Aos 92 anos, o autor de algumas das mais importantes obras acerca da
história recente da humanidade, como “A Era das Revoluções” (sobre o
período de 1789 a 1848), “A Era do Capital” (1848-1875) , “A Era dos
Impérios” (1875-1914) e “A Era dos Extremos – O Breve Século 20”,
lançado em 1994, não arrisca previsões sobre como será o mundo
pós-crise. Nesta entrevista, concedida por e-mail de Paris, porém,
Hobsbawm apresenta suas opiniões como contribuição ao debate. De
certezas, apenas a de que, se a humanidade não mudar os rumos da sua
convivência mútua e com o planeta, o futuro nos preserva maus agouros.
Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não acredita que uma nova ordem
mundial surgirá das cinzas do pós-crise, mas acha que ainda existem
forças capazes de propor novas formas de organização e cultura políticas
e sociais, como o MST.
Revista Sem Terra - O planeta vive
hoje uma crise que abalou as estruturas do capitalismo mundial, atinge
indiscriminadamente atores em nada responsáveis pela sua eclosão, e que
talvez seja um dos mais importantes “feitos” da moderna globalização.
Na sua avaliação, quais foram os fatores e mecanismos que levaram a
esta situação?
Eric Hobsbawm – Nos últimos quarenta anos, a globalização,
viabilizada pela extraordinária revolução nos transportes e, sobretudo,
nas comunicações, esteve combinada com a hegemonia de políticas de
Estado neoliberais, favorecendo um mercado global irrestrito para o
capital em busca de lucros. No setor financeiro, isto ocorreu de forma
absoluta, o que explica porque a crise do desenvolvimento capitalista
ocorreu ali. Apesardo fato de que o capitalismo sempre — e por natureza —
opera por meio de uma sucessão de expansões geradoras de crises, isto
criou uma crise maior e potencialmente ameaçadora para o sistema,
comparável à Grande Depressão que se seguiu a 1929, mesmo que seja cedo
para avaliarmos todo o seu impacto. Um problema maior tem sido que a
tendência de declínio das margens de lucro, típico do capitalismo, tem
sido particularmente dramática porque os operadores financeiros,
acostumados a enormes ganhos com investimentos especulativos em épocas
de crescimento econômico, têm buscado mantê-los a níveis
insustentáveis, atirando-se em investimentos inseguros e de alto risco,
a exemplo dos financiamentos imobiliários subprime” nos EUA. Uma
enorme dívida, pelo menos quarenta vezes maior do que a sua base
econômica atual foi assim criada, e o destino disso era mesmo o
colapso.
RST - Como resposta à crise
econômica, governos e instituições financeiras estão concentrados em
salvar os sistemas bancário e financeiro, opção que tem sido
considerada uma tentativa de cura do próprio vetor causador do mal. No
que deve resultar este movimento?
EH – Um sistema de crédito operante é essencial para qualquer
país desenvolvido, e a crise atual demonstra que isso não é possível se
o sistema bancário deixa de funcionar. Nesse sentido, as medidas
nacionais para restaurá-lo são necessárias. Mas o que é preciso também é
uma reestruturação do Estado por exemplo, através das nacionalizações,
a “desfinanceirização” do sistema e a restauração de uma relação
realista entre ativos e passivos econômicos. Isso não pode ser feito
simplesmente combinando vastos subsídios para os bancos com uma
regulação futura mais restrita. De toda forma, a depressão econômica
não pode ser resolvida apenas via restauração do crédito. São
essenciais medidas concretas para gerar emprego e renda para a
população, de quem depende, em última instância, a prosperidade da
economia global.
RST - Antes de se agudizar o caos
econômico, o mundo começou a sofrer uma sucessão de abalos sociais e
ambientais, como a falta global de alimentos, as mudanças climáticas, a
crise energética, as crises humanitárias decorrentes das guerras,
entre outros. Como você avalia estes fatores na perspectiva do
paradigma civilizatório e de desenvolvimento do capitalismo moderno?
EH – Vivemos meio século de um crescimento exponencial da
população global, e os impactos da tecnologia e do crescimento
econômico no ambiente planetário estão colocando em risco o futuro da
humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central que
enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar a velha crença —
imposta não apenas pelos capitalistas — em um futuro de crescimento
econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta. Isto
significa que a fórmula da organização econômica mundial não pode ser
determinada pelo capitalismo de mercado que, repito, é um sistema
impulsionado pelo crescimento ilimitado. Como esta transição ocorrerá
ainda não está claro, mas se não ocorrer, haverá uma catástrofe.
RST – O capitalismo tem adquirido,
cada vez mais, uma força hegemônica na agricultura com o crescimento do
agronegócio. Muitos defendem que a Reforma Agrária não cabe mais na
agenda mundial. Como vê este debate e a luta pela terra de movimentos
sociais como o MST e a Via Campesina?
EH – A produção agrícola necessária para alimentar os seis
bilhões de seres humanos do planeta pode ser fornecida por uma pequena
fração da população mundial, se compararmos com o que era no passado.
Isso levou tanto a um declínio dramático das populações rurais desde
1950, quanto a uma vasta migração do campo para as cidades. Também
levou a um crescente domínio da agricultura por parte não tanto do
grande agronegócio, mas principalmente de empreendimentos capitalistas
que hoje controlam o mercado desta produção. Da mesma forma, têm
aumentado os conflitos entre agricultores e iniciativas empresariais na
disputa pela terra para propósitos não agrícolas (indústrias,
mineração, especulação imobiliária, transporte etc.), bem como pela sua
posse e pela exploração dos recursos naturais. A Reforma Agrária sem
duvida não é mais tão importante para a política como foi há 40 anos,
pelo menosna América Latina, mas claramente permanece uma questão
central em muitos outros países. Na minha opinião, a crise atual
reforça a importância da luta de movimentos como o MST, que é mais
social do que econômica. Em tempos de vacas gordas é muito mais fácil
ganhar a vida na cidade. Em tempos de depressão, a terra, a propriedade
familiar e a comunidade garantem a segurança social e a solidariedade
que o capitalismo neoliberal de mercado tão claramente nega aos
migrantes rurais desempregados.
RST - Na virada do século, um novo
movimento global de resistência social tomou corpo através do que ficou
conhecido como altermundialismo. Surgiu o Fórum Social Mundial, e
grandes manifestações contra a guerra e instituições multilaterais,
como a OMC, o G8 e a ALCA, na América Latina, ganharam as ruas. Na sua
avaliação, o que resultou destes movimentos? E hoje, como vê estas
iniciativas?
EH – O movimento global de resistência altermundialista merece o
crédito de duas grandes conquistas: na política, ressuscitou a rejeição
sistemática e a crítica ao capitalismo que os velhos partidos de
esquerda deixaram atrofiar. Também foi pioneiro na criação de um modo de
ação política global sem precedentes, que superou fronteiras nacionais
nas manifestações de Seattle e nas que se seguiram. Grosso modo,
logrou formular e mobilizar uma poderosa opinião pública que seriamente
pôs em cheque a ordem mundial neoliberal, mesmo antes da implosão
econômica. Seu programa propositivo, porém, tem sido menos efetivo, em
função, talvez, do grande número de componentes ideologicamente e
emocionalmente diversos dos movimentos, unificados apenas em aspirações
muito generalistas ou ações pontuais em ocasiões específicas.
RST - Principalmente na América
Latina, os anos 2000 trouxeram uma série de mudanças políticas para a
região com a eleição de governadores mais progressistas. A sociedade
civil organizada ganhou espaço nos debates políticos, mas os avanços na
garantia dos direitos sociais ainda esperam por uma maior
concretização. Como analisa este fenômeno?
EH – O fator mais positivo para a América Latina é a diminuição
efetiva da influência política e ideológica — e, na América do Sul,
também econômica — dos EUA. Um segundo fator muito importante é o
surgimento de governos progressistas — novamente mais fortes na América
do Sul —, inspirados pela grande tradição da igualdade, fraternidade e
liberdade, que comprovadamente está mais viva aí do que em outras
regiões do mundo neste momento. Estes novos regimes têm se beneficiado
de um período de altos preços de seus bens de exportação. Quão
profundamente serão afetados pela crise econômica, principalmente o
Brasil e a Venezuela,ainda não está claro. Suas políticas têm logrado
algumas melhorias sociais genuínas, mas até agora não reduziram
significativamente as enormes desigualdades econômicas e sociais de seus
países. Esta redução deve permanecer a maior prioridade de governos e
movimentos progressistas.
RST - Diante da crise civilizatória,
do fracasso do capitalismo e da inoperância dos sistemas
multilaterais, que não foram aptos a enfrentar as grandes questões
mundiais, as esquerdas têm se debatido na busca de alternativas; mas
nem consensos nem respostas parecem despontar no horizonte. Haveria, em
sua opinião, a possibilidade real da construção de um novo socialismo,
uma nova forma de lidar com o planeta e sua gente, capaz de enfrentar a
hegemonia bélica, econômica e política do neoliberalismo?
EH – Eu não acredito que exista uma oposição binária simples
entre “um novo socialismo” e a “hegemonia do capitalismo”. Não existe
apenas uma forma de capitalismo. A tentativa de aplicar um modelo
único, o “fundamentalismo de mercado” global anglo-americano, é uma
aberração histórica, que potencialmente colapsou agora e não pode ser
reconstruída. Por outro lado, o mesmo ocorre com a tentativa de
identificar o socialismo unicamente com a economia centralizada
planejada pelo Estado dos períodos soviético e maoísta. Esta também já
era (exceto talvez se nosso século for reviver os períodos temporários
de guerra total do século 20). Depois da atual crise, o capitalismo não
vai desaparecer. Vai se ajustar a uma nova era de economias que
combinarão atividades econômicas públicas e privadas. Mas o novo tipo de
sistemas mistos tem que ir além das várias formas de “capitalismo de
bem estar” que dominou as economias desenvolvidas nos trinta anos que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. Deve ser uma economia que priorize a
justiça social, uma vida digna para todos e a realização do que
Amaratya Sen chama de potencialidades inerentes aos seres humanos. Deve
estar organizada para realizar o que está além das habilidades do
mercado dos caçadores- de-lucro, principalmente para confrontar o grande
desafio da umanidade neste século 21: a crise ambiental global. Se
este novo sistema se comprometer com os dois objetivos, poderá ser
aceitável para os socialistas, independente do nome que lhe dermos. O
maior obstáculo no caminho não é a falta de clareza e concordância entre
as esquerdas, mas o fato de que a crise econômica global coincide com
uma situação internacional muito perigosa, instável e incerta, que
provavelmente não estabelecerá uma nova estabilidade por algum tempo.
Entrementes, não há consenso ou ações comuns entre os Estados, cujas
políticas são dominadas por interesses nacionais possivelmente
incompatíveis com os interesses globais.
RST - Conceitos como solidariedade,
cooperação, tolerância, justiça social, sustentabilidade ambiental,
responsabilidade do consumidor, desenvolvimento sustentável, entre
outros, têm encontrado eco, mesmo de forma ainda frágil, na opinião
pública. Acredita que estes princípios poderão, no futuro, ganhar força
e influenciar a ordem mundial? Vê algum caminho que possa aproximar a
humanidade a uma coabitação harmoniosa?
EH – Os conceitos listados estão mais para slogans do que para
programas. Eles ou ainda precisam ser transformados em ações e agendas
(como a redução de gases de efeito estufa, encorajada ou imposta pelos
governos, por exemplo), ou são subprodutos de situações sociais mais
complexas (como “tolerância”, que existe efetivamente apenas em
sociedades que a aceitam ou que estão impedidas de manter a
intolerância). Eu preferiria pensar na “cooperação” não apenas como um
ideal generalista, mas como uma forma de conduzir as questões humanas,
como as atividades econômicas e de bem estar social. Me entristece que a
cooperação e a organização mútua, que eram um ele- mento tão
importante no socialismo do século 19, desapareceram quase que
completamente do horizonte socialista do século 20 – mas felizmente não
da agenda do MST. Espero que esta lista de conceitos continue
conquistando o apoio e mobilize a opinião pública para pressionar
efetivamente os governos. Não acredito que a humanidade alcançará um
estado de “coabitação harmoniosa” num futuro próximo. Mas mesmo se
nossos ideais atualmente são apenas utopias, é essencial que homens e
mulheres lutem por elas.
RST - O senhor, que estudou com
profundidade a história do mundo e as relações humanas nos últimos
séculos, o que espera do futuro?
EH – Se a crise ambiental global não for controlada, e o
crescimento populacional estabilizado, as perspectivas são sombrias.
Mesmo se os efeitos das mudanças climáticas possam ser estabilizados,
produzirão enormes problemas que já são sentidos, como a crescente
competição por recursos hídricos, a desertificação nas zonas tropicais e
subtropicais, e a necessidade de projetos caros de controle de
inundações em regiões costeiras. Também mudarão o equilíbrio
internacional em favor do hemisfério Norte, que tem largas extensões de
terras árticas e subárticas passíveis de serem cultivadas e
industrializadas. Do ponto de vista econômico, o centro de gravidade do
mundo continuará a se mover do Oeste (América do Norte e Europa) para o
Sul e o Leste asiático, mas o acúmulo de riquezas ainda possibilitará
às populações das velhas regiões capitalistas um padrão de vida muito
superior às dos emergentes gigantes asiáticos. A atual crise econômica
global vai terminar, mas tenho dúvidas se terminará em termos
sustentáveis para além de algumas décadas. Politicamente, o mundo vive
uma transição desde o fim da Guerra Fria. Se tornou mais instável e
perigoso, especialmente na região entre Marrocos e Índia. Um novo
equilíbrio internacional entre as potências — os EUA, China, a União
Européia, Índia e Brasil — resumivelmente ocorrerá, o que poderá
garantir um período de relativa estabilidade econômica e política, mas
isto não é para já. O que não pode ser previsto é a natureza social e
política dos regimes que emergirão depois da crise. Aqui as
experiências do passado não podem ser aplicadas. O historiador pode
falar apenas das circunstâncias herdadas do passado. Como diz Karl
Marx: a humanidade faz a sua própria história. Como a fará e com que
resultados, muitas vezes inesperados, são questões que ultrapassam o
poder de previsão do historiador.
Verena Glass, jornalista, integrante do Conselho Editorial da Revista
Sem Terra e pesquisadora do Centro de Monitoramento de
Agrocombustíveis da ONG Repórter Brasil.
No MST
Nenhum comentário:
Postar um comentário
”Sendo este um espaço democrático, os comentários aqui postados são de total responsabilidade dos seus emitentes, não representando necessariamente a opinião de seus editores. Nós, nos reservamos o direito de, dentro das limitações de tempo, resumir ou deletar os comentários que tiverem conteúdo contrário às normas éticas deste blog. Não será tolerado Insulto, difamação ou ataques pessoais. Os editores não se responsabilizam pelo conteúdo dos comentários dos leitores, mas adverte que, textos ofensivos à quem quer que seja, ou que contenham agressão, discriminação, palavrões, ou que de alguma forma incitem a violência, ou transgridam leis e normas vigentes no Brasil, serão excluídos.”