O artigo deste domingo de FHC no 'Estadão' é uma das excrescências
mórbidas de que falava o italiano comunista Antonio Gramsci. Morto em
1937, ele ensinou: o que caracteriza uma crise é justamente o fato de
que 'o velho já morreu e o que é verdadeiramente novo não consegue
nascer; nesse interregno, aparecem toda uma série de sintomas mórbidos”.
Que poderia haver de mais sintomaticamente mórbido nesse arrastado
colapso neoliberal do que um ex-presidente tucano vir a público
pontificar lições de ética, finanças e desenvolvimento tendo como régua e
compasso o governo e o credo que o ralo da história digere há quatro
anos?
FHC, Serra e outros valem-se do limbo pegajoso dos dias que correm para
insistir em políticas e agendas condenadas, mas ainda não substituídas
no plano mundial - o que dificulta a sua ruptura definitiva também no
Brasil.
Debater com FHC nesse ambiente movediço traz a angústia das reiterações inúteis. 'O velho já morreu', dizia Gramsci.
Mas o novo não consegue nascer.
A quebra do banco Lehamn Brothers completa 4 anos no próximo dia 15. A
falência do 4º banco de investimento dos EUA rompeu o sistema financeiro
mundial e desencadeou a deriva da qual somos passageiros desde 2008.
Sugestivamente, nesta 3ª feira de setembro, começa também a convenção do
Partido democrata nos EUA, da qual Obama sairá candidato à releição.
Visto como esperança de recomeço no terremoto de 2008, o democrata
tornou-se ele também um ponto dentro da curva. Mais tragável que o
antecessor ou o adversário, sem dúvida. Mas a nicotina mentolada de que é
feito provou-se insuficiente para arejar o quadro asifixiante da maior
crise capitalista desde 1929.
2008 não encontrou seu Roosevelt. E parece cada vez mais improvável que
encontre um new New Deal capaz de afrontá-lo a partir do centro rico.
George Soros, o megaespeculador de cuja argúcia não se deve duvidar,
declarou em recente entrevista ao El País que teme pelo desfecho
político da deterioração em marcha. Sobretudo na Europa, coalhada de
governos histericamente ortodoxos.
Profundamente pessimista com o futuro do euro, vítima da incapacidade
alemã de assumir-se como um 'Roosevelt na UE', Soros, a 20ª maior
fortuna do planeta, inquieta-se com os fantasmas que povoam seu ângulo
de visão privilegiado. Um pouco como aconteceu depois da Depressão de
29, ele adverte, o salve-se quem puder será entremeado de nacionalismos
econômicos e totalitarismo político.
A margem de manobra se estreita de uma ponta a outra do impasse.
O extremismo mercadista dobrou a aposta neoliberal na sua versão
arrocho. O resultado desespera eleitores que se voltaram à direita desde
2008.Espanha, Portugal, Itália, Grécia etc fazem água e desemprego por
todos os lados. Ninguém leva a sério 'os esforços' do direitista Rajoy
para esfolar a Espanha até o osso, em troca de maior confiança dos
mercados. Os mercados tiraram mais de 240 bi de euros da economia
espanhola só no primeiro semestre deste ano.
Não é exatamente convidativo, tampouco, o horizonte de forças que se
opõem à razia conservadora, mas o fazem na margem, sem afrontar o cuore
da austeridade suicida.
O liquidificador dos interesses contrariados e das expectativas
insatisfeitas tende a moe-los com virulência até superior à mastigação
lenta dedicada às administrações direitistas.
Na França,o socialista recém-eleito François Hollande vê o seu espaço de
governo estreitar-se sob duplo torniquete: de um lado, a voz rouca de 3
milhões de desempregados; de outro, pressões do bureau do euro para
cortar 33 bilhões de euros do orçamento público.
O ambiente é cada vez mais abafado na sala VIP do mundo. Mas a brisa da
esperança que sopra da América Latina tampouco exibe vigor, por
enquanto, para fixar uma nova rota de longo curso, à margem do
engessamento neoliberal.
A AL - Brasil à frente - logrou em pleno colapso preservar baixas taxas
de pobreza e desemprego, com alguma retomada de investimento.
Havia a expectativa de que o vendaval da crise pudesse amainar mais
depressa devolvendo fôlego a essa travessia lenta e gradual, feita de
redistribuição do crescimento com maior convergência de direitos e
oportunidades.
A visibilidade dessa zona de conforto político torna-se a cada dia mais opaca.
Tudo indica que os avanços sociais tendem a se tornar mais difíceis.
Sobretudo porque, após vitórias significativas contra a pobreza, ir além
implica afrontar a desigualdade. Essa requer mudanças estruturais na
alocação do estoque da riqueza existente para ser alterada (seja na
esfera fundiária, urbana, patrimonial ou financeira).
Não é um mantra ideológico. Que ninguém se iluda com fábulas amenas de
retorno a um mundo de desconcentração financeira amigável à produção e
ao desenvolvimento. Regulação não significa diluição, mas sim
subordinação do capital financeiro aos desígnios da sociedade e seu
retorno ao papel de alavanca da produção.
A concentração de capitais, a formação de grandes fundos de recursos, é
um traço intrínsec à dinâmica capitalista. Num certo sentido é também
uma necessidade da escala de financiamento requerida pelas demandas por
infraestrutura, planos de universalização de serviços e direitos,
ademais da reordenação ambiental.
Essa agregação de grandes volumes de recursos terá que ser feita por
alguém. O colapso neoliberal mostra para onde a coisa caminha quando os
mercados ficam livres e capturam o crédito, o financiamento e o juro
para estrepulias especulativas dissociadas do circuito da produção.
A alternativa com capacidade para fazê-lo de maneira socialmente democrática é o Estado.
O prolongamento da crise exige que ele ocupe espaços crescentes na
economia. Sem esse salto político será impossível comandar a retomada do
crescimento e colocar os mercados e a serviço da sociedade.
Não se cumpre esse papel indutor e planejador sem fundos públicos em escala correspondente.
A carga fiscal média vigente na AL, de 18% a 19%, trava esse passo.
(Dados da CEPAL, "Mudança Estrutural para a Igualdade: Uma Visão
Integrada do Desenvolvimento").
Na Europa e na América Latina, incluindo-se o caso específico do Brasil,
a alavanca fiscal emperrada reflete um flanco mais grave: o
desarmamento político das forças sociais que deveriam assumir a tarefa
de acionar o papel hegemônico da iniciativa pública. Ou seja, erguer as
linhas de passagem para equacionar a crise com uma socialização
democrática dos recursos disponíveis.
É o cerne do impasse de que fala Gramasci.
A questão que se coloca aos partidos progressistas é de urgência
transparente: quanto tempo o futuro ainda pode esperar antes que
manifestações mórbidas, como a de FHC, tentem se impor à sociedade com
sua agenda zumbi? A ver.
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