António Barata
Silenciosa, mais uma tragédia humanitária está em curso no chamado Corno de África (principalmente no Sul da Somália e no Quénia, podendo vir a alastrar à Etiópia, Sudão e Eritreia).
São 12,4 milhões as pessoas ameaçadas de morte por nada terem para comer senão aquilo que chega a conta-gotas via ONU e que, passadas as primeiras notas de inquietação, foram remetidas para o esquecimento pela comunicação social e a chamada "comunidade internacional", ocupadas com o "combate ao terrorismo" e a "democratização" do Iraque, Afeganistão, Líbia, Irão, Síria, etc. Se é endémica a fome em muitas regiões do Terceiro Mundo, e em particular no Corno de África, a verdade é que, ao contrário do que durante as últimas décadas acontecia, outro tipo de fome tem vindo a alastrar na Europa, Estados Unidos e Japão, o que pode ser atestado pelo aumento em flecha do número de famílias que dependem da ajuda pública de emergência nos países desenvolvidos. Dados deste ano dizem que 15% dos norte-americanos – 46 milhões de pessoas – dependem do apoio alimentar do governo para sobreviver, não sendo a situação nos países da OCDE muito diferente.
Encarada como uma fatalidade, tornou-se hábito atribuir a fome aos caprichos da natureza, à melhoria das condições de vida na China, na Índia e noutros países do Sul – que consomem mais produtos alimentares do que antes – e, onde os há, aos conflitos "regionais e étnicos". É como se as causas da fome fossem conjunturais e não estruturais, consequência da nova divisão do trabalho provocada pela globalização, com a produção da mais-valia situada cada vez mais nos países do Terceiro Mundo e a sua apropriação nos países ricos do Norte; como se ela fosse um problema agrícola e houvesse escassez de alimentos; como se essa suposta escassez estivesse a ser agravada pelo crescimento populacional e de consumo de países como a China e a Índia, as guerras, os maus governos e a corrupção; como se a desertificação e o abandono da agricultura resultassem das alterações climáticas e houvesse uma relação directa entre a perda de colheitas e de gado e a fome.
A ser assim, como explicar que países como os EUA e a Austrália, que ciclicamente sofrem períodos de seca severos, não sofram nessas alturas fomes extremas? As guerras e as calamidades naturais podem certamente agravar os problemas. Mas não passa de uma fraude quererem-nos fazer crer que a fome, a corrupção, o nepotismo, a degradação crescente das condições de vida da maioria da humanidade são uma fatalidade somada à "má governação".
A fome é antes de mais um problema político, uma consequência da concentração de capitais, da apropriação da riqueza a uma escala nunca vista por um punhado cada vez mais reduzido de capitalistas e multinacionais, do excesso de produção e somas enormes de capitais que não encontram colocação na produção de mercadorias e que por isso se deslocam para a especulação e outras áreas financeiras.
A FOME É UM PROBLEMA POLÍTICO
Segundo os dados disponíveis, a produção de alimentos triplicou em relação à dos anos 60; entre 2007 e 2008 o número de pessoas cronicamente subalimentadas ultrapassou os mil milhões, enquanto a produção alimentar mundial cresceu 5%. Como entender este fenómeno curioso de ao aumento da oferta de bens alimentares não ter correspondido um embaratecimento dos bens alimentares nem a redução da fome? E que, pelo contrário, os alimentos se tenham tornado mais caros nos países do Sul e tenha aí surgido a crise alimentar que dura desde há anos em países até há pouco tempo auto-suficientes?
Tudo isto começou com as políticas que os países do Terceiro Mundo foram obrigados a aplicar nos últimos 20 anos a mando do FMI, Banco Mundial e OMC – medidas de "ajustamento estrutural" e dos chamados "incentivos à agricultura" impostas por estas organismos aos países da africanos, asiáticos e sul-americanos, quando da negociação das suas dívidas externas. Daí resultaram a destruição das suas agriculturas, a dependência alimentar e a depreciação das matérias-primas – combinadas com a especulação bolsista em torno dos cereais e outras matérias-primas agrícolas mais a manipulação dos seus preços.
Que as causas da fome são políticas e não outras atestam-no há décadas diversos organismos internacionais. Segundo a FAO, a produção mundial actual de alimentos é bastante para 12 biliões de pessoas. Como o planeta é habitado por 7 biliões, isso significa que não falta comida, pelo que não há nenhuma razão para que uma em cada sete pessoas passe fome. Logo, o problema não é agrícola, de esgotamento de recursos, ecológico ou de população a mais. O problema está na apropriação e na distribuição da riqueza e dos recursos, no facto de os bens alimentares serem apropriados como uma mercadoria cuja função principal não é a satisfação das necessidades humanas, mas as do capital financeiro e da especulação bolsista.
Mesmo na Somália, onde as secas são constantes, não podemos responsabilizar a natureza pela fome. A região foi auto-suficiente até ao final dos anos 60. O que mudou desde então não foi só o meio ambiente, mas o controlo dos recursos naturais, que passou para as mãos das multinacionais e do grande capital. Estes têm vindo a comprar massivamente os terrenos férteis para aí instalar agro-indústrias e especular na área fundiária e nas bolsas. Tem sido isto, e não os desastres naturais, o que por todo o mundo está a expulsar milhares de camponeses das suas terras, reduzindo-se assim a capacidade destes países e regiões para se auto-alimentarem. Por exemplo, enquanto o PAM – Programa Mundial de Alimentos – procura dar de comer às cerca de 12 milhões de pessoas acantonadas nos acampamentos do Sudão, nas terras ao lado (possivelmente muitas delas compradas aos refugiados) os governos do Kuwait, Emiratos e Coreia do Sul produzem alimentos para exportação; ou, como constatava o New York Times em 2002, "na Índia os pobres morrem de fome enquanto apodrecem os excedentes de trigo".
A MALDIÇÃO DO MERCADO LIVRE
Nos anos 80 o FMI e o Banco Mundial impuseram aos países da África, Ásia e América Latina as medidas de ajustamento acima referidas (obrigada a pagar aos seus credores do Clube de Paris, a Somália foi um deles: teve de liberalizar a sua economia e abrir o comércio aos produtos dos países ricos). Em resultado, estes países foram inundados de arroz, trigo, sorgo e milho produzidos pelas multinacionais agro-industriais dos EUA e Europa. Esses cereais, subvencionados por vezes em mais de 50% pelos respectivos governos e, por norma, vendidos abaixo do preço de custo, arruinaram as agriculturas e os comércios locais. Isto conduziu a desvalorizações sucessivas da moeda, à inflação, à monocultura e, por fim, ao abandono dos campos, à migração das populações aos milhares para as cidades e, em consequência, a uma florescente especulação mobiliária.
O actual surto de fome, que é um novo pico na grave crise alimentar iniciada em 2008, tem como causa imediata e visível a contínua subida dos preços dos cereais básicos, particularmente violento no último ano. Na Somália, o preço do milho aumentou 106% e o sorgo 180%. Na Etiópia, o trigo subiu 85%. No Quénia, o milho aumentou 55%.
Mas são a especulação financeira e o grande capital os principais responsáveis pela situação. Os preços dos alimentos são estabelecidos a milhares de quilómetros dos mercados dos países do Sul, nas bolsas norte-americanas e europeias, principalmente as de Chicago, Londres, Paris, Amesterdão e Frankfurt, e não as economias locais. Num processo decalcado do da especulação imobiliária que levou à actual crise económica, os stocks de cereais e outras matérias-primas estão a ser continuamente vendidos e comprados por bancos, fundos de investimento, capitais de riscos e seguradoras, alimentando a espiral especulativa que provoca a subida dos preços dos alimentos.
Vivemos num mundo de abundância, o que faz com que a produção e o comércio agrícola estejam mais que nunca sujeitos a interesses que nada têm a ver com a alimentação humana. Devido a esta abundância cada vez maior, as grandes multinacionais agro-alimentares estão (muitas vezes a coberto de hipócritas proclamações ecológicas e de defesa da natureza) orientadas para a especulação financeira e a distribuição de dividendos aos seus accionistas, desviando a produção de cereais e de óleos alimentares da alimentação humana para a produção de biocombustíveis, negócio altamente lucrativo devido à procura crescente de petróleo e ao esgotamento das reservas de combustível fóssil. Actualmente, mais de um quarto da produção de milho nos EUA destina-se ao fabrico de etanol. Ou seja, cerca de 150 milhões de toneladas de milho estão a ser desviadas anualmente da alimentação humana para a produção de biocombustíveis. O mesmo se passa no Brasil e um pouco por todo o Terceiro Mundo, fazendo com que o preço dos cereais atinja valões especulativos, o que tem levado alguns estudiosos a dizer que se estão lançadas "as bases de um crime contra a humanidade".
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