Guerrilheiro Virtual

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Wadah Khanfar, a Al-Jazeera e o triunfo da propaganda televisiva

"O Coração da Notícia, Todos os Ângulos, Todos os Lados"
A Al-Jazeera, a cadeia de televisão qatariana que, em 15 anos, se impôs no mundo árabe como uma fonte original de informações, envolveu-se recentemente numa operação de intoxicação simbólica com o objetivo de derrubar os regimes líbio e sírio a qualquer custo. Esta mudança, mostra Thierry Meyssan, não é fruto de alguma conjuntura específica, e tem vindo a ser construída há muito tempo por personalidades que souberam ocultar os seus interesses pessoais do grande público.
 
Revelações…
Wadah Khanfar
A cadeia qatariana Al-Jazeera anunciou, no dia 20 de setembro de 2011, a demissão do seu diretor geral, Wadah Khanfar, e a sua substituição por um membro da família real, o sheique Hamad Ben Jassem al-Thani.
 
O sheique Hamad faz parte dos quadros da empresa Qatargas. Ele trabalhou durante um ano em La Défense, Paris, na Total, a quinta maior empresa petroquímica de capital aberto do mundo. No passado, presidiu o conselho de administração da Al-Jazeera.
Esta novidade é apresentada na imprensa atlântica de três formas diferentes: seja como uma demissão forçada e a retomada do controle da cadeia pelo Estado, seja como uma vingança da Autoridade Palestina pela difusão dos Documentos Palestinos, seja enfim como conseqüência dos vazamentos do Wikileaks que expuseram certas conexões de Khanfar com os Estados Unidos.
Se há uma parcela de verdade em todas estas interpretações, elas ocultam, contudo, a razão principal: o papel do Qatar na guerra contra a Líbia. Aqui, uma volta ao passado se faz necessária
 
A origem da Al-Jazeera: vontade de diálogo
 

Jean Frydman
A Al-Jazeera foi concebida por duas personalidades franco-israelenses, os irmãos David e Jean Frydman, após o assassinato de Yitzhak Rabin, de quem eram próximos. Segundo David Frydman, em entrevista ao autor, o objetivo era criar uma mídia em que israelenses e árabes pudessem debater livremente, trocar argumentos, e aprender a se conhecer, já que isso era impossível devido ao estado de guerra e acabava por bloquear qualquer perspectiva de paz.

Para criar a cadeia, os irmãos Frydman foram beneficiados pelas circunstâncias: a empresa saudita Orbit tinha acabado de concluir um acordo com a BBC que previa a criação de um jornal televisivo em árabe. Mas as exigências políticas da monarquia absolutista saudita rapidamente se revelaram incompatíveis com a liberdade de condições de trabalho a que estavam acostumados os jornalistas britânicos. O acordo foi rescindido e a maioria dos jornalistas árabes da BBC se encontraram subitamente desempregados. Foram eles os convocados para fundar a Al-Jazeera.
 

Sheique Hamad bin Khalifa al-Thani
Os irmãos Frydman queriam que o seu canal de televisão fosse percebido como uma cadeia árabe. Eles conseguiram convencer o novo emir do Qatar, Hamad bin Khalifa al-Thani, que, com o auxílio de Londres e de Washington, tinha acabado de derrubar o seu pai, sob a acusação de nutrir sentimentos pró-iranianos. O sheique Hamad bin-Khalifa compreendeu rapidamente as vantagens que poderia obter em se colocar no centro do debate Israel – Mundo árabe, que já durava mais de meio século e dava mostras de que iria perdurar por muito mais tempo. No poder, ele autorizou a abertura em Doha de um escritório do ministério do comércio israelense , na impossibilidade de poder autorizar a abertura de uma embaixada. Sobretudo, ele vislumbrou a possibilidade de concorrer com as poderosas mídias sauditas pan-árabes e de poder dispor de um canal que criticasse todo o mundo, exceto ele.

O aporte financeiro inicial foi composto de um aporte dos irmãos Frydman e de um empréstimo de 150 milhões de dólares do emir ao longo de cinco anos. Foi o boicote dos anunciantes organizado pela Arábia Saudita e a ausência de rendimentos significativos com publicidade que levou à mudança do esquema inicial. O emir se tornou, definitivamente, a fonte principal de recursos e portanto, seu principal sócio.
 
Jornalistas exemplares
 
Durante anos, a audiência da Al-Jazeera foi marcada pelo seu pluralismo interno. A rede se orgulhava de veicular em igualdade de condições opiniões diversas e contrárias. A sua pretensão não era a de portar a verdade, mas de fazê-la surgir do debate. A vitrine da emissora, o talk show “A Opinião Contrária”, conduzido pelo iconoclasta Faisal aL-Qassem, era conhecida por abalar preconceitos. Diferentes audiências encontravam motivos para apreciar este ou aquele programa, e para condenar outros. Pouco importa, essa efervescência interna decorreu da rigidez dos concorrentes e sacudiu a paisagem áudio-visual árabe.
 
O papel heróico dos repórteres da Al-Jazeera no Afeganistão e durante a terceira guerra do Golfo, em 2003, e o trabalho exemplar que contrastava com a propaganda das redes-satélite pró-estadunidenses, transformou a imagem inicial de canal polêmico para se tornar referência da mídia. Os seus jornalistas pagaram um preço alto pela sua coragem: George W. Bush hesitou em bombardear o estúdio em Doha, mas assassinou Tareq Ayyoub (em inglês aqui e em francês aqui), deteve Tayseer Alouni, e encarcerou Sami el-Hajj em Guantanamo.
 
Sami el-Hajj
 
Tayseer Alouni
Tareq Ayyoub, momentos antes de ser atingido
por um míssil estadunidense
 
 
A reestruturação de 2005
 
Porém, as melhores coisas têm uma finalidade. Em 2004-2005, depois do falecimento de David Frydman, o emir decidiu reestruturar completamente a Al-Jazeera e criar novos canais, entre os quais a Al-Jazeera em inglês, agora que o mercado mundial se transformava e que todos os grandes estados possuíam cadeias de informação via satélite. Tratava-se claramente de abandonar a efervescência e as provocações do início, de capitalizar uma audiência que chegaria aos 50 milhões de telespectadores, para se posicionar como um ator importante no mundo globalizado.
 
O sheique Hamad bin-Khalifa recorreu a uma consultoria internacional para compensar a ausência de formação pessoal em telecomunicações. A JTrack era especialista em treinar os líderes árabes e sudeste-asiáticos na língua de Davos: como transmitir aos ocidentais a imagem que eles querem ver. Do Marrocos a Singapura, a JTrack também formou a maior parte dos políticos apoiados pelos Estados Unidos e Israel – frequentemente simples herdeiros fantoches – para transformá-los em personalidades midiaticamente respeitáveis. O importante não era que tivessem algo a dizer, mas que dominassem o discurso evasivo padrão do mundo globalizado.
 
Contudo, como o presidente da JTrack estava envolvido no exercício de altas funções governamentais no Norte da África, tinha que se retirar antes de produzir a transformação no Grupo Al-Jazeera. Ele confiou o prosseguimento das operações a um antigo jornalista da Voz da América, que já tinha trabalhado alguns anos para a cadeia qatariana e pertencia à mesma confraria muçulmana: Wadah Khanfar.
 
Profissionalmente competente e politicamente seguro, Wadah Khanfar se encarregou de dar à Al-Jazeera uma textura ideológica. Dando voz a Mohamed Hassanein Heikal, o antigo porta-voz de Nasser, fez do sheique Yusuf aL-Qaradawi – que tinha sido destituído de sua nacionalidade egípcia por Nasser – o “conselheiro espiritual” da cadeia de televisão.
 
A virada de 2011
 
Foi com as revoluções no Norte da África e na península arábica que Wadah Khanfar modificou brutalmente a linha editorial da redação. O Grupo desempenhou um papel central em dar verossimilhança ao mito da “primavera árabe”: os povos, ávidos por um modo de vida ocidental, se rebelariam, derrubariam os ditadores e adotariam democracias parlamentares. Ninguém conseguiria distinguir o que aconteceu na Tunísia e no Egito dos acontecimentos na Líbia e Síria. Quanto aos movimentos no Iémen e no Bahrein, nada seria mostrado aos telespectadores.
 
Sheique Yusuf al-Qaradawi
Na realidade, os anglo-saxões se viram forçados a pegar carona nas revoltas populares para reviver os velhos ares da “primavere árabe” que eles tinham organizado nos anos 1920, quando se apropriaram das velhas províncias otomanas para lá instalar democracias parlamentares fantoche. A Al-Jazeera passou a acompanhar então as revoltas tunisinas e egípcia para afastar o caráter revolucionário e legitimar novos governantes favoráveis aos Estados Unidos e a Israel. Em relação ao Egito, tratou-se mesmo da visão de um único componente da contestação: a Irmandade Muçulmana, representada pelo pregador-mor da rede de televisão… o sheique Yusuf aL-Qaradawi.
 
Indignados pela nova linha editorial e pelo recurso cada vez mais freqüente à mentira (por exemplo, nesta reportagem sobre uma falsa manifestação em Moscou contra Bachar El-Assad da Síria), certos jornalistas como Ghassan Ben Jedo demitiram-se.
 
Quem manipula a informação?
 
Mahmoud Jibril
Quem quer que seja, é necessário abordar o episódio líbio para que as máscaras caiam. De fato, o dono da JTrack e mentor de Wadah Kanfhar não é outro senão Mahmoud Jibril (O “J” de JTrack é de “Jibril”). Esse amável diretor, brilhante e vazio, foi recomendado a Kadhafi pelos seus novos amigos estadunidenses para que conduzisse a abertura econômica da Líbia após a normalização das relações diplomáticas. Sob o controle de Saif El-Islam Kadhafi, ele foi nomeado ministro do Planejamento e diretor da Autoridade de desenvolvimento, tornando-se, de fato, no número 2 do governo, tendo inclusive autoridade sobre os outros ministros. Ele conduziu com rapidez a desregulamentação dessa economia socialista e a privatização de suas empresas públicas.
 
Através da atividade educacional da JTrack, Mahmoud Jibril nutriu relações pessoais com quase todos os dirigentes árabes e do sudeste asiático. Ele tinha escritórios no Bahrein e em Cingapura. Jibril também tinha criado sociedades comerciais, uma das quais, responsável pelo comércio de madeira da Malásia e da Austrália, aberta em sociedade com seu amigo francês Bernard Henri Lévy (N.T. um eficiente e bonito garoto propaganda do neoliberalismo no fim do século passado, em França e entre muitos que, fora dos domínios da Gália, se guiam pela “intelectualidade” – ou pela estética – que de lá emana, como um farol civilizatório).
 
Mahmoud Jibril fez os primeiros estudos universitários no Cairo. Lá conheceu a filha de um dos ministros de Nasser e casou-se com ela. Depois, continuou os estudos nos Estados Unidos, onde adotou as teses liberais que tentou introduzir na ideologia anarquista de el-Kadhafi. Sobretudo, Jibril ingressou na confraria da Irmandade Muçulmana na Líbia. É nesse contexto que ele colocou os Irmãos de confraria Wadah Kanfhar e Yusuf AL-Qaradawi na Al-Jazeera.
 
Durante o primeiro semestre de 2011, a rede qatariana tornou-se o instrumento privilegiado de propaganda ocidental: ela negou o quanto pôde o caráter anti-imperialista e anti-sionista das revoluções árabes e determinou, em cada país, os protagonistas que ela deveria apoiar e aqueles que deveria denegrir. Não é surpresa que a Al-Jazeera tenha apoiado o rei do Bahrein – um aluno de Mahmoud Jibril – que atirou contra a sua própria população, enquanto o sheique aL-Qaradawi apontava as antenas para a Líbia e a Síria conclamando à Jihad, acusando mentirosamente el-Khadafi e el-Assad de massacrarem o seu próprio povo.
 
Com Jibril nomeado Primeiro Ministro do governo rebelde líbio, a Al-Jazeera atingiu o ápice do jornalismo torpe, com a reconstrução num estúdio em Doha de réplicas da Praça Verde e de Bab El-Azizia, onde foram gravadas imagens falsas da entrada dos “rebeldes” pró-EUA em Trípoli. E como fui insultado quando fiz a denúncia dessa manipulação na Voltaire.org! Todavia, a Al-Jazeera e a Sky News difundiram essas falsas imagens no segundo dia da batalha de Trípoli, semeando o caos entre a população líbia. Na verdade, somente três dias mais tarde é que os “rebeldes” – e quase que exclusivamente vindos de Misrata – entraram na Trípoli devastada pelos bombardeios da OTAN.
 
Vai na mesma linha o anúncio pela Al-Jazeera da prisão de Saif el-Islam Kadhafi e da confirmação da captura pelo procurador da Corte Penal Internacional Luis Moreno-Ocampo. Eu fui o primeiro, na Russia Today, a desmentir essa intoxicação. E também nessa ocasião, fui objeto de piadas em certos jornais, até que Saif el-Islam foi pessoalmente ao hotel Rixos e levou os jornalistas até à verdadeira praça Bal El-Azizia.
 
Interrogado a respeito dessas mentiras pelo canal árabe do France24, o presidente do Conselho Nacional de Transição (CNT), Mustafa Abdul Jalil acatou e justificou os casos como estratagemas de guerra, vangloriando-se de que isso tenha precipitado a queda da Jamahiriya.
 
Qual é o futuro da Al-Jazeera?
 
A transformação da Al-Jazeera em instrumento de propaganda em prol da recolonização da Líbia não se deu à revelia do emir do Qatar, mas sob sua tutela. Foi o Conselho de Cooperação do Golfo quem primeiro pediu uma intervenção armada na Líbia. O Qatar foi o primeiro membro do Grupo de contato. Foi através do Qatar que os “rebeldes” foram armados, e eram do Qatar os soldados que depois foram enviados para auxiliar nos combates em terra, especialmente na batalha de Trípoli. Em troca, recebeu o privilégio de controlar todo o comércio de hidrocarbonetos realizado em nome do Conselho Nacional de Transição.
 
Ainda é cedo para saber se a demissão de Wadah Khanfar marca o fim da sua missão no Qatar, ou se significa o desejo da cadeia de notícias de reencontrar a credibilidade construída ao longo de 15 anos, e perdida em apenas 6 meses.
 
Thierry Meyssan para o Voltaire.org

Traduzido por Gustavo Lapido Loureiro
No Matutações
 
Pesquisado no Blog Contextolivre

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