O fim da história estava escrito desde 1891 |
Ao narrar a ascensão do enfermeiro Rubião no clássico Quincas Borba, Machado
de Assis construiu uma espécie de estrutura elementar do
relacionamento humano (queria citar a “alma do brasileiro”, mas nunca
vivi em outro país para dizer se há, de fato, outro tipo de “alma”
mundo afora). A começar pelo fato de o personagem que dá nome ao livro
não ser o personagem principal. Este papel é dado a Rubião, herdeiro do
milionário filósofo, fundador do humanitismo, de quem cuidou até o fim
da vida. Homem certo na hora certa, a ele é delegada a missão de
cuidar de um cachorro (de nome Quincas Borba) e de administrar as
posses deixadas pelo patrão. “A imortalidade é o meu lote ou o meu
dote, ou como melhor nome haja”, diz Quincas Borba ao amigo fiel antes
de legar a sua herança.
A oportunidade faz Rubião deixar a rotina humilde em Barbacena, no
interior de Minas, em troca de uma vida de barão no Rio de Janeiro,
então capital da República.
Ao chegar, ele logo se transforma em objeto de cobiça. Como enxame de
abelhas no pote de mel, dele se aproximam as pessoas mais influentes de
seu tempo. Eles almoçam às suas custas. Jantam às suas custas. Tomam
empréstimos às suas custas. Rubião tinha outra origem, outro linguajar,
outras referências, mas pouco importava: ele tinha tudo o que a
burguesia ascendente, empreendedora e oportunista, precisava: uma janela
para o capital. Para os amigos, Rubião não valia só o que tinha no
bolso. Valia o quanto estava disposto a produzir em bolsos alheios.
É a melhor história sobre amizade já escrita nestas terras – justamente
por expor ao sol o deslumbre como a força-motriz das relações humanas.
Este caráter universal e atemporal é o que separa uma boa história de
um clássico. Mudam-se os tempos, mudam-se os nomes, o espírito
permanece. Este espírito, pode-se dizer, se manifesta em qualquer
empreendimento promissor – e só um grande herdeiro, um grande
proprietário, um grande magnata, um grande artista ou um grande astro do
futebol seria capaz de contar as toneladas diárias de bajulação
produzidas em seu entorno. (Wilson Simonal e o goleiro Bruno,
ex-Flamengo, não fariam um testemunho menos fidedigno sobre a gratidão
aos amigos). O funcionamento do Estado, loteado como um bem a ser
herdado e distribuído, não é diferente. Está tomado de Rubiões e
asseclas de Rubiões, crentes de que o prestígio transitório é um bem
inalienável.
No apagar das luzes de 2012, eles aparecem claramente na Operação Porto
Seguro, o mais recente escândalo envolvendo o Planalto – ou a
“sucursal” do Planalto instalada na Avenida Paulista.
Pegue-se o exemplo de Rosemary de Noronha, a amiga do homem que se
tornou presidente da República e a levou à chefia do escritório da
Presidência em São Paulo. Dela pouco se sabe além do fato de que se
despedia dos amigos no e-mail corporativo com a palavra “bjokas”. Em
tese, isso não prova o grau de competência para exercer um cargo de
confiança. Mas deixa escancarada a sofisticação das formas com que outsiders são injetados para dentro da máquina.
A troca de e-mails interceptada pela Polícia Federal entre Rosemary e
os irmãos Paulo e Rubens Vieira, nomeados para cargos em agências
reguladoras meses depois, é uma fratura exposta de um sistema frágil,
acessível e manipulável e movido pelo deslumbre de quem chegou ao topo.
Graças a Rosemary, Paulo foi parar na Agência Nacional de Águas e
Rubens, na Agência Nacional da Aviação Civil.
O caminho para atuar nas agências responsáveis por regular a aviação
civil e o uso sustentado da água foi assim: o amigo do amigo levou as
referências, falou com a pessoa certa, que prometeu falar com a pessoa
ainda mais certa e a troca de favores ficou estabelecida. Num dos
e-mails, antes da nomeação, Rosemary promete, supostamente, aproximar o
candidato ao cargo na Anac do presidente Lula em um evento em São
Paulo: “Aí eu ataco”, diz ela.
Vendo de longe, é possível supor que, apesar do cargo, uma opinião de
Rosemary sobre as questões centrais do Planalto tivesse tanto peso
quanto uma pena. Rosemary parece, ainda de longe, apenas uma assessora
costa-quente que usou a confiança do chefe para construir um feudo ao
seu redor com uma única carta: sou amiga do rei.
Mas a “carteirada” de hoje é a maldição de amanhã. Os irmãos Vieira,
acomodados no Estado, são agora acusados de comandar um esquema de
compra e venda de pareceres públicos favoráveis a interesses privados
com a ajuda da Advocacia-Geral da União – um deles para a instalação de
um complexo portuário, de impactos incertos, no valor de 2 bilhões de
reais. E foi aos irmãos Vieira que a servidora recorreu para instalar a
filha e o marido na mesma máquina – numa troca de mensagens encerrada
com um gritante “FINALMENTE OBRIGADAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA”. (Sim, vale
lembrar: ela era chefe do escritório da Presidência em São Paulo).
Rosemary ajudou os irmãos Viera, que depois ajudaram Rosemary.
Para operar, não precisaram sequer consertar relógio com luva de boxe no
escuro. Estavam à vontade, como estariam à vontade na casa de Rubião,
que na verdade era de Quincas Borba. Não importa. O fim da história
estava escrito desde 1891.
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