Guerrilheiro Virtual

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A solução islandesa

Manifestação pelo referendo. A crise económica global, que se desenvolve desde meados de 2008, continua o seu curso inexorável. Nas últimas semanas assistimos a uma situação sem precedentes, não só pelo facto de os EUA estarem à beira do incumprimento, mas pela combinação desta situação com uma escalada sem precedentes da crise da dívida na zona euro. Jogando no limite das suas possibilidades os líderes europeu e os dos EUA chegaram a acordos preliminares que parece só terem conseguido exacerbar a crise. Uma nova recessão global está sendo anunciada, enquanto a única certeza é que os trabalhadores e os povos continuam a pagar as consequências.

Paralelamente, na Islândia, uma sucessão de acontecimentos políticos desde 2008, impulsionados por fortes mobilizações sociais forçaram a renúncia em bloco do governo e eleições antecipadas, a convocação de dois referendos populares que levaram à votação maciça pelo não pagamento da dívida, e pela ida a tribunal e a prisão temporária de banqueiros e funcionários e a possibilidade de vir a haver uma nova Constituição. No entanto, apenas nas redes alternativas (entre elas Rebelión) e alguns sites (como o CADTM) tem circulado esta informação que, na sua maioria tem sido ignorada pela comunicação tradicional.

Localizada no norte da Europa boreal, a Islândia é uma pequena ilha, rodeada por ilhas e ilhotas ainda menores. Em conjunto, atingem uma área de aproximadamente 103 mil km2 e abrigam 320 mil pessoas. A sua economia dispõe de importantes fontes de energia hidráulica e geotérmica, mas depende muito da indústria de pesca, que corresponde a 40 por cento das suas receitas e emprega sete por cento da força de trabalho.

Na década de 80 o governo – sob pressão da onda thatcherista – lançou a privatização da pesca: impôs quotas para as capturas e fez milionários alguns pescadores. Em paralelo, juntou-se à política da "oferta", típica da "Reaganomics", baixando impostos e desregulamentando mercados, ao mesmo tempo que começou a difundir a política de privatizações. Como se algo estivesse faltando, Milton Friedman visitou repetidamente Reykjavik, a capital.

Apesar deste avanço neoliberal, o país continuou a apresentar indicadores significativos. O estado garantia – sob um regime de bem-estar – cuidados de saúde universais e ensino superior gratuito aos seus habitantes. A esperança de vida estava entre as mais altas do mundo e a taxa de desemprego era insignificante, não chegando a dois por cento. O governo investiu em energia verde e em novas tecnologias, e em 2007 foi o primeiro no Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD (Programa das Nações Unidas), bem à frente de países como os Estados Unidos, França e Reino Unido. Em 2009 foi descrito pela Organização das Nações Unidas como o terceiro país mais desenvolvido do mundo, sendo colocado o seu PIB per capita entre os dez melhores.

Primeira expressão da crise

No entanto, a partir de 2003, o ano em que se concretiza a privatização de três dos principais bancos (Kaupthing, Glitnir e, especialmente, Ice-save), o país entra plenamente nos fluxos financeiros internacionais. Tanto a banca como os banqueiros começaram uma corrida desenfreada para expandir as suas actividades dentro e fora do país. Foi impulsionada uma política de endividamento e começou a incubar-se uma crise que explodiu em 2008. Esta crise é considerada a primeira expressão da crise global que hoje desestabiliza os centros económicos e financeiros do mundo.

Tudo começou quando, após a privatização dos bancos, o governo promoveu uma política de "casa própria", que os bancos apoiaram com empréstimos hipotecários de fácil acesso e cujas taxas estavam ligadas à evolução dos preços, mas não aos salários. Ao mesmo tempo, o consumo foi incentivado com empréstimos de curto prazo. Quando em 2008 o défice comercial forçou à desvalorização da moeda nacional em 50 por cento, a inflação disparou e as taxas (hipotecárias ou de créditos comuns) ficaram impagáveis.

Para financiar todo esse festival creditício os bancos foram adquirindo fundos do mercado mundial, especialmente na Grã-Bretanha e Holanda. No momento da explosão, a dívida da banca superava em mais de dez vezes o PIB nacional. Resultado: mais de um terço da população agora está sobre-endividada; 13 mil casas foram confiscadas e dezenas de milhares de famílias entraram na pobreza.

Para o senso comum tudo isto só foi possível graças à conspiração fraudulenta de banqueiros, empresários e políticos. Para alguns analistas, isto processou-se através de um grupo de não mais de trinta pessoas. No entanto, mesmo que este grupo tenha sido o instrumento de uma determinada política não pode esconder que o que aconteceu na Islândia é parte da crise mundial, que como sempre nas grandes conjunturas explode pelo lado financeiro, mas as suas raízes estão na economia produtiva.

No entanto, a resistência da população deste pequeno país rompeu com a política do "possível" e tem feito progressos significativos. A sequência destes eventos é bastante significativa:

– Em 2009, protestos e manifestações de rua, incluindo "panelaços", rejeitaram o plano de ajustamento do FMI, provocaram a demissão do governo e obrigaram a convocar eleições antecipadas. O novo governo tentou impor por lei uma reestruturação da dívida, que totaliza 3.500 milhões de euros, o que significa que cada família iria pagar 100 euros por mês durante 15 anos.

– Em 2010, a população, de novo nas ruas, recusou esta lei; o então presidente decide não ratificá-la e convoca um referendo popular. Noventa e três por cento dos eleitores disse "não ao pagamento da dívida ". Em paralelo desenrola-se uma investigação sobre as responsabilidades na crise, que conclui com vários banqueiros e funcionários processados e presos, embora libertados de imediato, enquanto outros fugiram do país. Um dos banqueiros está ainda sendo procurado pela Interpol.

– Em 2011, um novo referendo ratificou o "não pagamento", por 60 por cento dos votos.

Reforma constitucional

Em numerosas ocasiões, a sociedade islandesa propoz-se substituir a Constituição em vigor desde 1944, uma cópia da dinamarquesa, que apenas mudou "rei" para "presidente". A actual crise financeira estimulou esta necessidade e abriu o debate político, pelo que o Parlamento decidiu criar a Assembleia Constituinte, para a qual foram eleitos por voto popular 25 representantes (10 mulheres e 15 homens), entre os 522 com mais de 18 anos que se apresentaram. No entanto, antes de começarem as deliberações, a eleição foi invalidada pelo Supremo Tribunal por vícios processuais. A Assembleia foi, então, transformada em Conselho Constitucional, composto pelas mesmas pessoas antes eleitas, que começaram a realizar reuniões no início de Abril em três grupos, e que deviam apresentar as suas propostas nos fins de Julho passado (até ao momento não se dispõe de nenhuma informação sobre se isto se concretizou).

As reuniões têm sido públicas – todas as quintas-feiras o Conselho reúne-se e discute, numa transmissão ao vivo na web. Os islandeses podem consultar e propor semanalmente novos artigos e alterações para inclusão na Constituição, e dar opinião sobre os mesmos. Desempenham aqui um papel decisivo as redes sociais (Facebook, Twitter e Flickr), enquanto que no Youtube são publicadas regularmente entrevistas com cada um dos 25 membros do Conselho, no que a cultura popular tem chamado de "Democracia 2.0 ".

O sistema de aprovação final não está claramente determinado. Supõe-se que o grupo de redacção levará ao Conselho o projecto consensual da nova Constituição e se ele aprovar, passa finalmente ao Parlamento. No entanto, esse processo ainda não está claro e esta indefinição tem levado a surgirem vozes de alerta, prevendo que "... os políticos vão querer revê-la antes do referendo", pelo que clamam para que "... as pessoas possam votar o que escreveram , antes que os políticos metam a mão, considerando que daqui vai sair um novo sistema com o qual queremos, entre outras coisas, erradicar a corrupção".

Para além do resultado final deste confronto, a Islândia mostra que é possível pensar em soluções alternativas, que não é necessário salvar os bancos como um passo para quaisquer outras medidas. Que é possível romper com o "possibilismo" que o cerco neoliberal impõe e fazer com que não sejam os do costume a pagar os custos. Que há um outro caminho que envolve decisões não só económicas, mas fundamentalmente políticas e democrática. A Islândia é uma excepção, uma singularidade, uma raridade, não só por deixar falir os seus bancos, perseguir os seus banqueiros e funcionários ou decidir emendar a Constituição, mas pela forma democrática e participativa com que essas realizações se tornam possíveis

[*] Membro do grupo EDI (Economistas de Izquierda)
O original encontra-se em www.diarioreddigital.cl/...

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