Guerrilheiro Virtual

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

“País laico não pode confundir pecado e delito”


Mónica Xavier: "Aborto se discute há cem anos no Uruguai"
Foto: Partido Socialista


O Senado uruguaio aprovou na semana passada a legalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação. O tema, que sempre gera controvérsias, é discutido há cem anos no país, estima a senadora Mónica Xavier, da Frente Ampla. Na década de 1930, o aborto chegou a ser totalmente legalizado. Só em nossos dias, a discussão foi retomada fortemente.


Em 2008, o Parlamento uruguaio aprovou um extenso marco legal sobre direitos sexuais e reprodutivos, mas o então presidente Tabaré Vasquez, mesmo contra o que defendia a Frente Ampla, vetou o capítulo mais polêmico do projeto: o que permitia a interrupção voluntária da gravidez com até 12 semanas. “O que queremos é completar a lei de direitos sexuais e reprodutivos com o capítulo de interrupção voluntária da gravidez”, afirma Xavier.
 
Cardiologista, 55 anos, senadora desde 2000 pelo Partido Socialista – uma das muitas “listas” que compõem a Frente Ampla no complicado sistema partidário do Uruguai – Mónica Xavier milita pela saúde pública e foi a proponente da lei que descriminaliza o aborto. A dificuldade, como era de se esperar, é a resistência da Igreja Católica. “Não sei quantas vezes nos excomungaram, nos trataram como assassinos”, conta.
 
Mónica ressalta, contudo, que pesquisas de opinião indicam que a oposição ferrenha é das autoridades católicas, não dos fiéis. Em entrevista por telefone ao Sul21, ela falou sobre como se deu o processo de discussão do aborto no Uruguai, que ainda precisa passar pela Câmara dos Deputados, e defendeu uma separação mais clara entre Igreja e Estado. “Um país laico como o Uruguai não pode confundir pecado com delito”, disse.



Xavier: "A ciência não tem uma única opinião sobre
começo da vida"
Foto: Partido Socialista


Sul21: Por que a senhora defende a legalização do aborto?
 
Mónica Xavier – Creio que aquela mulher que está grávida e que espera por seu filho é tão respeitável quanto aquela que por alguma situação está grávida e não pode prosseguir com a gravidez. É um tema muito íntimo e a saúde pública precisa garantir igual direito. Nós, legisladores, devemos legislar para que este direito seja respeitado.
 
Sul21: Os oposicionistas dizem que a vida já existe desde o início da gravidez e que, portanto, o aborto seria como um assassinato. Como a senhora vê esta opinião?
 
Mónica Xavier – Com relação à vida, a ciência não tem uma única opinião. Não se pode pensar que uma célula seja, em todo o caso, uma pessoa. Me parece que os direitos que se consagram, por exemplo, na Constituição uruguaia são referidos aos nascidos. Isto pelo menos em nossa legislação. Mesmo o Pacto de San José, na Costa Rica, (também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, celebrada em 1969, tornada parte da Constituição brasileira em 1992) que diz que a vida começa desde a concepção, coloca uma expressão que relativiza isto, diz: “em geral”. Isto foi produto de uma negociação importante, em que a esta concepção se dá uma margem de flexibilidade, porque se não, por exemplo, quando uma mulher enferma tem sua doença agravada pela gravidez, nós médicos temos a responsabilidade de interromper a gravidez, mas estaríamos cometendo homicídio. Se colocamos este direito como absoluto não avançamos em algo que é uma realidade em nosso continente: as mulheres mais vulneráveis estão muito desprotegidas com relação às interrupções de suas gravidezes. Poderá nos parecer bom ou ruim, mas os legisladores devem legislar em nosso país, como em tantos outros da América Latina, para sociedades diversas, sociedades multiculturais, multirreligiosas. Todos têm direito a ter opiniões diferentes. Mas também todos têm direito a que o Estado os proteja, neste e em outros temas.
 
Sul21 - Outro argumento é que o número de interrupções de gravidez vai aumentar se o procedimento for legalizado.
 
Mónica Xavier – Não temos nenhum registro científico que mostre que os abortos aumentam quando se flexibilizam os marcos legais. Quando se flexibiliza, sem dúvida, há um pico de interrupções registradas, porque o registro é mais efetivo. Quando é considerado um delito ninguém sai confessando por aí que o cometeu. Ainda não há elemento que avalie a despenalização quando esta é feita com a integralidade da educação em sexualidade e reprodução. Completamos o marco legal dos direitos sexuais e reprodutivos, lei que foi votada em 2008. Consideramos este projeto (de interrupção da gravidez) parte desta lei. Naquela ocasião, o presidente (Tabaré Vasquez) vetou o capítulo de interrupção voluntária da gravidez. Por isto estamos restituindo um capítulo que é uma lei aparte, mas é parte integral de como conseguimos os direitos sexuais e reprodutivos em sua integralidade.



Aborto, hoje, é farmacológico, o que torna ainda mais
injusto que mulheres pobres sejam submetidas a
procedimentos cirúrgicos
Foto: Fernando da Rosa/Wikimmedia Commons


 
Sul21 – No Brasil, as mulheres das classes mais altas conseguem fazer um aborto em um consultório médico, como se não fosse proibido. As mais pobres têm que fazer colocando em risco suas vidas. No Uruguai acontece o mesmo?
 
Mónica Xavier – Acontece o mesmo. Ademais, todos temos que saber que hoje o aborto é farmacológico, não depende de procedimentos invasivos como antes. Isto abre pelo menos duas coisas. Uma é que não há direito, então, a que as mulheres mais pobres, por não acederem a um serviço de saúde que lhes garantisse a interrupção da gravidez, adoeçam ou morram nas mãos de pessoas inescrupulosas. No Uruguai, nos últimos anos, não temos registrado mortalidade materna, mas, sim, morbidade. Uma mulher jovem, de 18 anos, em setembro, esteve muito tempo internada em CTI, a deixaram sem capacidade reprodutiva pelo resto de sua vida e não teriam porque ter feito isto. Com um medicamento corretamente indicado não se requer um procedimento ambulatório.
 
 
Sul21: Creio que não tenha sido fácil chegar até a votação no Senado. Como foi o processo de debate até chegar à votação?
 
Mónica Xavier – Faz cem anos que se discute o aborto no Uruguai. Entre 1934 e 1938, o aborto era legal. O que se vai fazer agora é despenalizar e não legalizar. Vai seguir tendo penas se não se faz dentro das 12 semanas que a lei prevê. É uma flexibilização e creio que vamos por um bom caminho. Tivemos um descenso importante da mortalidade materna por aborto inseguro, porque o marco legal indica que os profissionais de saúde devem assessorar as mulheres que estão cogitando interromper sua gravidez, devem assisti-las se tiverem repercussões negativas após o aborto, mas não podem fazê-lo no momento da interrupção. Isto as coloca na clandestinidade e as põe em risco. O que queremos é completar a lei de direitos sexuais e reprodutivos com o capítulo de interrupção voluntária da gravidez. Já foi muito discutida, porque – essencialmente a Igreja Católica – nos procederam insultos, não sei quantas vezes nos excomungaram, nos trataram como assassinos, nos compararam com Herodes. Não vamos mudar nosso tom de tolerância por quem pensa diferente, porque isto é a democracia. Consagrar direitos na democracia entendemos que deve ser feito com muito diálogo, muito respeito e sem entrar em provocações.
 
Sul21: Como a senhora vê a intervenção da religião nas leis, no Parlamento, nos governos?
 
Mónica Xavier – Desmedida, pelo que vinha lhe dizendo. Começamos nossa intervenção no Senado dizendo que um país laico como o Uruguai não pode confundir pecado com delito. E isto é o que temos feito durante todo o tempo, em nossa opinião. Para determinadas religiões, o aborto pode seguir sendo um pecado, mas para o Estado não pode ser um delito. O Estado deve garantir o direito das mulheres.



Autoridades religiosas se opõem ao aborto, não
necessariamente as pessoas religiosas, diz a senadora
Foto: Divulgação


Sul21: Se pode dizer que os religiosos já estiveram mais fortes no Uruguai?
 
Mónica Xavier – Não, sempre exercem uma pressão importante. Mas são as autoridades (religiosas). A sociedade, mesmo os que se autodefinem como religiosos, inclusive da religião católica, entendem que é preciso regular o aborto de maneira diferente. Nas pesquisas de opinião muitos que se dizem católicos entendem que o aborto precisa ser regulado com situações em que não seja considerado delito.
 
Sul21: A senhora tem confiança de que o projeto será aprovado também na Câmara dos Deputados?
 
Mónica Xavier – Penso que sim. Na legislatura passada isto já ocorreu. Vamos trabalhar para conseguir com que os deputados tenham claro que é uma necessidade continuar avançando em uma política que tem reduzido danos.
 
Sul21: No Senado, foi aprovado por uma pequena diferença de votos. Na Câmara também deverá ser difícil a aprovação?
 
Mónica Xavier – Sim, porque muitos deputados representam uma circunscrição pequena. Podem ser mais suscetíveis a sofrer pressão de autoridades da Igreja Católica nestes lugares.
 
Sul21: No Brasil, não se consegue nem começar a debater alguns temas no Parlamento, como o aborto, ou a legalização da maconha, que também já está sendo debatida no Uruguai. Como o Parlamento uruguaio conseguiu começar o debate destes temas delicados?
 
Mónica Xavier – Levando a voz da sociedade civil ao âmbito parlamentar. Trabalhando muito em sintonia com a academia. Eliminando preconceitos e dando aos temas justa valorização. E, sobretudo, deixando claro que estas leis, pelo fato de serem leis, não obrigam ninguém a fazer o que não quer fazer, mas, sim, tiram pessoas de um círculo de clandestinidade que sempre traz consequências nefastas.

Felipe Prestes

No Sul21
 
 
Do Contexto livre

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