Ex-presidente morreu em sua estância na cidade de Mercedes, na Argentina Foto: Reprodução
Samir Oliveira
No dia 6 de dezembro de 1976, às 2h45 da madrugada, morria aos 57 anos o ex-presidente brasileiro João Belchior Marques Goulart. No dia 6 de dezembro de 2011, 35 anos depois, a Justiça argentina abre um inquérito criminal para investigar o que ocorreu na estância La Villa, em Mercedes, na província de Corrientes.
O Juizado de Instrução de Paso de los Libres acolheu nessa data histórica a representação feita pelo procurador da República em Uruguaiana, Ivan Cláudio Marx, no dia 11 de novembro do ano passado. A partir de agora, caberá ao país vizinho investigar criminalmente as circunstâncias do falecimento do único presidente brasileiro que morreu fora do país.
Marx entrou com o pedido porque o inquérito criminal que tramitava no Brasil foi arquivado por decisão da Justiça, que acolheu a argumentação da procuradora responsável, que alegava que o fato já havia prescrito e que a lei de anistia sepultava qualquer investigação sobre as mortes ocorridas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). “Não compartilho a ideia de que esses crimes prescrevem. A Argentina tem atribuição para investigar o caso, pois a morte ocorreu lá”, explica o procurador.
Procurador Ivan Cláudio Marx provocou investigação da Justiça argentina | Foto: Juarez Tosi/PR-RS
A abertura de investigação pela Justiça argentina pode trazer à tona novos elementos que envolvem a controversa morte do ex-presidente. Além disso, politicamente a Argentina nunca fez questão de manter impunes os agentes de Estado – civis e militares – que torturaram, assassinaram e “desapareceram” pessoas durante as ditaduras no Cone Sul. “Eles não têm nenhum freio a esse tipo de investigação. A Suprema Corte já declarou que as leis de anistia não são válidas e esses crimes não prescrevem lá”, observa o procurador da República em Uruguaiana, Ivan Cláudio Marx.
A investigação argentina ajudará a elucidar lacunas que ainda persistem no inquérito civil que tramita na Procuradoria da República no Rio Grande do Sul. O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Alexandre Gravronski, explica que trabalhará em conjunto com os colegas do país vizinho.
“Eles seguirão na perspectiva criminal e nós, na civil, tentando descobrir o que aconteceu e assegurar o direito dos brasileiros a terem a informação correta sobre um fato importante. A ideia é trocarmos informações e atuarmos conjuntamente”, aponta Gavronski.
O procurador explica que a investigação civil em curso tem dois objetivos: identificar a fórmula da suposta substância química que teria causado o envenenamento de Jango e confirmar a existência de uma lista elaborada pelos órgãos repressores das ditaduras do Cone Sul com pessoas que seriam assassinadas – entre elas, estaria o nome do ex-presidente brasileiro.
Procurador Alexandre Gavronski conduz investigação civil sobre a morte de Jango | Foto: Leandro Godinho/PR-RS
“Nossa investigação segue na busca de afirmar o direito à memória e à verdade, para que o povo saiba se o Brasil teve um ex-presidente assassinado pela ditadura ou não”, comenta Gavronski.
Assim como Ivan Cláudio Marx, ele também acredita que a ação da Justiça argentina poderá impulsionar o inquérito brasileiro. “Eles dão muita atenção a esse tipo de caso. Temos esperança que consigam recuperar documentos e testemunhas que estão lá”, projeta.
“Provável atentado à vida do meu avô é exemplo típico da Operação Condor”
A morte do ex-presidente João Goulart é recheada de especulações e vazia de certezas. Passados 35 anos, o que se sabe é insuficiente para dizer que ele foi assassinado, mas também é muito pouco para determinar que foi uma morte natural.
É notório que Jango sofria de problemas cardíacos e tomava pelo menos três tipos de remédios, dois deles comprados em qualquer farmácia e um que era importado diretamente da França. O ex-presidente chegou a ter um infarto em 1969, no Uruguai, onde vivia desde que foi expulso do Brasil em função do golpe dado em 1964.
Apesar de o desgaste do exílio forçado ter tido efeitos negativos na saúde de Jango, é fato também que o ex-presidente vivia sob constante vigilância dos órgãos de repressão e sua popularidade – aliada ao fato de estar bem próximo do Brasil – desagradava a cúpula da ditadura tupiniquim.
O ex-agente do serviço de inteligência do Uruguai, Mário Neira Barreiro, que está detido na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas desde 2003 por assalto a banco e tráfico de armas no Brasil, já declarou que vigiava Jango 24 horas por dia. Em depoimento gravado por João Vicente, filho do ex-presidente, em 2006, o uruguaio disse que foi colocada uma cápsula com um hipertensor no frasco do remédio importado da França.
Neira Barreiro também comentou que o assassinato de Jango foi ordenado pelo próprio Ernesto Geisel – general no comando do Brasil na época -, que teria delegado a incumbência ao delegado Sérgio Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo. Porém, a palavra do ex-agente secreto uruguaio por si só não prova nada e as pistas que ele deu não conduziram a elementos concretos. Além disso, ele se contradisse em outras declarações posteriores.
Christopher Goulart quer discutir investigação com a presidente da Argentina | Foto: Caco Argemi/Palácio Piratini
Além do estado de saúde de Jango e das explicações de Neira Barreiro, outro fato paira sobre a morte do ex-presidente: a Operação Condor. A morte de João Goulart ocorreu num período em que a cooperação entre as ditaduras da Argentina, do Uruguai, do Brasil, do Chile, do Paraguai, da Bolívia e do Peru trabalhavam em estreita aliança contra os militantes de esquerda no continente. Esse tipo de ação era articulado clandestina e oficialmente entre os regimes, com extradições forçadas, seqüestros além das fronteiras nacionais e tortura em território estrangeiro.
Para o neto do ex-presidente, Christopher Goulart, a morte de Jango se insere perfeitamente no contexto de cooperação entre as ditaduras sul-americanas. “O provável atentado à vida do meu avô é um exemplo típico de um crime da Operação Condor”, considera.
Ele avalia que uma investigação criminal conduzia na Argentina pode ter efeitos bastante positivos no esclarecimento da morte do ex-presidente brasileiro. “É um país que respeita mais as questões de direitos humanos, principalmente no que tange aos crimes da ditadura”, opina.
Aproveitando a abertura do inquérito pela Justiça argentina, Christopher Goulart quer ir além: solicitar uma reunião com a própria presidente do país vizinho, Cristina Kirchner, para tratar do caso. “Irei a Paso de los Libres prestar depoimento como representante da família e pretendo levar isso à presidente. Ela é do Partido Peronista, e meu avô já foi à Argentina a convite do Perón”, compara.
Do Sul 21
Nenhum comentário:
Postar um comentário
”Sendo este um espaço democrático, os comentários aqui postados são de total responsabilidade dos seus emitentes, não representando necessariamente a opinião de seus editores. Nós, nos reservamos o direito de, dentro das limitações de tempo, resumir ou deletar os comentários que tiverem conteúdo contrário às normas éticas deste blog. Não será tolerado Insulto, difamação ou ataques pessoais. Os editores não se responsabilizam pelo conteúdo dos comentários dos leitores, mas adverte que, textos ofensivos à quem quer que seja, ou que contenham agressão, discriminação, palavrões, ou que de alguma forma incitem a violência, ou transgridam leis e normas vigentes no Brasil, serão excluídos.”