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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Há 82 anos, a bolsa de Nova Iorque desencadeava a grande depressão

João Andrade Santos
João Andrade Santos, no ODiario.info
 
Os “mercados”, ou seja, os prestamistas, procuram tirar todo o partido possível da situação emprestando às taxas de juro mais elevadas que seja possível, particularmente aos países em dificuldades. Um segundo grande objectivo aponta para o intensificar da especulação contra o Euro, visando acabar com um meio de pagamento que cria problemas à supremacia do dólar norte-americano. Finalmente, os governos conservadores invocam a crise para retirar direitos sociais e laborais às populações, numa tentativa de acabar com o Estado Social e com a organização social e económica do Primeiro Mundo criada no seguimento da vitória das democracias na Segunda Guerra Mundial.
Quando a crise rebentou nos Estados Unidos, em 2008, começou a dizer-se que esta seria a maior perturbação da economia mundial após a Grande Depressão dos anos trinta. Da crise do imobiliário à crise financeira, desta à crise económica, depois a passagem à Europa, com a crise dita das dívidas soberanas, e agora os prenúncios de uma quebra no crescimento ameaçando a economia mundial, tudo isto mostra que a comparação tem alguma razão de ser.

1.Um aniversário que importa recordar

Num ambiente apesar de tudo de uma certa euforia económica motivada nomeadamente pela reconstrução dos países europeus devastados pela primeira Grande Guerra, e propiciada por importantes fornecimentos norte-americanos, a bolsa de Wall Street viria a ter a sua maior queda no dia 24 de Outubro de 1929, a Quinta-feira negra como a partir daí a data seria conhecida. Os 19 milhões de títulos negociados nesse dia na bolsa nova-iorquina tiveram uma queda brutal de cotações, o que contagiou outros mercados desencadeando um processo que se internacionalizaria a breve trecho, primeiro em países do Continente Americano, e mais tarde, na própria Europa atingida em 1931.

Falências de empresas, queda dos preços dos produtos industriais e das matérias-primas, multiplicação do número de desempregados, miséria e fome, foram os efeitos imediatos desta crise provocada pelo crescimento da indústria, da produtividade e da produção, face a uma procura em retracção: a redução da capacidade de consumo provocou uma crise de super produção com efeitos devastadores em vários pontos do Mundo.

A Grande Depressão está entre as causas mais importantes da Segunda Guerra Mundial, que custou ao Mundo cerca de 50 milhões de mortos, e destruições incalculáveis na Europa, na Ásia, no Pacífico. A superação dos efeitos da crise dos anos trinta só seria atingida em muitos países com o impulso económico da reconstrução e da recuperação das economias destruídas pela guerra.

A Grande Depressão marcaria o final de uma época caracterizada por um capitalismo sem regras, e impôs a intervenção do Estado para dinamizar a recuperação da economia e para garantir o seu funcionamento sem acidentes deste tipo através da sua regulamentação e supervisão. Nos Estados Unidos, a administração Roosevelt implantou neste quadro uma regulamentação para as actividades financeiras a bancárias, destinada entre outras coisas a impedir um crescimento desmedido das organizações do sistema financeiro, e evitar que operações com riscos mal calculados viessem a criar perturbações no próprio sistema financeiro, na economia e, por arrastamento, no tecido social.

2.A falta de memória, esse grande inimigo da sociedade humana

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a regulamentação do sistema financeiro produziu os seus frutos durante quase duas gerações, evitando crises semelhantes à dos anos trinta.

Mas o regresso a um capitalismo selvagem nunca deixou de ser uma aspiração de muitos financeiros, aspiração essa que viria a encontrar um suporte teórico na chamada escola de Chicago e no neo-liberalismo, candidato a “pensamento único” no planeta. As teorias de Milton Friedman viriam a ter o seu banco de ensaio no Chile de Pinochet, e seriam depois aplicadas na Inglaterra de Margaret Tatcher, nos Estados Unidos de Ronald Reagan, Clinton e Bush, e finalmente, na União Europeia.

Em consequência desta visão do Mundo, iniciou-se na década de oitenta o desmantelamento da regulamentação do sector financeiro nos Estados Unidos da América. Foram abolidas regras, limites, e os reguladores passaram a olhar para o outro lado para “não ver”os desmandos mais gritantes. As instituições do sistema financeiro cresceram sem limitações, e as suas transacções atingiram dimensões gigantescas, os fluxos financeiros ultrapassaram sessenta vezes o valor da riqueza criada anualmente no globo, no quadro de actividades muitas vezes altamente especulativas, de economia de casino.

Neste quadro, que um simples exercício de memória poderia ter evitado, o sistema financeiro – bancos, seguradoras, fundos de pensões, etc. – atingiu uma dimensão que lhe permitiu criar regras próprias de funcionamento, e capturar os próprios Estados e as suas instituições, tanto nos EUA como na Europa.

Quando a crise se declarou – mais uma vez – nos Estados Unidos da América, com o rebentar da bolha imobiliária e o “subprime”, as suas consequências foram para milhões e milhões de pessoas a perda das poupanças, dos seus postos de trabalho, e muitas vezes das suas casas. Está à vista o comportamento de risco dos responsáveis dos bancos e outros organismos do sistema, estão à vista as suas consequências dramáticas, mas os poderes do Mundo (EUA, União Europeia, G8, G20) nada fizeram em concreto para alterar este rumo, e exercer um enquadramento do sistema financeiro que permitisse evitar estes riscos.

A experiência dramática da Grande Depressão foi esquecida por aqueles que tinham por missão evitar a repetição daquela experiência.

E o sistema financeiro, depois de provocar a actual crise, e consciente da sua impunidade, tratou de se organizar para dela tirar todas as vantagens possíveis. Não lhe bastou ter provocado o caos na economia e a miséria na sociedade. Há que agora ir buscar directamente aos impostos dos contribuintes, através de governos cúmplices, a riqueza criada por quem trabalha, para com ela tapar os buracos da sua gestão danosa, e aumentar os lucros dos accionistas.

3.O problema não está no Estado Social, está nos bancos e no sistema financeiro sem controlo

Com a chegada da crise à Europa, os órgãos da União Europeia dão orientações aos Estados para investirem fundos públicos a toda a força para manter a actividade económica e compensar os prejuízos da banca. Esta orientação permitiu ao sistema financeiro receber 4,6 biliões de Euros de ajudas públicas, segundo declarações recentes do Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso.

Esta orientação desencadeou a crise das dívidas soberanas na Grécia, Irlanda e Portugal, sendo a Espanha, a Itália e a França, os senhores que se seguem. O sistema financeiro foi financiado pelos Estados, e está agora a aplicar taxas usurárias para lhes emprestar os meios necessários para ultrapassar os desequilíbrios que a crise provocou.

Neste quadro, a crise está a ser utilizada com três grandes objectivos.

Os “mercados”, ou seja, os prestamistas, procuram tirar todo o partido possível da situação emprestando às taxas de juro mais elevadas que seja possível, particularmente aos países em dificuldades. Um segundo grande objectivo aponta para o intensificar da especulação contra o Euro, visando acabar com um meio de pagamento que cria problemas à supremacia do dólar norte-americano. Finalmente, os governos conservadores invocam a crise para retirar direitos sociais e laborais às populações, numa tentativa de acabar com o Estado Social e com a organização social e económica do Primeiro Mundo, criada no seguimento da vitória das democracias na Segunda Guerra Mundial.

Importa combater essa tentativa de regressão civilizacional, em primeiro lugar mostrando o que o sistema bancário está a custar aos povos, e depois evidenciando os riscos da política de recessão utilizada para criar a desorientação e o pânico nas populações, preparando-as psicologicamente para aceitar todos os sacrifícios que os poderes financeiros e de Estado lhes queiram impor.

Lehman Brothers, Banco Português de Negócios, Banco Privado Português, Banco Dexia, são algumas instituições cuja falência custou ao erário público de vários países milhares de milhões de Euros, retirando aos Estados meios para garantir a organização dos serviços que os impostos dos cidadãos financiaram, e que em violação do pacto social estabelecido, os governos conservadores pretendem agora reduzir ou anular.

Recordemos o caso paradigmático de um pequeno país, a Islândia, cujo sistema bancário foi privatizado por governantes irresponsáveis, e entrou em falência por força de uma gestão criminosa, com perdas da ordem de dez vezes o valor do PIB anual daquele país, que a Inglaterra e a Holanda pretendem agora que sejam pagos aos depositantes desses países, forçando a Islândia a muitos anos de miséria para pagar essa conta.

4.Será que somos todos responsáveis pela crise?

Os porta-vozes do “pensamento único” neoliberal no governo, nos órgãos de comunicação social, nas faculdades de economia, insistem diariamente na tese da culpabilidade de todos os cidadãos, que através do seu despesismo, teriam estado na origem das dificuldades que o nosso País enfrenta. Fazem-no para esconder que há de facto culpados pela situação que vivemos, que essas pessoas ocupam e ocuparam lugares de mando, e que têm nome e actividades que seria importante escrutinar.

Essa gigantesca operação de desinformação pretende apresentar esta crise como uma inevitabilidade, em grande parte resultante do pecado dos cidadãos que aspiram a uma vida digna e com direitos, aspiração essa só atingível talvez no outro Mundo e se todos renunciarem aos direitos básicos do ser humano, apresentados pelo coro do”pensamento único” como um “privilégio” condenável.

Há que incutir aos cidadãos esse sentimento de culpa, e convencê-los que a política de crédito da banca não causou prejuízos ao País, que as Parcerias Público Privadas não constituíram um roubo gigantesco do erário público, que os lucros da banca não deveriam ter sido reinvestidos na capitalização das empresas, e que as fugas de capitais para os paraísos fiscais não retiram capacidade de investimento à nossa economia.

Será que é de todos os cidadãos a responsabilidade das ruinosas parcerias público privadas, contratadas em termos que garantem os lucros dos parceiros privados, e remetem os prejuízos para o Estado? Obviamente, a responsabilidade é dos governantes que as contrataram, ministros das pastas envolvidas, ministros das finanças, e primeiros-ministros, com grandes acções de publicidade enganosa afirmando que esses contratos não envolviam custos para o Estado. São milhares de milhões de custos anuais durante os próximos trinta anos!

Será que é responsabilidade de todos os cidadãos a política de crédito da banca portuguesa, que afectou às actividades produtivas (agricultura, pescas, indústria) 6 ou 7% apenas dos financiamentos concedidos, atribuindo ao imobiliário mais de 40%, o que teve como consequência que Portugal, com 5 milhões de famílias, tenha hoje 6 milhões de habitações? Obviamente dava jeito porque as taxas de lucro eram mais elevadas na especulação imobiliária, mas será justo e aceitável que os cidadãos do nosso país tenham que pagar com os seus impostos o empréstimo da troika de 12 mil milhões de Euros para a recapitalização da banca, face a muitos milhares de milhões de crédito mal parado por excesso de oferta de habitações novas?

Não, obviamente não somos todos responsáveis. E é tempo de pedir contas a quem nos enterrou na recessão.

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