Brincando de moralismo
A última sessão do STF produziu um duríssimo voto do ministro decano da
Corte, uma pregação moralista digna de um apostolo dos Evangelhos. Um
visitante de Marte pensaria que o Caso mensalão é uma erupção vulcânica
única no território brasileiro, que pegou o País de surpresa porque
nunca antes tinha acontecido algo remotamente similar.
A coisa toda soa falsa porque o país convive com situações de conluios
políticos continuados e de proporções maiores e mais graves desde a
fundação da Nova República, apenas para delimitar um período, situações a
que o tribunal assistiu impassível e tranquilamente.
O próprio ministro decano foi nomeado por um dos governos de maior
vulnerabilidade ética desse período, o Governo Sarney. Essa mesma
oligarquia conseguiu do complexo STF/TSE um feito extraordinário de
altíssima controvérsia, a deposição do Governador do Maranhão Jackson
Lago por firulas diminutas do processo eleitoral, nomeando-se em
sequência a atual governadora Roseana Sarney, amplamente rejeitada pelos
eleitores maranhenses, com votação muito inferior ao governador
cassado. A interpretação do feito foi seletiva, invés de se fazer nova
eleição colocou-se no lugar a segunda e muito mal votada herdeira da
oligarquia, tudo com apoio do tribunal.
No julgamento do ex-presidente Collor, o mesmo decano que fustigou os
imorais do mensalão votou pela absolvição do ex-presidente, cujo
tesoureiro de campanha manipulou quantias em nome do presidente que
fazem os valores do mensalão serem meros trocados. Não viu então o
decano imoralidade suficiente para qualquer condenação e muito menos
discurso moralista.
A própria história do Excelso Pretório conheceu muitas situações que
passaram longe da moral e da ética. O ex-presidente do Supremo, José
Linhares, empossado temporariamente na Presidência da Republica com a
deposição de Getúlio Vargas em outubro de 1945, em 90 dias de mandato
nomeou 61 parentes e quando censurado disse a frase célebre nos anais da
Republica: "Prefiro ficar mal com a Pátria do que com a minha família."
Já o ex-presidente do STF Francisco Rezek, que deu votos favoráveis ao
candidato Collor na campanha contra Lula, foi depois nomeado pelo eleito
Presidente para Ministro das Relações Exteriores, notável conflito de
interesses que o tribunal fingiu ignorar. Saído do Ministério o
Chanceler Rezek regressou ao STF, na maior naturalidade, não se tendo
registrado nenhuma estranheza na Corte.
No Governo Sarney um poderoso deputado federal, líder do Centrão,
explicitou a barganha no Congresso com a célebre frase de São Francisco
de Assis "É dando que se recebe", que embute no seu entendimento algo
muito próximo ao mensalão, não se sabendo de qualquer reação, por mínima
que fosse, da mais Alta Corte do País.
No Governo FHC ocorreram graves panes no terreno da moralidade politica.
O caso da reeleição, o caso Sivam, o caso das teles, com a imorredoura
frase "Estamos no limite da irresponsabilidade", proclamada pelo então
vice presidente do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio, sobre as cartas de
fiança do Banco pra certos grupos licitantes nos leilões. O STF assistiu
a tudo isso, houve condenação moralista nesses casos de bilhões e não
dos trocados mensalão? Nada. Os São Tomás de Aquino nada viram.
No tema PROER o período assistiu a quebra de enormes bancos como
Econômico, Nacional, a liquidação extrajudicial do BANESPA, a quebra
informal e revenda do Bamerindus, todos casos onde se comprometeram
recursos públicos de bilhões de dólares. Nada disso abalou a Suprema
Corte, discursos moralistas não foram ouvidos, mas todos esses negócios
foram altamente controversos, com espaço para muitas duvidas, de peso
infinitamente superiores ao Mensalão. Nem Ministério Publico e nem
Supremo deram as caras.
O caso dos Anões do Orçamento significou manipulações gigantescas no
orçamento da União com a finalidade de criar matéria prima para a
corrupção em alta escala. O STF se manifestou?
Porque então se proclama um discurso de pregação ético-moral digno do
púlpito da Igreja de São Pedro no Vaticano, tal a elevação do tom. A
manifestação parece altamente seletiva porque não ocorreu em outros
casos que passaram pelo tribunal, só nesse e exclusivamente nesse?
O discurso (muito mais que um voto) do Ministro cria a impressão que o
sistema politico brasileiro agora irá mudar, a imoralidade ficou no
passado. Será? Nada indica mudanças substanciais no "é dando que se
recebe", o mecanismo de EMENDAS PARLAMENTARES, um trem de corrupção,
continua onde sempre esteve, as emendas estão mais vigorosas do que
nunca.
Qual a contribuição do STF para a reforma do sistema politico
brasileiro, do qual o mensalão é um efeito e não causa? Nenhuma. Qual o
STF foi instado a julgar a fidelidade partidária, manteve a
extraordinária infidelidade brasileira, única no planeta, que permite a
um Kassab formar do nada, aliciando congressistas em outros partidos,
recrutar 47 parlamentares em curtíssimo tempo, não só isso, conseguiu
também do nada tempo de televisão e polpuda verba do Fundo Partidário,
tudo com beneplácito do STF. Essa lassidão e tolerância só aumenta a
malignidade do sistema politico que o STF teve chance de melhorar, mas
preferiu deixar como está ou até piorar.
Em um caso pontual está, no entanto fazendo verdadeiro Auto-de-fé da
Inquisição Espanhola, queimando hereges em praça publica, torturando-os
antes, para exemplo de malhação e expiação.
O linchamento e o que dele resultará em nada contribui para a construção
nacional, criará ódios e tensões que se projetarão para o futuro, um
grande desserviço à nação, uma moralidade de almanaque, sem grandeza e
sem sabedoria.
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