Antonio Lassance na Carta Maior
O “cérebro” das relações exteriores de um país também tem dois lados. Um
deles se chama política externa. O outro, diplomacia. A política
externa é o campo dos presidentes. A diplomacia, dos chanceleres. Estão
intimamente conectados, mas são distintos. Cada qual é responsável por
um tipo de movimento.
Essa diferença básica já foi explicada de forma bem mais grosseira pela
política do “big stick” (o grande porrete), conforme Theodore Roosevelt
(presidente de 1901 a 1909), que dizia: “fale suavemente e carregue um
grande porrete” (“speak softly, and carry a big stick”). Mais
recentemente, a velha lição reapareceu pelas mãos do estudioso Joseph
Nye, naquilo que ele chamou, sem muita originalidade em relação a
Roosevelt, de “hard power” (o porrete) e “soft power” (a cenoura). A
política externa sempre costuma ser o lado mais duro (“hard”). A
diplomacia, o mais suave (“soft”).
Nos Estados Unidos, a política externa é fortíssima. A diplomacia, nem
tanto. No Brasil, que por muito tempo foi raquítico de elementos de
“hard power”, a diplomacia reinava solitária. Isso foi mudando aos
poucos.
Desde a presidência Lula, o Brasil tem aprendido a fazer “hard power”, sem comprometer sua diplomacia.
Porém, diferentemente de Lula, Dilma, desde o início, puxou o freio de
mão da política externa. A escolha de Antonio Patriota, justiça seja
feita, não foi um “erro”. Ao contrário, era a escolha perfeita para o
que Dilma queria. Patriota, com seu estilo contido, era condizente e
consistente com a linha de deixar as relações exteriores no piloto
automático da diplomacia. Era a cara do aquietamento do Brasil em
relação a várias iniciativas internacionais, principalmente as que
incomodariam os Estados Unidos. Ousadias como a tentativa de mediar o
conflito com o Irã? Nem pensar.
O episódio do “adiamento” da visita de Estado a Washington, incialmente
marcada para outubro, marcou um lampejo de uma política externa um pouco
mais ativa e incisiva na relação com os Estados Unidos.
À beira de um ataque de nervos
Que os Estados Unidos têm fortes interesses econômicos em manter portas
abertas com o Brasil, e que a recíproca também é verdadeira é rodear o
óbvio. O mais importante não é isso, mas o fato de que o Brasil vinha
sendo submetido a uma situação vexatória, que mexia com os brios da
presidenta e da própria diplomacia.
As revelações de Glenn Greenwald, com base em informações repassadas
pelo soldado digital Edward Snowden, se por um lado causaram
constrangimento ao Brasil, para os Estados Unidos levantaram o temor de
um retorno da política externa mais agressiva, a exemplo da praticada
pela presidência Lula. Sejam as razões pré-eleitorais ou temperamentais,
pouco importa; o risco continua sendo o mesmo.
Dilma já havia perdido sua paciência, primeiro, com a sequência de
revelações feitas por Greenwald. O que irritou ainda mais a presidenta
foi ter que saber delas pelo programa do Fantástico. O segundo lance que
testou o pavio da presidenta, que todos sabem ser curto, foi a conversa
com Obama durante a reunião do G-20, em S. Petersburgo, no início do
mês. Na verdade, foi mais uma desconversa. Finalmente, a gota d’água foi
a reunião da semana passada entre o ministro das Relações Exteriores,
Luiz Alberto Figueiredo, e a conselheira de Segurança Nacional da Casa
Branca, Suzan Rice, também considerada frustrante – até o telefonema de
Obama de segunda (16/9).
Na reunião, Figueiredo tentou construir uma saída honrosa para o
episódio. O ministro levou a Rice as condições (que chamou de
“expectativas”) do Brasil para salvar a viagem (detalhes que estão na matéria de Carta Maior de 17/9).
Na sexta (13/9), Dilma já tinha firmado sua convicção sobre o problema
quando reuniu-se com Lula. Quando ela manifestou que estava na hora de
encerrar a conversa com Obama sobre a visita, o ex-presidente, que já
tinha recomendado a Dilma dar um “guenta” em Obama, concordou com a
ideia. Traduzindo do lulês: “guenta” é um dar um arrocho e dizer ao
apertado: “aguenta!”
A Casa Branca entendeu o recado. Ou reforçava os canais diplomáticos, ou encarariam uma política externa mais dura e agressiva.
Não interessa aos Estados Unidos uma política externa à beira de um
ataque de nervos. Não para quem quer vender jatos para a FAB. Não para
quem precisa da ajuda do Brasil para a mediação, sempre frequente, no
cenário sulamericano. Não para quem gostaria de contar com um aliado
para reclamar do avanço chinês, cada vez mais avassalador na região. Não
para quem tem dinheiro brasileiro abastecendo sua trajetória de
recuperação econômica.
Por que o Brasil tem hoje mais condições de falar grosso?
O Brasil galgou um patamar diferenciado no cenário internacional na
última década, a partir da nova política externa inaugurada pelo
presidente Lula e seu chanceler, Celso Amorim. Tem, hoje, uma influência
que nunca teve antes. A eleição de um diplomata brasileiro para o
comando da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi o exemplo mais
recentemente. O peso do Brasil no G-20 também é relevante.
Alguns “especialistas” que ladram seu complexo de vira-latas fingem que
não perceberam essa diferença. Alguns apressadamente disseram, quando
surgiu a primeira revelação de espionagem, que o Brasil não tinha nada
de importante para ser bisbilhotado. Foram desmoralizados na semana
seguinte pelas revelações da espionagem contra a Petrobras.
Alguns continuam dando entrevistas, agora dizendo que um cancelamento da
visita seria ruim mais para o Brasil do que para os EUA. Esses patetas
infelizmente não estavam na Disney quando Obama pediu encarecidamente
para que os funcionários tratassem bem especialmente os brasileiros e
chineses, que têm uma grande classe média. Talvez a declaração denote
mais o quanto o presidente dos Estados Unidos é uma pessoa gentil e ama,
de graça, o Brasil.
Nesta semana, esses mesmos dirão que mesmo adiar a visita gerará sérios
problemas para a imagem do País, impedirá acordos de serem fechados e
desestimulará o interesse de investidores. Serão esses alertas resultado
de um desconhecimento elementar de que coisas desse tipo não são pauta
na agenda de uma visita de Estado? Difícil. São “especialistas”
juramentados. É, pura e simplesmente, o instinto à docilidade, a vontade
incontida de por a língua para fora e a satisfação de abanar o rabo.
A diplomacia brasileira deu um nó em pingo d’água
Nunca antes na história dos EUA um país convidado para uma visita de
Estado tinha feito pouco caso do convite. A manchete do Washington Post
diz que Dilma “esnobou” Obama. Claro, os Estados Unidos também têm seus
cachorros, mas eles preferem mostrar os dentes do que abanar o rabo.
A decisão de Dilma de não ir em outubro já estava tomada, desde a
sexta-feira. A única dúvida era o momento e a forma do anúncio ser
feito. Aí entra em cena a figura do ministro Luiz Alberto Figueiredo.
Ao melhor estilo da tradição itamarateca, Figueiredo conseguiu dar um nó
em pingo d’água. A ideia de adiar a viagem foi aventada na reunião
entre Figueiredo e a conselheira de Segurança Nacional da Casa Branca,
Susan Rice (em 11/9). As opções sugeridas pelo diplomata foram ou
providenciar as desculpas e as explicações requeridas pela presidenta
Dilma, ou adiar a visita. Rice apenas ouviu, sem delegação para decidir.
A resposta viria no telefonema de Obama. Rice lembrou que foi o Brasil
que pediu a visita e que jamais haviam feito adiamento. O Itamaraty
contra-argumentou que o problema era maior, pois envolvia uma acusação
de violação à soberania do país. O fundamental era evitar o desgaste e
defender uma saída que não comprometesse nenhum dos lados.
A solução acabou se mostrando salomônica, precedida da ameaça de cortar a
criança ao meio. Ao final, nem cancelamento, nem confirmação,
adiamento. Dilma, na prática, cancelou a viagem que estava marcada para o
23 de outubro. Saiu bem na foto, no Brasil e em todos os jornais do
mundo. Obama ganhou tempo. Terá algum sossego sobre um tema que o
preocupa. A última vez em que um presidente invadiu o espaço alheio para
bisbilhotar e foi acusado de abuso de poder foi nos anos 1970, no
escândalo de Watergate, que levou à renúncia do presidente Richard
Nixon.
O telefonema de Obama selou o acordo. A nota oficial da presidência
brasileira dá uma no cravo, outra na ferradura. Diz que não houve a
“apuração do ocorrido”. Por isso, “não estão dadas as condições para a
realização da visita na data anteriormente acordada”. Ao mesmo tempo,
“confia em que, uma vez resolvida a questão de maneira adequada, a
visita de Estado ocorra no mais breve prazo possível”. Dilma já pode até
pensar em ir em dezembro para ouvir algo um pouco menos nebuloso, dando
os meses que Obama pediu.
A nota da Casa Branca concorda com o adiamento, assume o compromisso de
rever suas diretrizes de inteligência e beira a um pedido de desculpas.
Obama diz que “lamenta” as preocupações geradas pelas revelações.
Com o episódio, a diplomacia brasileira voltou a mostrar que sabe fazer a
diferença. Para Dilma, deu um presente. Permitiu que ela invertesse o
jogo. Cabe agora a Obama o ônus de marcar nova data, sob novas
condições. E deu aos brasileiros pelo menos o gostinho de um tipo de
postura da qual a maioria já estava com saudades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
”Sendo este um espaço democrático, os comentários aqui postados são de total responsabilidade dos seus emitentes, não representando necessariamente a opinião de seus editores. Nós, nos reservamos o direito de, dentro das limitações de tempo, resumir ou deletar os comentários que tiverem conteúdo contrário às normas éticas deste blog. Não será tolerado Insulto, difamação ou ataques pessoais. Os editores não se responsabilizam pelo conteúdo dos comentários dos leitores, mas adverte que, textos ofensivos à quem quer que seja, ou que contenham agressão, discriminação, palavrões, ou que de alguma forma incitem a violência, ou transgridam leis e normas vigentes no Brasil, serão excluídos.”