Guerrilheiro Virtual

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os horrores das ditaduras


Um homem em seu leito de morte vira-se para o filho, já adulto, e lhe conta um segredo da vida inteira; "Eu o comprei de um padre em Zaragoza". O que poderia parecer trecho de um folhetim barato aconteceu este ano, na Espanha, e desencadeou uma torrente de histórias semelhantes em todo o país, trazendo à tona um trauma nacional, encoberto por um véu de vergonha e crueldade.

A história começou na Espanha franquista e é reveladora de como as ditaduras podem ser mais cruéis do que imaginamos. A estimativa é de que milhares de bebês tenham sido roubados de suas mães por enfermeiras, padres e médicos, numa prática que, incrivelmente, se estendeu até os anos 1990. Mais de 900 casos estão sendo investigados, novas histórias continuam a ser reveladas, e os advogados acreditam que mais de 300 mil recém-nascidos tenham sido levados de suas mães logo após o parto.

As vítimas eram filhos de pais considerados "indesejáveis" pela ditadura franquista, a maioria de famílias das classes trabalhadoras. Uma espécie de limpeza ideológica, com aprovação do Estado e participação de médicos e da poderosa Igreja católica sob o período de Franco. Posteriormente, o pretexto se tornou econômico, com crianças sendo retiradas de mães pobres para serem entregues a famílias abastadas e sem filhos.

Em contundente e emocionante matéria na BBC, a jornalista Katya Adler valeu-se da condição de ter dado à luz em uma clínica fundada por um médico envolvido com os sequestros para entrevistá-lo, solicitando uma consulta. O doutor Eduardo Vela, cujo nome aparece em muitas investigações, a recebeu em sua casa, em Madri, e confrontado com a revelação de que estava diante de uma jornalista, pegou um crucifixo de metal sobre a sua mesa e disse que sempre atuou em nome de Deus.

Esta história permanecia encoberta até os dias de hoje porque a anistia acordada entre as forças políticas no processo de transição da ditadura franquista para a democracia impedia as investigações. Mesmo em se tratando de crime contra a humanidade, os casos não eram levados adiante pelo temor de tocar em velhas feridas e de romper o pacto que silenciou as atrocidades do período mais terrível da história espanhola.

O governo espanhol ainda resiste a abrir um inquérito nacional, mas as famílias estão indo à luta, descobrindo que não existem corpos nas supostas sepulturas de seus filhos e buscando justiça. Muitos espanhóis acorrem às clínicas para exames de DNA em busca de seus pais verdadeiros. A cicatriz espanhola ainda não se fechou e continuará a sangrar até que sociedade e Estado tenham a dignidade de encará-la de frente.

O Brasil também precisa enfrentar este processo. Parece que temos vergonha da nossa própria história, de nos revoltarmos e de não aceitarmos que um jovem de 26 anos, como Stuart Angel Jones (foto), preso pelo Estado, tenha tido sua boca presa ao cano de descarga de um jipe e sido arrastado pelo pátio interno de uma base militar até a morte. E que sua mãe, assim como as mães espanholas, em busca de justiça, tenha morrido num acidente de causas suspeitas, em São Conrado, no Rio de Janeiro.

Batizar o túnel que liga a Gávea a São Conrado com o nome de Zuzu Angel foi uma forma de começar a enfrentar essa história. Mas falta muito mais. É preciso saber quem foram os executores das torturas, desaparecimentos e mortes, e seus mandantes. Seus nomes precisam ser revelados, como o do doutor Eduardo Vela, em Madri, mesmo que não venham a ser punidos em nome de uma Lei da Anistia obsoleta, estabelecida quando a correlação de forças era completamente diferente da atual.
 
Pesquisado do Direto da Redação

Nenhum comentário:

Postar um comentário

”Sendo este um espaço democrático, os comentários aqui postados são de total responsabilidade dos seus emitentes, não representando necessariamente a opinião de seus editores. Nós, nos reservamos o direito de, dentro das limitações de tempo, resumir ou deletar os comentários que tiverem conteúdo contrário às normas éticas deste blog. Não será tolerado Insulto, difamação ou ataques pessoais. Os editores não se responsabilizam pelo conteúdo dos comentários dos leitores, mas adverte que, textos ofensivos à quem quer que seja, ou que contenham agressão, discriminação, palavrões, ou que de alguma forma incitem a violência, ou transgridam leis e normas vigentes no Brasil, serão excluídos.”