A capela sistina sempre foi palco de litígios e puxadas de tapete. Nela
existe a “câmara das lágrimas”, onde o vencedor troca os panos cor
púrpura de cardeal pelos brancos de papa, antes de, na solidão,
debulhar-se em lágrimas por causa da grande emoção. Na Sistina, o então
jovem Rafael, insuflado pelo seu mestre Bramante, tentou tomar o lugar
de Michelangelo. Rafael não se contentava em afrescar os quartos dos
papas. Aproveitava-se do atraso de Michelangelo para espalhar que o
concorrente nunca afrescara paredes e não dominava as técnicas de
aplicar tinta em reboco molhado. Michelangelo venceu o embate.
Depois de 25 horas de votações, venceram os reformistas da Cúria. A
disputa estava polarizada entre esses e os antirreformistas liderados
pelo camerlengo Tarcisio Bertone, ex-secretário de Estado (chefe da
Cúria e uma espécie de primeiro-ministro). O candidato de Bertone era o
brasileiro Odilo Pedro Scherer, integrante da comissão de fiscalização
do apelidado Banco do Vaticano, eufemisticamente denominado Instituto
para as Obras Religiosas (IOR).
Nos últimos conclaves, o grande embate ocorria entre os reformadores da
doutrina, incluindo o saudoso Carlo Maria Martini, e os conservadores.
Venceram os últimos, cujos principais símbolos foram Karol Wojtyla e o
seu delfim Joseph Ratzinger. Por evidente, perdia a Igreja com o
conservadorismo, destacando a redução de fiéis na Europa. A propósito, e
como demonstrou o vaticanista Marco Politi, Ratzinger foi o grande
teólogo do obscurantismo. É contra a camisinha em tempos de Aids,
manteve a proibição de Paulo VI ao uso de pílulas anticoncepcionais,
opõe-se à ordenação de mulheres para o posto de sacerdotisas, condena o
homossexualismo e a lei alemã de “despenalização” do aborto, é
contrário ao casamento de padres e à oferta da eucaristia, nas
celebrações, aos divorciados, entre outras.
A escolha de Jorge Mario Bergoglio, que na eleição de Ratzinger ficou
em segundo lugar ao entrar nos escrutínios depois da baixa votação e da
desistência do cardeal Martini, foi costurada pelos norte-americanos, à
frente Timothy Dolan, de Nova York. Os primeiros candidatos
apresentados eram Angelo Scola e Odilo Scherer. O reformista entrou na
Sistina com cerca de 50 votos e o antirreformista Scherer com quase 25.
Como não passavam desse número e jamais atingiriam os dois terços
previstos na Constituição apostólica, acabaram substituídos. Então,
pelo resultado da urna, percebeu-se que não emplacariam os cardeais
canadense, húngaro, australiano, mexicano e o outsider e
cultíssimo Gianfranco Ravasi. Para os vaticanistas, Scola pediu a
transferência dos seus votos para Bergoglio, de 76 anos. O outro
argentino, Leonardo Sandri, estava fechado com os antirreformistas.
As articulações de Dolan, o apoio de diversos cardeais sul-americanos
engasgados com a Cúria (Scherer nunca foi unanimidade entre os
brasileiros votantes) e a migração de votos do italiano Scola deram a
vitória a Bergoglio, que entrou sem nenhuma aspiração e zero de apetite.
Como as questões terrenas, nada teológicas, prevaleceram no conclave,
os reformistas curiais Scola e Dolan devem indicar o novo secretário de
Estado. Aquele que cuidará da limpeza e das defenestrações. A respeito
fala-se de um cardeal com prestígio entre políticos italianos, capaz
de manter a contribuição do governo da Itália ao Vaticano, equivalente a
9 bilhões de euros por ano.
Scherer saiu chamuscado ao defender o escandaloso Banco do Vaticano. Segundo Paolo Rodari, vaticanista do jornal La Repubblica,
“o ataque duríssimo na congregação-geral feito por muitos cardeais e
contra a ‘corrupção’ romana, numa Cúria que apontava no candidato Odilo
Scherer, cardeal brasileiro e integrante da Comissão Cardinalícia do
IOR, ecoou de maneira dramática durante o conclave… Um conclave que
assistiu, gradualmente, aos sul-americanos e norte-americanos escolherem
uma figura independente”.
Com Bergoglio, jesuíta, esperam-se ações de moralização na Cúria, com o
vigor de Inácio de Loyola. Perderam os fiéis brasileiros: o maior país
católico do mundo não teve um candidato, entre os reformistas da
Cúria, capaz de empolgar. E fica a impressão, por exigência dos cardeais
norte-americanos, de estar com os dias contados a lavanderia do IOR,
que não atende a todas as regras internacionais de prevenção à lavagem
de dinheiro criminoso ou sem causa.
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