A chanceler Ângela Merkel subiu no
domingo, dia 22, no palco da sede de seu partido, a União Democrata
Cristã (CDU), em Berlim, após ser confirmada no cargo para um terceiro
mandato seguido. Embora tenha assegurado o cargo, Merkel não obteve a
maioria absoluta no Bundestag, o Parlamento alemão, e terá de fazer
alianças. Já pensou se fosse o Hugo Chavez ou qualquer outro candidato
progressista da América Latina? Iria faltar adjetivos para a “grande
mídia” detonar a eleição.
Uma pessoa de meus conhecimentos aqui na Alemanha me confessou que,
eleitora fiel dos Verdes há décadas, desta vez pretendia votar na CDU,
ou melhor, na chanceler Ângela Merkel. Na última hora recuou, porque os
Verdes estavam indo mal nas pesquisas de intenção de voto. Mas minha
intuição, confirmada no noticiário da segunda-feira, dia 23, o day after
da eleição de domingo, dia 22, foi a de que milhares de tradicionais
eleitores dos Verdes não recuariam. E assim, parece, aconteceu. A
chanceler, uma política extremamente habilidosa e convincente, agiu como
uma esponja, puxando para si votos de quase todo o espectro político
alemão.
Mas se isto representou um perigo para seus adversários, foi mortal para
seu aliado, o FDP, sempre apresentado como business friendly, o que,
traduzindo livremente, significa “amigo do mercado”. Segundo a revista
Der Spiegel, citando institutos de pesquisa, Ângela Merkel e sua CDU/CSU
literalmente “chuparam” 2,21 milhões de votos do FDP, além de terem
ganho o voto de 1,25 milhão de eleitores que tradicionalmente não votam
(o voto não é obrigatório na Alemanha).
Além disto o FDP perdeu 450 mil votos para o novo partido Alternative
für Deutschland, AfD, definido como “anti-Europa”, defendendo que os
países endividados, como Grécia, Portugal e outros, saiam da União
Europeia ou pelo menos da Zona do Euro e só voltem depois de terem suas
economias saneadas. Como resultado, o FDP estará fora do Bundestag pela
primeira vez desde o fim da Segunda Guerra, por não atingir a cláusula
de barreira, 5% dos votos. Ficou com 4,8% (contra 14,6% em 2009). O
clima em sua sede, no domingo, era de velório ou missa fúnebre de corpo
presente.
Já o AfD comemorava seu resultado, embora também tenha ficado fora do
Bundestag. Fundado há poucos meses, disputava pela primeira vez as
eleições e ficou com 4,7%, um resultado mais que promissor. Como definir
o conservadorismo deste partido? De um lado, é como se os professores
universitários que votam no PSDB, no Brasil, resolvessem fundar o
próprio partido. Algo assim que misture solenidade acadêmica, retórica
pomposa e um nacionalismo conservador mas algo difuso, porque não se
apresenta como tal. Pelo contrário, quer se apresentar como cosmopolita e
bem pensante. É bom lembrar que “nacionalismo”, aqui, para grande parte
da cultura política alemã, ainda é um palavrão inaceitável. O AfD,
pelas pesquisas publicadas na segunda, tomou votos de todo mundo, até da
Linke (360 mil). Da CDU, tomou 300 mil.
O SPD social-democrata tinha e não tinha o que comemorar. Melhorou seu
resultado, indo de 23% na eleição de 2009 para 25,7%. Estes números
lembram o que aconteceu com o FDP este ano. O SPD, formando o que se
chama “Grande Coalizão” com a CDU/CSU, no primeiro governo de Merkel,
definhou. Mas isto foi insuficiente, para um partido que aspirava chegar
ao governo com os Verdes, batendo as coligações de Merkel. Agora o SPD
está diante de um dilema: integrar ou não um novo governo de Merkel,
repetindo a “Grande Coalizão” e arriscando definhar de novo diante da
esponja Ângela Merkel. Se integrar, poderá ter um poderoso instrumento
de barganha, porque Merkel, a rigor, precisa formar uma coalizão. A
CDU/CSU ficou com 311 cadeiras no Bundestag, contra 319 das oposições
desunidas (192 para o SPD, 64 para a Linke e 63 para os Verdes). Para a
chanceler, é muito arriscado fazer um governo “puro sangue”, coisa que
não acontece na Alemanha desde os tempos de Konrad Adenauer. Quanto ao
SPD, poderá cobrar caro pela coalizão, pedindo algo como o Ministério de
Relações Exteriores ou até o das Finanças (este será mais difícil) e,
certamente, a vice-chancelaria. Mas como já se disse, a coalizão poderá
sair-lhe caro, mais uma vez.
A Linke caiu na votação, de 11,9% em 2009 para 8,6% este ano. Chegou até
a perder votos para a CDU/CSU (120 mil). Ainda assim, o clima em sua
sede era de moderada comemoração. Primeiro porque o partido enfrentou
momentos difíceis no passado recente. Um de seus principais líderes,
Oskar Lafontaine, chegou a anunciar que se retiraria da política por
motivos de saúde. Chegou-se a pensar que a Linke poderia implodir. Mas o
partido conseguiu sobreviver, com a afirmação da liderança de Sahra
Wagenknecht, que vai ocupando o espaço aberto mas não abandonado por
Lafontaine, ao lado do candidato a chanceler, Gregor Gysi. Conseguiram
manter redutos importantes, como em Berlim, com 19% da votação. Além
disso, com o fracasso, visto a seguir, dos Verdes, a Linke tornou-se a
terceira força no Parlamento. Isto vai ajudar o partido a furar uma
certa “invisibilidade” que parte da mídia lhe dedica. Por outro lado,
esta maior visibilidade vai expor mais suas tensões internas.
Para os Verdes o resultado foi péssimo. Caíram de 10,7% para 8,4%.
Perderam 550 mil votos para o SPD e 420 mil para a CDU/CSU. Ficaram em
quarto lugar, atrás, ainda que por poucos pontos, da Linke. Teriam a
opção – que pode ser suicida – de se oferecer para compor o governo de
Merkel, mas isto parece altamente improvável, senão impossível. O que
aconteceu? Em primeiro lugar, a campanha Verde foi muito fraca, sem
conseguir definir bandeiras nítidas. Em segundo lugar, porque mais uma
vez a “esponja” tomou-lhes uma das suas principais bandeiras, a luta
contra a utilização de usinas nucleares para produção de energia. Quando
estavam no governo com o SPD, os Verdes chegaram a aceitar o envio de
tropas alemãs para o Afeganistão, em troca do compromisso de fecharem-se
as usinas até 2018. Quando chegou ao governo, com o FDP, Merkel quis
recuar na decisão. Mas aí aconteceu Fukushima, e na sequência Merkel
construiu um grande acordão para fechá-las até 2021. Isto foi um tiro no
ouvido para os Verdes, que já vinham perdendo pontos devido à ruptura
com sua tradição pacifista. Outros fatores importantes foram a exposição
de suas disputas internas (coisa de que a Linke conseguiu escapar), a
falta de renovação de seus quadros e uma acusação exposta
insistentemente na mídia de que no passado teriam favorecido “o sexo com
e entre crianças”. Traduzindo para hoje em dia, isto assumiu uma
conotação de pedofilia e exibicionismo. Claro: o contexto era outro, a
discussão era outra, mas como só acontecer nestes casos, até provar-se
de que tromba de elefante não é tomada, o leite se derrama e a reputação
se perde.
Somando e diminuindo, podem-se afirmar, com cautela, os seguintes pontos:
1. Caso o SPD decida integrar o governo – e Merkel aceite – o resultado
poderá ser ruim para… David Cameron, do outro lado do Canal da Mancha.
Pressionado pela sua direita, Cameron quer renegociar a repartição de
poderes com a União Europeia. Merkel, com o FDP a tiracolo, vinha
manifestando certo aceite desta renegociação. Agora, com o SPD na
cadeira ao lado, isto ficará mais difícil, com a persistente política
pró-europeia dos social-democratas.
2. Mesmo que o SPD integre o governo, não haverá grandes, talvez nem
mesmo pequenas mudanças nas políticas da Alemanha e do Banco Central
Europeu, nem da Comissão Europeia em relação aos “planos de austeridade”
ora em curso. Muito provavelmente Jens Weidmann continuará sendo o
diretor-presidente do Banco Central Alemão e, com seus 18% de votos,
continuará influenciando basicamente, com seu ideário fortemente
neoliberal, as políticas do BCE, ainda que este, nos últimos tempos,
tenha demonstrado maior independência em relação à Alemanha. Pleiteará o
SPD o cargo, caso integre o governo? Não se pode ainda dizer, mas mesmo
que pleiteie, não haverá mudança de escola numa nova gestão.
3. Ainda caso o SPD venha a integrar o novo governo de Merkel, haverá uma maior aproximação com a França de François Hollande.
4. Último comentário: quais as razões do sucesso pessoal de Merkel? Bom,
uma delas certamente é sua habilidade de isolar adversários, e também, é
bom não esquecer devido ao caso do FDP, de enredar aliados em sua teia.
Mas há uma outra razão, mais profunda. Merkel tem um estilo
extremamente sóbrio de proceder e até de vestir-se. Ela encarna
decididamente um ideal identitário da cultura social e política alemã.
Desde muito tempo, Merkel é a primeira figura política alemã de grande
presença e reconhecimento internacionais. Talvez desde os tempos mesmo
de Adenauer e Willy Brandt. Helmut Kohl foi o primeiro-ministro da queda
do Muro e da reunificação, mas nem ele nem Gehrard Schröder, o
social-democrata que veio depois, eram figuras internacionalmente
carismáticas. Merkel o é, e paradoxalmente, por encarnar o anticarisma.
Ela é a líder sem sex-appeal, sem a força aparente de qualquer sedução.
Por isso mesmo ele parece continuamente “casada com a Alemanha”, ela
personifica este ideal identitário alemão que implica também uma forma
de cruzada continental, numa afirmação, sempre discreta, mas muito
persistente, de que “o que é bom para a Alemanha é bom para a Europa”.
Isto significa remoldar a cena europeia, afastando-a do antigo estado do
bem estar social, visto como perdulário e dissipador, e aproximando-a
dos ideais de poupança e moderação nas contas públicas, como extensão
das contas privadas, a cortina perfeita para recobrir, com o manto probo
da respeitabilidade, a orgia financeira em que se transformaram vastos
setores da economia europeia e mundial.
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