A democracia é hoje um bem internacional. Nem a soberania interna autoriza o seu desprezo.
Suspenso preventivamente do Mercosul, pela infringência à cláusula democrática, o governo do Paraguai agora brada pelo mesmo direito de defesa que negou ao presidente Fernando Lugo.
A ruptura da ordem política, reconhecida pelos demais parceiros do órgão, ficou evidente com a destituição precedida por um processo que mal passou das formalidades.
Em pouco mais de vinte e quatro horas, o presidente foi cientificado de acusações genéricas, sem possibilidade de produção de provas, e julgado ao cabo de sessenta minutos de defesa.
“Menos do que o recurso de quem ultrapassou o sinal vermelho”, ironizou o chanceler argentino que estava no grupo de ministros que foi a Assunção e tentou negociar com o vice-presidente.
A resposta que receberam foi negativa – o impeachment relâmpago sepultou propositadamente qualquer possibilidade de defesa (e na verdade também de julgamento) para que a decisão, que já estava tomada antecipadamente, se transformasse sem demora em fato consumado.
A Justiça paraguaia afirma que agora é tarde para recorrer e que o presidente “aceitou” o juízo político – mas que alternativa lhe foi concedida nesse golpe congressual?
Espalha-se pela grande imprensa a tese de que críticas ao processo paraguaio nada mais são do que ofensas à soberania.
Mas a decisão de suspender a participação do Paraguai na cúpula do Mercosul mostra que, atualmente, nenhum país é uma ilha.
A preservação ou não da democracia deixou de ser apenas um assunto interno, que só interessa a seus próprios habitantes.
A positivação do direito internacional, os pactos regionais, a organização dos países em grupos, por tratados multilaterais, criam exigências recíprocas para os Estados. A manutenção do status democrático certamente é uma delas – acontece no Mercosul como aconteceria na União Europeia.
A democracia é hoje um bem internacional. Nem a soberania interna autoriza o seu desprezo.
Mas, como já havia acontecido recentemente em Honduras, as novas rupturas constitucionais nos alertam que o passado de golpes, que tanto assombrou a América Latina durante os anos da guerra fria, ainda não está sepultado.
Hoje, eles podem estar mais sofisticados ou sutis, com mecanismos pretensamente legais, e com menor emprego de tanques e baionetas. Mas a violência é a mesma toda vez que a vontade popular é substituída pelo consórcio de interesses que em determinado momento se plasmam no Parlamento.
O episódio pode nos ensinar diversas lições.
Para o direito, a principal delas é entender que o processo não é rito vazio, composto de aparências. Mas, em si mesmo, uma garantia democrática.
Serve para assegurar que uma decisão somente seja tomada depois de todas as cautelas e oportunidades reais às partes. Isso vale para um simples réu acusado de crime e também para um presidente da República.
Quando abrimos mão da garantia do processo é um sinal evidente que a democracia se rompeu.
Marcelo Semer
Do Sem Juízo
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