Quebrado,
só com US$ 4 bilhões de reservas e dívida de US$ 85 bilhões, em 1982 o
Brasil presidido pelo general Figueiredo recebeu empréstimos dos EUA
como tábua de salvação. Em troca, revelam documentos secretos do
Itamaraty, os americanos exigiram vantagens. Pressionado pelo governo
Reagan, o país se alinhou aos EUA na Guerra Fria e aceitou acordos
comerciais, relatam Danilo Fariello e Eliane Oliveira.
O então
chanceler Saraiva Guerreiro alertou para "efeitos lesivos ao interesse
nacional". Os militares adiaram negociação com o FMI para evitar
desgaste na eleição de 1982
BRASÍLIA
Há 30 anos, no auge da crise da dívida externa, os Estados Unidos foram
a tábua de salvação do Brasil, com a liberação de empréstimos-ponte de
US$ 1,5 bilhão no último trimestre de 1982. Essa ajuda deu fôlego ao
país, mergulhado na insolvência, até a formalização de acordo com o
Fundo Monetário Internacional (FMI) no ano seguinte, mas o Brasil pagou
um preço alto pelo apoio americano. Documento secreto do Itamaraty no
Arquivo Nacional, ao qual O GLOBO teve acesso, mostra como os EUA
impuseram condições e exigiram vantagens. Este e outros documentos
sigilosos e depoimentos inéditos iniciam a série de reportagens sobre o
chamado "setembro negro" e a crise da dívida.
Pressionado pelo governo
americano, o Brasil teve de se submeter a uma série de exigências,
desde o alinhamento incondicional aos EUA na Guerra Fria à aprovação de
propostas encaminhadas pela maior potência do mundo ao sistema
internacional de comércio, mesmo que essas normas pudessem ferir, no
futuro, os interesses brasileiros.
Em memorando secreto ao
presidente-general João Figueiredo, em fevereiro de 1983, o então
ministro das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, alertou o
governo para o "alcance excessivo da proposta dos EUA e prováveis
efeitos lesivos sobre o interesse nacional".
A crise da dívida
externa chegou ao auge após a moratória do México, em agosto de 1982,
que foi seguida de uma severa restrição de liquidez nos mercados
financeiros, e a brusca interrupção dos fluxos de empréstimos do sistema
bancário internacional para os países em desenvolvimento. O período,
conhecido como "setembro negro", foi marcado por vários eventos: choques
do petróleo, aumento das taxas básicas de juros dos EUA e a guerra
entre Irã e Iraque.
O Brasil, que se sustentava às custas de uma
política dependente de capital externo, até então bem-sucedida,
revelou-se uma nação insolvente. Em uma reunião do FMI na cidade de
Toronto, no Canadá, a equipe econômica descobriu que, após a moratória
do México, o Brasil era considerado a "bola da vez" pela banca
internacional. O país só conseguiu evitar um calote generalizado porque
teve a ajuda dos EUA, que haviam contribuído para o caos que se instalou
na América Latina, ao elevarem os juros a uma taxa de quase 20% ao ano,
após uma nova crise do petróleo.
Em outubro e novembro de 1982, o
Tesouro dos EUA liberou dois empréstimos secretos para o Brasil, no
total US$ 1,5 bilhão, o que ajudou o país a sobreviver até começarem as
negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em visita ao
Brasil, em dezembro daquele ano, o então presidente americano, Ronald
Reagan, comunicou que haveria outro aporte de US$ 1,2 bilhão do Banco de
Compensações Internacionais (BIS), graças à atuação dos EUA.
Documento
ultrassecreto do Sistema Nacional de Informação (SNI), liberado
recentemente para consulta no Arquivo Nacional, revelou que o presidente
Reagan "sugeriu que sua visita poderia dar início a conversações, a
nível interministerial, a propósito de temas tais como cooperação
nuclear, na área industrial e militar, assim como no campo das
atividades espaciais".
Embora o Itamaraty estivesse alijado do
processo de negociação da dívida, comandado pela equipe econômica, o
chanceler Saraiva Guerreiro antevia uma fatura alta demais a ser paga em
troca do apoio, impressão confirmada por ex-ministros da Fazenda de
governos posteriores ao regime militar. No meio da crise, o ministro das
Relações Exteriores recomendou ao governo "enxugar" a agenda do grupo
de trabalho político-comercial entre Brasil e EUA em vigor.
Figueiredo pediu ajuda a Garnero
BRASÍLIA Em julho de
1982, o empresário Mário Garnero, então à frente da Confederação
Nacional da Indústria (CNI), recebeu um telefonema do Palácio do
Planalto. O então general-presidente João Figueiredo o chamava para uma
reunião secreta em Bauru (SP), durante uma solenidade.
- Do que o senhor precisa, presidente? - perguntou então Garnero, ao chegar.
- Preciso que você me ajude a mostrar aos EUA que temos uma ideia para sair da crise - respondeu Figueiredo.
O presidente disse a
Garnero que a situação econômica do Brasil era extremamente difícil e,
como se não bastasse, seus ministros da área econômica não conseguiam
ser recebidos pelo primeiro escalão do governo americano. O motivo
alegado era a falta de um projeto concreto a ser apresentado ao Fundo
Monetário Internacional (FMI).
Para Figueiredo, Garnero era útil
por suas estreitas relações com o então secretário de Estado americano,
George Schultz, que havia sido conselheiro da Brasilinvest - agência
privada de desenvolvimento do empresário. Garnero encontrou-se com
Schultz em setembro, com quem conversou por duas horas. Disse ao
secretário de Estado que estava na hora de ele visitar o Brasil.
- Ele disse que não tinha convite oficial. Providenciei-o no dia seguinte, com o aval do Planalto - conta Garnero.
EUA davam informações
Poucos
dias depois, Garnero foi surpreendido com um telefonema do amigo: "O
pato que vai ao Brasil é muito mais gordo do que você pensa", disse
Schultz. O pato era o presidente Ronald Reagan, que em dezembro traria a
Brasília mais de US$ 1 bilhão, avisado pelos bancos da necessidade de
ajudar o país.
Ernane Galvêas, então ministro da Fazenda, lembra
que o governo tinha pouco a oferecer aos credores, e eles temiam ser
jogados num buraco.
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