Guerrilheiro Virtual

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A classe

 
O título desta coluna é uma reverência a Luiz Fernando Veríssimo que, em meados dos anos 80, escreveu uma crônica também assim intitulada. Naquele texto, o consagrado escritor, com deliciosa ironia, falava sobre o crescente empobrecimento da classe média. Eram tempos difíceis, de que muitos parecem esquecer-se.
 
Mas a classe média não ficou pobre e hoje, em novo cenário, o que se vê, pelo contrário, é a ascensão social de segmentos até então excluídos. Chega-se a mencionar uma “nova classe média”, mas essa, creio, é uma expressão forçada. O que há são algumas dezenas de milhões de miseráveis ou pobres que, em função de políticas públicas, estão alcançando um nível, ainda insuficiente, de dignidade e cidadania. 
 
A verdadeira classe média, a da crônica do Veríssimo – a tal que, naquela época, escapou da pobreza – essa não vê agora com bons olhos a “perigosa” aproximação da classe “C” e põe o seu bloco na rua, com a hipocrisia de sempre, parecendo defender aquilo que, na realidade, não quer que aconteça. As paralisações dos médicos são emblemáticas nesse sentido e não é por acaso que ocorrem no exato momento em que estão ameaçados os seus interesses corporativos.
 
Em entrevista concedida à revista “Isto É”, de 24.07.2013, o escritor Ferreira Gullar declarou, possivelmente encantado com as últimas manifestações, que “quem faz revoluções é a classe média”. Em abono da sua tese, citou, entre outros, Marx, Fidel e Lenin, que, sendo da classe média, teriam conduzido, na teoria e/ou na prática, processos revolucionários.
 
Ferreira Gullar é um dos meus poetas prediletos, particularmente na sua fase de artista engajado, com produção de forte cunho social, nos chamados “anos de chumbo”. Hoje, porém, não me sensibilizam nem um pouco as suas posturas que namoram o neoliberalismo. Em relação ao que afirmou, penso que se esqueceu de mencionar que as históricas personalidades citadas foram revolucionárias justamente por não aceitar os valores de sua classe. Foram, por assim dizer, ovelhas desgarradas do rebanho da burguesia...
 
Na caracterização da classe média – que conheço bem porque a ela pertenço - acho que, pelo menos em nosso país, longe de promover revoluções, ela é bem mais chegada a golpes... Seus valores contraditórios a fazem, não raro, acender velas a Deus e ao Diabo. 
 
Os seus arautos se dizem preocupados com a Educação, apregoam a necessidade de um ensino de qualidade por parte do Estado, mas, bem lá no fundo, sabem que a perpetuação de um ensino público deficiente garante para seus filhos – nos colégios particulares – a permanência de distinções que a desigualdade propicia. Uma espécie de reserva de domínio dos privilégios. Lembro-me bem de como foram dinamitados os CIEPS, um projeto de Darcy Ribeiro diretamente voltado para atacar e resolver o problema na raiz. Ainda me recordo do furor conservador que vociferava contra os gastos de Brizola com cada escola integral, considerado dinheiro que “daria para fazer várias escolas menores”. Tradução: para os pobres, a quantidade; para os ricos, a qualidade... 
 
No campo da saúde, a classe adora fazer piadinhas com o SUS, um dos maiores sistemas públicos de saúde do planeta. Divertem-se destacando os seus defeitos – que existem, é claro - e deliberadamente omitem as múltiplas atividades positivas desses segmentos no atendimento aos milhões de brasileiros que só têm o SUS como solução. Masoquistas, talvez, parecem gostar de planos de saúde que achacam seus bolsos, ou de médicos que fazem da profissão um negócio. Pouco se lhes dá se existem 700 municípios no país sem um profissional da área.
 
Ao invés de festejar as vitórias registradas no IDH, que deu saltos nos últimos anos e que tem, esse sim, tudo a ver com a felicidade dos brasileiros, a nossa classe média prefere seguir o posicionamento dos suspeitíssimos gurus e “especialistas” que elegem como divindades o PIB, o Mercado, a Bolsa, o dólar... E, fiéis a uma mídia calhorda, estão sempre dispostos a encaixar um “mas” ou um “porém”, cada vez que se deparam com uma vitória da cidadania na luta contra a desigualdade. 
 
Quando faltam todos os seus argumentos – invariavelmente colhidos no Jornal Nacional ou naquela conhecida revista semanal -, adoram indignar-se com a corrupção. Não com toda e qualquer corrupção, como conviria aos espíritos realmente preocupados com a ética, mas com uma de endereço certo, carimbada exclusivamente naqueles que lhe querem retirar certa exclusividade na zona de conforto. Não lhes preocupam, de forma alguma, os malfeitos dos seus ídolos na mídia ou na política – convenientemente omitidos - ou mesmo os seus próprios deslizes do cotidiano, materializados em propinas a guardas de trânsito, sonegações no imposto de renda, logros na alfândega e coisas do gênero... 
 
A filósofa Marilena Chuaí talvez exagere ao caracterizar a classe média como fascista, violenta e ignorante. Prefiro achar que esse grupo social é desinformado, egoísta e hipócrita, com falso discurso voltado para o social. E, sem muita filosofia, convido os leitores a ouvir os críticos versos do cantor popular Max Gonzaga, na música “Sou classe média”, cujas frases finais apregoam: “Toda tragédia só me importa quando bate em minha porta / Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida...”
 
Rodolpho Motta Lima
 
 
* * *
A Classe
A eliminação gradual da classe média brasileira, um processo que começou há anos mas que de uns tempos para cá assumiu proporções catastróficas, a ponto de a classe média brasileira ser hoje classificada pelas Nações Unidas como uma espécie em extinção, junto com o mico-rosa e a foca-focinho-verde, está preocupando autoridades e conservacionistas nacionais. 
 
Estudam-se medidas para acabar com o massacre indiscriminado que vão desde o estabelecimento de cotas anuais - só uma determinada parcela da classe média poderia ser abatida durante uma temporada - até a criação de santuários onde, livre de impostos extorsivos e protegida de contracheques criminosos e custos predatórios, a classe média brasileira se reproduziria até recuperar sua antiga força numérica, e numerária. Uma espécie de reserva de mercado. 
 
A tentativa de recriar a classe média brasileira em laboratório, como se sabe, não deu certo. Os protótipos, assim que conseguiram algum dinheiro, fretaram um avião para Disneyworld.
 
A preservação natural da classe média brasileira evitaria coisas constrangedoras como a recente reunião da classe realizada em São Paulo, à qual, de vários pontos do Brasil, compareceram dezessete pessoas. As outras cinco não conseguiram crédito para a passagem. 
 
A reunião teve de ser transferida do Morumbi para a mesa de uma pizzaria, e ninguém pediu vinho. Uma proposta para que a classe fizesse greve nacional para chamar a atenção do país para a sua crescente insignificância foi rejeitada sob a alegação de que ninguém iria notar.
 
Fizeram uma coleta para financiar a eleição de representantes da classe média na Assembléia Constituinte, mas acabaram devolvendo os 10 cruzeiros. 
 
A única resolução aprovada foi a de que, para evitar a perseguição, todos se despojassem de sinais ostensivos de serem da classe média, como carro pequeno etc., e passassem a viver como pobres. Aí não seria rebaixamento social, seria disfarce. 
 
No fim os garçons se cotizaram e deram uma gorjeta para os integrantes da mesa.
 
Cenas lamentáveis têm ocorrido também com ex-membros da classe média que, passando para uma classe inferior, não sabem como se comportar e são alvo de desprezo de pobres tradicionais, que os chamam de "novos pobres".
 
- Viu aquela ali? Quis fazer caneca de lata de óleo e não sabe nem abrir um buraco com prego.
 
- E usa lata de óleo de milho.
 
- Metida a pouca coisa...
 
- Já viram ela num ônibus? Não sabe empurrar a borboleta com a anca enquanto briga com o cobrador.
 
- E não conta o troco!
 
- Berço é berço, minha filha.
 
Alguns pobres menos preconceituosos ainda tentam ajudar os novos pobres a evitar suas gafes.
 
- Olhe, não leve a mal...
 
- O quê?
 
- É o seu jeito de falar.
 
- Diga-me.
 
- Você às vezes usa o pronome oblíquo muito certo.
 
- Mas...
 
- Aqui na vila, pronome oblíquo certo pega mal.
 
- Sei.
 
- E outra coisa...
 
- O quê?
 
- Os seus discos.
 
- O toca-discos foi a única coisa que eu consegui salvar quando me despejaram.
 
- Eu sei. Mas Julio Iglesias?!
 

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