Há uma aposta clara em que, ao escolher seus próprios interlocutores na base aliada, a presidenta conterá os movimentos de chantagem que têm sucedido de forma permanente a troca dos ministros vitimados por denúncias. E que existe espaço na agenda para correr esse risco.
Não parece aleatória a estratégia política assumida pela presidenta Dilma Rousseff (PT), desde que iniciou uma reforma ministerial em capítulos. A leitura que deve ser feita da ação de Dilma junto à base aliada (aí incluídas as escolhas ministeriais e de lideranças no Congresso politicamente mais afinadas com o perfil que quer dar às relações entre Executivo e Legislativo) é a de que ela bancou o risco de desarranjar uma coalizão montada pelo governo anterior, que também deu sustentação à sua candidatura, para fugir ao permanente impasse de demitir auxiliares indicados pelos partidos a cada denúncia de corrupção, e em seguida ser obrigada a se submeter à chantagem dos mesmos partidos para manter as pastas nas mãos dos grupos hegemônicos nas legendas. E, se correu o risco, é porque o governo avaliou que há espaço para tentar arranjos na base partidária, já que não existem questões urgentes a serem decididas pelo Congresso – a única, o Código Florestal, prescinde de uma enorme base de apoio, já que as posições individuais dos parlamentares estão muito consolidadas e a bancada ruralista é muito forte. Mantendo ou não os instrumentos tradicionais de negociação com a base aliada, o Executivo não teria nenhuma garantia de lealdade nessa questão.
Daqui para o final do ano, a gestão do Orçamento, com toda a flexibilidade que a lei dá ao governo, e as medidas para neutralizar os efeitos da crise financeira internacional sobre a economia têm mais relevância do que as matérias que tramitam no Congresso. O que é importante de fato esbarra em questões que transcendem acordos partidários – caso não apenas do Código Florestal, mas também da Reforma Política, onde uma decisão partidária não consegue se sobrepor aos interesses individuais dos parlamentares. Apenas o PT consegue fechar questão sobre o assunto.
Foram 11 os ministros substituídos até agora, mais dois líderes do governo – parte deles por baixa produtividade, outra parte vitimada por denúncias. Nesse último caso, a presidenta está tentando inverter a mão. Como a hegemonia dos grupos internos, nos partidos tradicionais, é definida pelo poder de troca desses grupos com o governo federal, está apostando que, ao subtrair influência desses líderes sobre a máquina administrativa e transferi-los a outros que estão hoje à margem das decisões partidárias, desequilibrará o poder interno a favor de pessoas mais comprometidas com o seu governo.
Ao substituir o senador Romero Jucá (PMDB-RR) por Eduardo Braga (PMDB-AM) na liderança do governo no Senado, ela não preteriu o maior partido da base de sustentação do governo, mas grupos internos que detinham há nove anos o monopólio das relações com o governo, especialmente os ligados a José Sarney (AP) e Renan Calheiros (AL). É uma aposta de que, se a interlocução com o Executivo define a hegemonia interna do PMDB, a presidenta pode ter o poder de renovar internamente o partido, ao optar por outros interlocutores.
O mesmo comportamento teve antes, em relação aos ministros escolhidos. Dilma tem alterado a lógica tradicional de que é preciso simplesmente se submeter às indicações dos aliados, mesmo que elas custem alimentar, ao longo de toda a gestão do indicado, a cota de poder de quem indicou – e, em consequência, os instrumentos de pressão sobre o próprio governo. Até agora, Dilma tem nomeado alguém do partido do ministro demitido, mas com compromissos de lealdade com o governo, não com os grupos dominantes de sua agremiação. Esta foi a origem da revolta do PR, que anunciou a saída do governo: o ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos, que é do PR, porém não faz parte do grupo dominante do partido, não é aceito pelos líderes da legenda como cota partidária, e sim como cota pessoal de Dilma.
No PDT, o movimento é semelhante. Após a demissão de Carlos Lupi (RJ) do Ministério do Trabalho, o político retomou o lugar de presidente da legenda, acirrando uma divisão interna que se prolonga quase desde a morte do fundador do partido, Leonel Brizola. O deputado Brizola Neto (RJ) está na contramão do grupo de Lupi: tem formação política que permite uma aderência mais orgânica ao governo, isto é, suas posições são muito mais próximas de um governo de esquerda do que as de Lupi. O ex-ministro manteve o PDT nos moldes deixados por Brizola avô (poder concentrado na Presidência e pouca seletividade na escolha de quadros) sem ter o carisma do velho caudilho. O poder de Lupi no PDT também depende do seu poder de interlocução com o governo. A escolha de Brizola Neto para o Trabalho, se for confirmada, dará mais consistência ideológica a uma pasta que, num governo petista, com tradicionais ligações com o sindicalismo, tem que servir como contraponto a outros ministérios destinados à direita governista. A lealdade do deputado, sem que se exija dele abrir mão de suas convicções políticas, será naturalmente maior a Dilma do que ao PDT representado por Lupi.
A reação dos partidos aliados ao ajuste pretendido por Dilma na representação dessas legendas em seu governo já seria grande, pois esses movimentos ameaçam o status quo das lideranças que detém o comando dos partidos de formação tradicional. Torna-se maior no período pré-eleitoral porque aí entram novos elementos de possível barganha. O pré-candidato do PT à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, está pagando a fatura pelo jogo duro de Dilma. Como a vitória na capital paulista é fundamental na definição do jogo político depois das eleições, os partidos aliados ao governo nacionalmente passaram a usar a eleição local para reverter o quadro. Com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda afastado das lides eleitorais, a aposta dos aliados do governo federal é a de que o poder de barganha eleitoral reate as relações de poder dos grupos alijados da convivência com Dilma, por conta das mudanças na correlação de forças no Congresso.
É uma aposta que não pode ser traduzida por falta de orientação política do atual governo, mas por uma estratégia política diferente da gestão anterior. Se a área gerencial da atual administração já trouxe do governo Lula o perfil de Dilma, que foi sua principal colaboradora, no campo político o novo governo ainda não tinha uma cara própria. A presidenta, mesmo obrigada a apelar para a intermediacão do ex-presidente Lula de vez em quando, assumiu correr um risco. Mas ela não tinha alternativa a não ser a de imprimir o seu próprio estilo também nas relações políticas mantidas com o Congresso. Sem traquejo de negociação, conhecimento dos atores envolvidos na permanente barganha do poder e carisma de Lula, obrigatoriamente teria que impor padrões de relacionamento com seus alidos, sob pena de ficar refém da política tradicional.
Maria Inês Nassif, colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.
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