Quando comecei a escrever em jornal, e depois em sites, meu projeto era
discutir “análises” de fatos linguísticos feitas na mídia. A constatação
é que, em geral, são simplórias. Na melhor das hipóteses, corrigem-se
erros a partir de algum quebra-galho do tipo manual de redação ou, pior,
de listas de erros e soluções. A ideia, pasmem, é defender a língua, ou
mesmo a gramática. Ninguém se dá conta de que uma língua não é só sua
modalidade escrita (ou sua ortografia!), nem mesmo só a norma dita
culta, e, principalmente, que nem esta é uniforme.
Digo que essa é a melhor das hipóteses porque há coisas bem mais
horrorosas, como relacionar usos informais da língua com incapacidade de
pensar, por exemplo. Ninguém lê sobre diversidade linguística (inter e
intralinguística) e sobre mudanças pelas quais as línguas – inclusive a
nossa – passaram e continuam passando. Um dos resultados é que pessoas
que escrevem “certo” pensam que escrevem como Machado ou Vieira ou
Camões, o que só mostra que não conhecem esses autores.
Vou comentar alguns casos da semana. A propósito de um bilhete (que os
fotógrafos captaram) que Dilma passou a duas ministras, em uma reunião,
um leitor da Folha escreveu: “Sobre o bilhete de Dilma, a nossa
“presidenta”, feriu a gramática. Usa-se “porque” ao responder e “por
que” ao indagar” (Márcio Félix de Freitas, em 01/09/2012).
A explicação está longe do que dizem as gramáticas, que explicam que
“por que” se usa em interrogativas, sim, mas nunca que “porque” se usa
para “responder”. Informam que é para juntar uma oração causal ou
explicativa a alguma outra. Nada se diz sobre introduzir respostas. Que
pode ser um dos casos, mas só um.
O pior, porém, não é a explicação fajuta. O pior é a redação do bilhete.
Pela gramática que o Sr. Márcio supostamente segue, o começo deveria
ser (é uma alternativa entre outras) “Em seu bilhete (…), feriu a
gramática”.
“Sobre o bilhete, a presidenta feriu” seria um daqueles vícios de
linguagem, um anacoluto – segundo a gramatiquinha simplificada de Márcio
Félix. Segundo as listas de erros, o locutor deveria continuar o
pensamento (sejamos cordiais) que começa com “Sobre o bilhete”. Tal
continuação poderia ser: “tenho uma observação a fazer” (entre outras).
Invertendo a ordem, a coisa fica clara: “tenho uma observação … sobre o
bilhete” é uma estrutura aceitável. “Nossa presidenta feriu (…) sobre o
bilhete” deixa claro que este final e aquele começo não poderiam fazer
parte da mesma “estrutura”. Ele também poderia aproveitar a chance para
usar dois pontos no lugar da vírgula. E tudo se ajeitaria. O leitor pode
fazer o teste.
Mas, antes que pensem que virei corretor, explico que o Sr. Márcio não
errou. Só errou pela gramática que ele quis valorizar (mas não conseguiu
aplicar) e que ele dá a entender que é a única. A construção que
emprega pode ser bem explicada pelas gramáticas funcionalistas: o começo
é uma “apresentação” do tema, ou do tópico, sobre o qual, em seguida, o
locutor faz uma declaração.
A crítica é que ele não consegue seguir a gramática que acusa outros de
não seguir. E, convenhamos, em uma questão menor – a ortografia. Não
estou dizendo que leis ortográficas não precisam ser seguidas, mas
insisto que se trata de uma questão menor – tanto que elas podem ser
revogadas por lei, o que não acontece com estruturas sintáticas. A carta
é um caso de roto falando do esfarrapado…
Aliás, o Brasil está cheio de gente que sabe ortografia! Fico espantado
com tanta sabedoria! Somos um país de revisores! Sabichões têm orgasmos
diante da chance de criticar a grafia do nome da bola da Copa (brazuca) e
esse “por que” da Dilma. É o lado mais lamentável e pobre do nosso
bacharelismo.
* * *
A ombudsman da Folha (02/09/2012) resume várias cartas que reclamam de
erros gramaticais. Leitores citam formas como “servidor que manter
greve…”, “quanto menos se expor, melhor…”; e um faz a seguinte pergunta:
“Estaria a Folha liderando algum movimento para eliminar o modo
subjuntivo do nosso idioma?”.
Suzana Singer informa que há no jornal um Programa Qualidade, com cinco
pessoas, que promove ações para melhorar o conhecimento de gramática na
redação. E conclui: “É utópico pensar que um jornal diário terá um “erro
zero”, mas o leitor está certo ao exigir que ao menos os “grotescos”,
aqueles que doem no ouvido, sejam eliminados”.
Duas observações distintas: não sei se os membros do Programa Qualidade
conhecem bem a questão. Minha aposta é que não, mas juro que gostaria de
estar enganado. Se não se derem conta de que todas as variações podem
ter uma boa explicação baseada na análise da língua falada, em como
fatores faixa etária dos jornalistas e, principalmente, nos rumos da
deriva da língua, pode ser que os resultados pretendidos não apareçam
nunca!
É que não se trata apenas de saber gramática. Há muitas evidências de
que certas questões (como o futuro do subjuntivo de certos verbos
irregulares e a flexão do verbo “haver”) são mais do que batidas na
escola, com resultado quase nulo.
Outra questão é o que dói no ouvido. Como deveria ser óbvio, aquelas
formas não doem no ouvido dos que as escreveram. O que deve doer nos
deles são expuser e mantiver…
Por falar nisso, a ombudsman escreve, em outro trecho: “Em vez de
antecipação, o jornal deveria focar o que está em pauta”. No meu ouvido,
por exemplo, o que dói é focar. Mas isso é entre mim e meu
otorrinolaringologista…
Sírio Possenti, linguista, professor na Unicamp

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