria perder a funcionária exemplar. Mas o noivo, que
há poucos meses se tornara ministro do Supremo, queria justamente
tirá-la da função para afastá-la de Marco Aurélio, enciumado que estava
do colega. Na festa, provocador emérito que é, Marco Aurélio fez um
discurso em que botou Guiomar nas nuvens, tantos foram os elogios. E o
encerrou com um seco: “Agora é com você, Gilmar.” Mendes fez o
discurso, mas, segundo a própria Guiomar, retirou-se da festa pouco
depois, irritado.
Trabalhar com Marco Aurélio tornou-se um problema na vida de Guiomar.
Mendes não aceitava. Muitas vezes, telefonava do carro oficial, na
frente do Supremo, no fim do expediente, e dizia: “Guio, estou aqui
embaixo te esperando, desce.” Ela explicava que ainda estava trabalhando
com Marco Aurélio. “Diz para ele te liberar porque eu estou
esperando.” “Era um inferno”, ela contou. “Quando eles discutiam nas
sessões, o que era frequente, sobrava para mim.”
Mendes deu então um ultimato: ou ela deixava de trabalhar com Marco
Aurélio, ou o noivado terminava ali. O noivado terminou. Tempos depois, o
ministro casou-se com uma advogada que fora sua aluna. Guiomar não se
casou.
Quatro anos depois, abatido por uma separação litigiosa que lhe custou,
conforme afirmou Guiomar, “alguns bois”, Mendes voltou à carga.
Enfrentou uma geleira de mágoa e indiferença. Como insistisse, com
recados, ela lhe mandou dizer, a sério, que consentiria em vê-lo – mas
só dali a vinte anos. O ministro ganhou uma aliada importante, Carminha,
que vem a ser a ministra Cármen Lúcia. Depois de muito esforço para
amansar Guiomar, a ministra conseguiu colocá-los frente a frente, numa
sala de sua casa, e pediu que se entendessem. Não foram longe naquele
dia, mas deram o primeiro passo. O segundo foi um presente romântico, e
caro, do ministro: um chalé à beira do Lago Norte, que lhe mostrou numa
noite enluarada.
A trilha sonora da reaproximação foi providenciada por um amigo de
ambos, o jornalista Márcio Chaer. Num dia em que Mendes tentava
desesperadamente reconquistar Guiomar, Chaer lembrou-se de uma música e a
indicou à amiga, que arrefeceu.
Acendendo seu décimo cigarro daquele dia, Guiomar interrompeu a
entrevista e foi colocar a música para tocar, alto. Ouviu-a inteira,
enlevada, e comentou que era linda. Antes que retomasse a história,
atendeu uma ligação do ministro José Antonio Dias Toffoli: “Oi, meu
amigo, estou com saudade de você. Vou. Vou mesmo. Obrigado.” Era um
convite para uma reunião que Toffoli daria em sua casa. Também ligou,
pela terceira vez, o advogado Sergio Bermudes. “Oi, meu irmão, meu amigo
querido”, atendeu Guiomar.
Eles se casaram em outubro de 2007. Moram em casas separadas, ambas no
Lago Sul. Guiomar dorme na dele, e volta todas as manhãs para a sua,
onde mora com dois filhos. A segurança do Supremo vigia as duas em tempo
integral. O marido é desligadíssimo, ela disse. Quando atende ao
telefone no quarto do casal, o ministro belisca castanhas salgadas que
ela deixa à disposição. “Uma vez eu substituí por ração de cachorro, e
ele comeu do mesmo jeito, tive que correr para não deixar ele engolir a
próxima”, Guiomar contou.
Não foi a única história de amor envolvendo juízes do Supremo. Houve o
caso de um sofá retirado do gabinete da sala privativa de um ministro
por ter sido palco de cenas abrasivas. E houve o romance entre o
ministro Francisco Rezek e uma filha do ministro Carlos Velloso, quando
ambos estavam na ativa. Velloso soube do caso, em casa, quando a filha
lhe contou: “Pai, eu e o Francisco estamos apaixonados e espero que o
senhor fique do meu lado.” O ministro pensou muito, e decidiu apoiar a
filha. Quando Rezek foi ao seu gabinete formalizar o pedido de
casamento, Velloso estava mais controlado. “Mas foi duro”, contou.
Guiomar Mendes era, até o ano passado, a secretária-geral do Tribunal
Superior Eleitoral, presidido pelo ministro Ayres Britto. Um e-mail
anônimo o informou que um funcionário de cargo de confiança era primo de
Gilmar Mendes, configurando nepotismo cruzado. Ayres Britto devolveu o
funcionário ao cargo de origem. Guiomar não gostou. Foi a Britto,
disse que o parentesco era de sexto grau e avisou: “O senhor é
conhecido por ser uma pessoa boa, mas isso não se faz, e estou indo
embora.” Um mês depois, foi-se.
“Minha ideia era viver o ócio com dignidade, só que o Sergio me
aperreou”, contou Guiomar, a essa altura no 15º cigarro do dia. Já era
noite e um novo telefonema interrompeu a entrevista. Era, por
coincidência, do Sergio que a aperreara, o Bermudes, no seu quarto
telefonema do dia. “Ô meu amigo, ô meu irmão”, repetiu Guiomar.
Encerrada a ligação, ela explicou: “Conheço o Sergio há muitos anos,
desde que entrei no STF. É o irmão mais velho que eu não tive e eu sou
louca por ele. Às vezes, ele brincava: ‘Dou 1 milhão pra você ir
trabalhar comigo.’ Quando me viu aposentada, me aperreou. Queria que eu
cuidasse da gestão do escritório dele de Brasília. Eu relutei, mas
acabei experimentando, por dois dias. Não vi muito o que fazer por lá e
coloquei o cargo à disposição. Ele insistiu, continuei mais uma semana,
organizei as coisas do meu jeito e resolvi ficar. Ele me paga,
líquidos, 14 mil reais por mês. Eu cuido da gestão do escritório. Não
advogo, mas talvez venha a advogar.”
Gilmar Mendes e Sergio Bermudes começaram pelo ódio. O primeiro, quando
advogado-geral da União, chamou o segundo – renomado professor de
direito e dono de respeitada banca cível no Rio – de “chicanista” em um
programa de televisão. Bermudes é dos que mandam cartas. A que enviou a
Mendes tinha os seguintes trechos:
Gilmar Mendes e Sergio Bermudes começaram pelo ódio. Depois, sem nunca terem tocado no assunto diretamente, a raiva virou amizade |
“Gilmar, você agrediu-me brutalmente; agrediu, virulentamente, os
processualistas; agrediu os advogados brasileiros e conspurcou a
dignidade do cargo que imerecidamente ocupa.
Insistindo em mostrar as patas, você, muito obviamente, questionou a minha seriedade profissional.
Minha esperança é que você deixe o cargo que ocupa e que não merece por
causa do seu desequilíbrio, do seu destempero, da sua leviandade, e
que abdique da sua propalada pretensão de alcançar o Supremo Tribunal
Federal, onde se requer, mais que um curso no exterior, reflexão e
serenidade, em vez do açodamento e da empáfia que você exibe.”
Perguntei a Sergio Bermudes como se haviam reconciliado. “Nunca falamos
sobre isso até hoje”, respondeu. Contou que no primeiro encontro que
tiveram, ambos palestrantes de um simpósio universitário,
cumprimentaram-se como se nada tivesse acontecido. Depois, ele mandou um
livro de presente; e Mendes mandou-lhe outro. A raiva virou amizade.
“O Gilmar e eu somos irmãos, nos falamos duas vezes por dia”, disse o
advogado. “A gente brinca, ri, sou advogado dele em algumas questões.
Somos dois homens de boa-fé e de caráter que podem suplantar uma
eventual divergência.” A sua opinião profissional sobre o outro também
melhorou: “Gilmar é o maior ministro que o STF já teve em todos os
tempos. Trouxe a corte para junto do povo. Nenhum ministro falou tanto
nem tão bem. Suas palavras fizeram o homem comum acreditar na Justiça.
Ele é o maior constitucionalista do Brasil.”
Mendes e Guiomar já se hospedaram nos apartamentos de Sergio Bermudes
no Rio, no Morro da Viúva, e em Nova York, na Quinta Avenida. Também
usam a sua Mercedes-Benz, com o motorista. Logo depois da solenidade de
transferência da presidência do Supremo para Cezar Peluso, Mendes e
Guiomar embarcaram em uma viagem de cinco dias a Buenos Aires – presente
de Sergio Bermudes, que os acompanhou.
Perguntei a Gilmar Mendes se não cogitara abdicar de julgar os
processos do escritório de Sergio Bermudes que tramitam pelo Supremo –
são dezenas, e ele é o relator de alguns. “De jeito nenhum”, ele
respondeu. “Nesse caso também teria que me declarar suspeito nos
processos do Ives Gandra, que escreveu livros comigo, e de outros
advogados que são meus amigos.” Mas nem pelo fato de sua mulher
trabalhar no escritório de Bermudes? “Isso não é motivo”, respondeu.
Citei uma frase que ouvi do advogado Reginaldo de Castro: “O Gilmar
dorme todo dia com embargos auriculares.” Mendes riu, desdenhoso.
Guiomar consultou o marido sobre a proposta de trabalho de Bermudes.
“Ele não viu qualquer problema, e não há qualquer problema”, ela disse.
“O ministro Marco Aurélio, por exemplo, não se declara suspeito quando a
causa é do escritório Ulhôa Canto, onde trabalha sua filha.” Depois de
uma tragada, complementou: “É verdade que o ministro Britto se declara
suspeito no caso do genro, desde quando ele era namorado da filha, e
que o Toffoli proibiu a namorada de atuar lá. Mas aí já é um exagero.”
Em sua sala na Fundação Getulio Vargas, de onde se tem uma vista
deslumbrante do Pão de Açúcar, Joaquim Falcão lembrou um episódio
ocorrido quando o presidente Barack Obama indicou Sonia Sotomayor para a
Suprema Corte. Encarregado de avaliar a candidata, o Senado pediu que
ela respondesse por escrito se haveria alguma situação em que teria
dificuldades em julgar. Sotomayor respondeu que se declararia impedida
em casos que envolvessem uma universidade, uma indústria e um escritório
de advocacia com os quais tivesse mantido relações profissionais.
O professor da FGV citou também o caso do advogado Laurence Tribe, um
dos que mais ganhou causas na Suprema Corte. Quando perguntaram a Tribe
por que ganhava tantas causas, ele explicou que tinha o maior banco de
dados sobre a vida de cada ministro, pessoal, profissional e política.
Essas informações lhe permitam prever com segurança os votos de cinco
juízes. Então, ele calibrava a arguição para os outros quatro. Com os
olhos no cartão-postal carioca, Falcão disse: “O Sergio Bermudes tem,
com certeza, o principal banco de dados sobre o Supremo.”
Falcão defendeu que o Judiciário enfrente sem pejo a questão, polêmica e
complexa, da imparcialidade. Ele acha que deve acabar o “nepotismo
processual”, o baseado nas relações entre os magistrados e os
advogados. “No nepotismo processual, o prejudicado é a outra parte,
aquela que não tem acesso às informações que uma relação de amizade e
parceria profissional possibilita.”
Demitido pela Universidade de Brasília, aposentado compulsoriamente, e
cassado pelo Ato Institucional nº 5, o professor e advogado Sepúlveda
Pertence passou por um período ruim durante a ditadura. Sergio Bermudes o
ajudou bastante, chegando a levar os filhos do amigo, Evandro e
Eduardo, para morar consigo.
Com o fim do regime militar, Pertence foi nomeado ministro do Supremo,
onde ficou dezoito anos. Evandro e Eduardo foram trabalhar com Sergio
Bermudes. Quando casos do escritório chegavam ao tribunal, apesar de
nenhuma lei ou regra obrigá-lo, ele se declarava suspeito e não os
julgava. “Eu, o Nelson Jobim, o Ilmar Galvão e o Velloso tínhamos essa
prática, que era exercida com discrição”, disse Pertence em Brasília, no
escritório de Sergio Bermudes, onde ganhava como consultor 50 mil
reais por mês, mais um percentual sobre os casos em que atuava. Num
deles, uma sustentação oral no Superior Tribunal de Justiça, ganhou 4
milhões de reais. No começo de agosto, Pertence abriu em sociedade com
os filhos seu próprio escritório.
Foi com Sepúlveda Pertence que o Supremo começou a sair do casulo,
adquiriu presença pública e deu passos modernizantes, como a
informatização. Entraram para os anais suas contendas com outro baluarte
da casa, o conservador Moreira Alves. “Diante desse funk que vejo
hoje, as minhas brigas com o Moreira parecem minuetos”, disse ele.
Sepúlveda aposentou-se do Supremo três meses antes da data limite,
novembro de 2007, quando completaria 70 anos. Como ele defendeu Lula
quando era sindicalista, e é amigo do presidente, correu nos meios
jurídicos que se aposentou antes para não se posicionar sobre o caso do
“mensalão”, que envolvia o PT.
Mas isso não é verdade. Pertence saiu antes da data por cansaço e a
pedido de Sergio Bermudes, um dos articuladores da indicação de Carlos
Alberto Menezes Direito para o Supremo. Se fosse esperar o ministro sair
na data devida, Direito teria feito aniversário (em 8 de setembro) e
atingido a idade proibitiva para a indicação, 65 anos.
Numa conversa com o presidente, no começo de 2006, Lula perguntou a
Pertence: “E aí, Zé Paulo, quem vai para a tua vaga?” O juiz citou o
nome do constitucionalista Luís Roberto Barroso e o da prima distante,
Cármen Lúcia. Mas Bermudes pediu por Menezes Direito. Nelson Jobim
também o apoiou e Márcio Thomaz Bastos concordou com o pleito.
“O motivo da minha saída foi fazer uma homenagem ao Menezes Direito e a
todos que patrocinaram a sua candidatura”, disse Pertence. “Ele não
era o meu perfil, não seria o meu candidato, mas tinha excelentes
relações pessoais. Eu vou sacrificar o sonho de um sujeito por causa de
mais dia ou menos dia? Não achei que era justo, e saí.”
Filhos advogados é um tema delicado no Supremo e nos outros tribunais
superiores. Dos ministros que já saíram, são mais conhecidos os casos
dos filhos de Nelson Jobim, Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão, Carlos
Velloso e Eros Grau. A praxe era pedir suspeição. Da composição atual,
além de Marco Aurélio, há a filha da ministra Ellen Gracie.
Joaquim Barbosa entende que a suspeição não é suficiente. “Deveria ser
simplesmente proibido até o parentesco de terceiro grau”, disse-me ele
durante um café numa padaria chique de Higienópolis, em São Paulo. No
caso de esposa, como Guiomar, que a lei não proíbe, Barbosa acha que
Mendes deveria declarar-se suspeito.
Barbosa não esconde que detesta Sergio Bermudes e o casal Mendes. A
recíproca é verdadeira. O advogado o considera “o pior ministro da
história do Supremo”. Bermudes contou, às gargalhadas, que ouviu de um
colega a “explicação verdadeira” para as dores de coluna de Joaquim
Barbosa: “Ele quis virar bípede.” Para Guiomar Mendes, “o problema desse
cabra é que ele é preguiçoso, preguiçoso de dar dó”. Mendes endossou o
“preguiçoso” e acrescentou um “despreparado”.
Joaquim Barbosa não deixou por menos. Disse que Gilmar Mendes é
“violento, atrabiliário e aparelhou o Supremo para seus interesses
monetários e partidários”. Os dois sequer se cumprimentam. “O mais
interessante é que nós fomos amigos por trinta anos, desde os tempos da
faculdade”, contou Barbosa. Ele visitou Mendes na Alemanha, e até
comprou um carro dele.
Joaquim Barbosa sabe que Mendes é um dos que divulgam uma história que o
irrita muito – a de que não foi ele quem escreveu o seu voto como
relator do mensalão, e sim Salise Sanchotene, à época sua juíza
auxiliar. O ministro nega a história.
Barbosa chegou à padaria de Higienópolis com uma sacola verde de pano.
Tirou de dentro uma almofada estampada sem muito enchimento, colocou-a
na base da cadeira e sentou-se. Não reclamou de dor durante os 150
minutos do primeiro encontro, nem durante os 180 do segundo. “Estou
achando que o tratamento está dando certo”, disse.
Fazia quatro semanas que estava hospedado num hotel ali perto, durante
os dois meses de licença médica que tirou para cuidar da coluna. “Eu
entrei no Supremo sem problema nenhum, era um atleta, jogava futebol,
vôlei de praia”, contou. Vestido esportivamente – tênis, jeans, camisa
de malha e casaco – o ministro estava com ótima aparência.
Em agosto de 2007, aproximando-se o julgamento do mensalão, caso do
qual era relator, as dores aumentaram. “Não tinha nenhuma condição de
proferir aquele voto sentado, pedi um púlpito, e o proferi em pé”,
lembrou. “Foram 35 horas de julgamento, durante uma semana.”
O ministro não gosta de perguntas sobre a doença. Desconfia que Gilmar
Mendes espalha que ele exagera. A doença tem nome? “Lombalgia crônica,
com dor extremamente forte na L5-S1”, respondeu, falando de vértebras
próximas ao cóccix. “Ela se espalha por toda a região glútea entre dez e
quinze minutos depois que eu sento.”
Não foi a primeira vez que o ministro licenciou-se para tratamento, mas
foi a primeira que tirou o benefício por um período tão grande, e,
segundo ele próprio, inédito na casa. “Eu fico até chateado, porque
sobrecarrega os demais”, disse. “Mas fazer um tratamento concentrado é o
único jeito de curar”, afirmou. Lembrado que o ministro Celso de Mello
também tem problemas sérios de coluna – está usando até cinta, e
também fica no senta-levanta –, e nem por isso licenciou-se por tanto
tempo, Barbosa comentou: “O ministro Celso está cometendo o mesmo erro
que eu já cometi.”
Ele recebera naqueles dias um telefonema de Eros Grau, convidando-o
para uma visita à sua casa. “Irei”, disse-me Barbosa. “Gosto do ministro
Eros.” Os dois protagonizaram, no entanto, uma briga tremenda. Foi em
agosto de 2008, quando ambos estavam em temporada no Tribunal Superior
Eleitoral. Durante uma sessão, Grau enviou um e-mail ao colega dizendo
que havia concedido um habeas corpus para o advogado Humberto Braz,
ligado ao banqueiro Daniel Dantas. Barbosa perguntou, na resposta, se
Grau estava “louco” para soltar um acusado de tentativa de suborno de um
delegado da Polícia Federal. No intervalo da sessão, olharam-se feio.
Grau disse, “com fingida exaltação”, segundo o relato de Barbosa, algo
como “Olhe, não me chame de louco”. E ficou nisso.
No dia seguinte, no salão privativo de lanches do Supremo, Grau disse
que o comentário do dia dos jornais era a liminar de Barbosa dando o
direito de Daniel Dantas ficar calado na Comissão Parlamentar de
Inquérito. Ou seja, Barbosa estava mais malfalado do que ele, Grau, que
soltara Humberto Braz. “Mas que bobagem é essa, ministro Eros?”, reagiu
Barbosa. Grau começou a se alterar, e o colega o cortou: “Você é mesmo
um babaca, um velho patético, é tão ridículo que quer ir para a
Academia Brasileira de Letras. Aprende primeiro a escrever!”
Barbosa também lembrou o bate-boca, em abril de 2009 – que até hoje é
hit no YouTube – no qual disse em plenário a Gilmar Mendes: “Vossa
Excelência não está falando com os seus capangas no Mato Grosso.”
Explicou-me que a frase foi uma reação a “um ato de racismo. Ele quis me
humilhar. Foi como se dissesse que eu não contava nada ali, tipo ‘você
é negro, fique no seu lugar’”. Depois da discussão, os ministros Celso
de Mello e Ayres Britto foram ao gabinete de Barbosa pedir que se
retratasse. “Recusei”, contou ele. Grau e Mendes não quiseram rememorar
as brigas. “Os problemas foram superados”, disse Grau. “Se você tivesse
as dores que ele tem, implicaria até com pai e mãe.”
Joaquim Barbosa nasceu em uma família modesta. Concluir a faculdade de
direito foi uma conquista para ele, que era arrimo de família. Graças a
um concurso, tornou-se funcionário do Itamaraty, serviu por seis meses
na embaixada brasileira na Finlândia e, na volta, tentou entrar para o
corpo diplomático. Passou em todos os exames, mas foi reprovado na
prova oral, segundo ele “por puro preconceito”. Fez um doutorado na
Universidade de Paris, com tese sobre o Supremo Tribunal Federal (lá
publicada, mas nunca traduzida para o português por desinteresse
assumido do autor) e deu aulas, como professor visitante, em duas
universidades americanas.
Pouco depois de ser eleito deputado federal pelo PT, em 2002, o
advogado Luiz Eduardo Greenhalgh foi ao escritório de Márcio Thomaz
Bastos, já sacramentado ministro da Justiça e em vias de tomar posse.
Dizendo que falava em nome do presidente, Bastos lhe perguntou se queria
ser ministro do Supremo Tribunal Federal. “Não quero, prefiro exercer o
mandato e, sendo possível, ser o presidente da Comissão de
Constituição e Justiça”, respondeu.
Greenhalgh foi um dos primeiros a ouvir Lula falar de Joaquim Barbosa.
Estavam num avião, com dona Marisa e Antonio Palocci. “Vou indicar um
negro para o Supremo”, disse Lula. “Se for só por ser negro, não é uma
boa”, retrucou o advogado. Lula perguntou-lhe se conhecia Barbosa, que
fora indicado por frei Betto. Não conhecia, mas foi investigar. Voltou
ao presidente dias depois e contou que, numa briga de casal, Barbosa
batera na mulher, ela prestara queixa na polícia e o caso rendera um
processo. “As feministas do PT não vão gostar nada disso”, disse
Greenhalgh ao presidente.
Greenhalgh foi um dos primeiros a ouvir Lula falar de Joaquim Barbosa: “Vou indicar um negro para o Supremo” (Foto: STF) |
Lula lhe respondeu que já sabia da história e o problema fora
contornado. Por intermédio de Thomaz Bastos, soube que a ex-mulher de
Barbosa escrevera uma carta apaziguadora, atribuindo a briga que a
levara à polícia a divergências naturais de um casal. Ao convidar
Barbosa a integrar o Supremo, o presidente lhe disse: “A única restrição
ao seu nome veio do Greenhalgh.” O advogado não gostou da história.
“Lula queimou o meu filme com o Joaquim”, disse. “E o Joaquim só
complicou o governo, como se viu no caso do mensalão. Bem feito!”
Na padaria, o ministro contou que já estava separado da mulher, mas
viviam brigando pela guarda do filho. Numa discussão mais séria, ele
puxou a criança do colo dela, ela teria reagido. “Ambos perdemos a
cabeça”, disse. O boletim de ocorrência virou um processo. No Ministério
Público Federal, onde Barbosa trabalhava, o parecer foi dado pelo
procurador Cláudio Fonteles, mais tarde procurador-geral da República.
Ele propôs o arquivamento, que foi aceito pela Justiça. “Não havia nada
além de uma briga de casal perfeitamente compreensível”, disse o
procurador, hoje aposentado, na sua casa do Lago Sul.
Na sabatina do Senado, a petista Serys Slhessarenko perguntou a Barbosa
sobre a desavença com a mulher. Ele respondeu que era um fato
superado, que envolveu a disputa pela guarda de um filho. A ex-mulher e o
filho estavam presentes à sessão.
O primeiro palanque no qual Peluso subiu, horas depois de eleito
presidente, em 10 de março, foi numa festa do site Consultor Jurídico, o
Conjur. O palanque foi montado no salão principal do Supremo para
comemorar o lançamento da edição de 2010 do Anuário da Justiça,
publicado pelo site e pela Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap.
Mendes, Celso de Mello, Toffoli, Britto e Lewandowski estavam no tablado
de honra com Peluso. Marco Aurélio circulou pelo salão, em meio a
cerca de 300 pessoas, entre desembargadores, juízes, promotores e
advogados de Brasília, do Rio e de São Paulo.
O Anuário é uma revista grossa que é produzida a um custo de cerca de
400 mil reais, bancados pela Fundação Armando Álvares Penteado. A
tiragem é de 20 mil exemplares, dos quais 12 mil são distribuídos pela
Faap em gabinetes de ministros, parlamentares, governadores e prefeitos.
Ele funciona como um quem-é-quem do Judiciário, entremeado de anúncios
de escritórios de advocacia. “O Anuário dá uma contribuição decisiva
para conhecer o Poder Judiciário brasileiro”, disse Gilmar Mendes no seu
discurso. “É jornalismo judicial especializado.”
O dono do Conjur e editor do Anuário é o jornalista Márcio Chaer,
proprietário também de uma assessoria de imprensa, a Original 123. As
empresas estão instaladas numa casa de três andares na Vila Madalena, em
São Paulo. O site faz uma cobertura intensa e extensa dos eventos e
decisões do Poder Judiciário. Chaer é amigo de Guiomar e Gilmar Mendes.
Troca e-mails e telefonemas amiúde com o juiz.
A Faap responde a condenações e processos por crimes contra a ordem
tributária e o sistema financeiro. Alguns desses processos estão no
Supremo. A pessoa jurídica do Conjur, a Dublê Editorial, também tem
processos tramitando no tribunal. “Não vejo problema nenhum de lançar o
Anuário no Supremo”, disse Mendes. O primeiro lançamento foi feito em
2007, quando a presidente era a ministra Ellen Gracie. Ela se declara
suspeita quando recebe processos que envolvam a Faap. Joaquim Barbosa
acha “um escândalo” que o Anuário seja lançado no Supremo.
Chaer também não vê problemas: “O presidente da República não visita os
jornais? É a mesma coisa. Além do mais, todo tribunal lança livros, e
até a Suprema Corte tem uma livraria”, disse, mostrando um volume que
comprou lá.
O professor de direito Conrado Hübner Mendes, doutor em ciência
política pela Universidade de São Paulo e autor do livro Controle de
Constitucionalidade e Democracia, tem outra opinião: “O Anuário pode até
produzir informações de interesse público, mas não é isso que está em
questão. Uma empresa privada não deveria ter o privilégio de ter seu
produto promovido dentro do próprio tribunal. A integridade das
instituições depende da separação entre o público e o privado.”
Em boa parte, os clientes da assessoria Original 123 são escritórios de
advocacia. Teriam contratado a empresa pelo fato de Chaer ser amigo de
Mendes e lançar o Anuário no Supremo? “De forma alguma, esses
escritórios nem atuam no Supremo”, respondeu. E ligou em seguida para um
funcionário da Original. “Quantos dos nossos clientes atuam no
Supremo?”, perguntou. “Praticamente todos”, respondeu o funcionário.
“Mas isso não quer dizer absolutamente nada”, esclareceu Chaer.
Quando era ministro da Justiça, Thomaz Bastos perguntou a Manuel Alceu
Affonso Ferreira, um dos advogados mais respeitados de São Paulo, se
queria ser ministro do Superior Tribunal de Justiça. Ferreira declinou.
“Se tivesse vindo um convite para o STF, muito me envaideceria, mas
também não aceitaria”, disse ele no seu escritório. “Não aceitaria
porque jamais me submeteria a peregrinações prévias por gabinetes
executivos e legislativos, em busca de apoios políticos. Digo isso sem
reprovar aqueles que o fazem, ou fizeram – afinal, no mundo real,
infelizmente, essa é a regra do jogo. A procura dos tais apoios, além
de avessa à minha natureza, não me parece compatível com a
independência entre os poderes e a dignidade do cargo.”
Manuel Alceu considera que num caso recente, de princípio, o Supremo
teve uma atitude decepcionante. No ano passado, ele arguiu a
inconstitucionalidade da censura a que O Estado de S. Paulo vinha sendo
submetido há meses. Perdeu por 6 a 3. “Apesar do bálsamo dos votos dos
ministros Ayres Britto, Celso de Mello e Cármen Lúcia, fiquei
profundamente decepcionado com a decisão”, disse. “A petição foi
rejeitada majoritariamente por tecnicalidades processuais equivocadas.” E
voltou à mítica cena do ministro Adauto Lúcio Cardoso que, protestando
por uma decisão favorável à censura da ditadura, teria tirado a toga e
a arremessado longe. “A lembrança da heroica atitude do ministro
Adauto, tomada em tempos autoritários, convencia-me de que agora, em
ambiente democrático, se poria fim à arbitrariedade que vitimou e
continua a vitimar o jornal paulista. Mas me enganei.”
Conhecido pela linguagem poética com que tempera seus votos, Ayres
Britto é dos ministros que nunca esquecem que seis câmeras de televisão
captam tudo o que acontece nas sessões plenárias. Talvez perca nisso
apenas para o ministro Marco Aurélio, quase um profissional. Britto
também é bom em elaborar frases com grande chance de repercutir nos
jornais no dia seguinte. A última que fez sucesso, no julgamento do
habeas corpus do governador José Roberto Arruda foi: “Infelizmente, há
quem chegue às maiores alturas para cometer as maiores baixezas.”
“Os ministros são figuras midiáticas e têm que saber administrar essa
notoriedade”, ele disse. “Eu não me sinto estrela, nem pop star, e nem
assediado. Encaro com a maior naturalidade. Se me pedirem para tirar dez
fotos, eu tiro as dez. Os ministros não são apenas julgadores, eles
têm satisfações a dar ao público. É um dever se comunicar, desde que
esse contato não resvale para o vedetismo e o culto da personalidade.” A
última frase é um recado é para Gilmar Mendes? “Há um de nós que fala
demais”, respondeu Ayres Britto, e foi em frente: “O Gilmar é
agressivo, rude, provocativo. Usa uma linguagem que ofende as pessoas. E
não há necessidade disso. Dá para combinar leveza e firmeza.”
Tomado por um espírito de crítica republicana, com a melhor das intenções, ele fez uma análise emocional do Supremo:
O que eu vejo aqui é certa competição surda, enrustida, latente, uma
competitividade não assumida, que não tem sentido e é absurda. O Supremo
não está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez de
alma. Aqui e ali, um ou outro ministro precisa do confronto pessoal e
da disputa de espaço para demarcar seu campo. Isso é meio mórbido. Quem
chega a ministro do Supremo tem uma oportunidade tão maravilhosa de
servir ao país que não tem o direito ao mau humor, quanto mais de viver
às turras com os colegas, disputando espaços. Isso é absolutamente
infantil.
Luiz Maklouf Carvalho
Revista Piauí | agosto 2010
Revista Piauí | agosto 2010
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