Eu considero que a AP 470 é um todo viciado. Tratou-se de um julgamento
de exceção e um julgamento político e a execução parcial da sentença
penal é apenas mais uma prova disso, fato do qual qualquer cidadão
honesto deve envergonhar-se. E seus principais condutores, Gurgel e
Joaquim Barbosa, serão julgados e condenados pela História como
carrascos e inquisitores que são.
Aliás, a ação da Procuradoria Geral da República na AP 470 durante todo o
processo careceu de técnica jurídica. A ponto de Luiz Moreira, membro
do Conselho Nacional do Ministério Público e direito da Faculdade de
Direito de Contagem, ter afirmado que a acusação da AP tem uma estrutura
montada a partir de ficção literária, conforme a associação de versões
verossimilhantes.
Mais uma "inovação" é colocada em prática para prender o Ministro José
Dirceu. Nesse momento a PGR e a Presidência do STF iniciam execução
parcial da sentença. Não há execução parcial de sentença penal porque as
liberdades são indisponíveis, isto é, não há acordos que resultem em
antecipação de penas, pois o regimento jurídico ainda vigente no Brasil é
o dos direitos fundamentais.
"É evidente o afobamento dos inquisidores, a falta de cuidado e esse
ultrapassar as barreiras civilizatórias, em que os direitos são
negligenciados, fazendo-se coincidir o "fazer justiça" com
justiciamento" (leia aqui).
Não podemos esquecer-nos da casuística negativa de remessa dos autos à
Primeira Instância. O STF negou a remessa dos autos à primeira
instância, em relação aos réus que não tinham foro privilegiado mudando,
sem qualquer fundamento legal, entendimento do próprio colegiado. Só
esse fato vicia a AP 470 e os Princípios do devido processo legal e a
ampla defesa e afetou à morte a necessidade de aplicar-se o duplo grau
de jurisdição. O Supremo julgou todos os denunciados como se estivessem
incursos no único dispositivo que permite isso — o artigo 101 da
Constituição o que não é verdade.
A regra dos dois graus de jurisdição é universal, por assim dizer. Os
ministros do Supremo passaram por cima dessa regra, eles não quiseram
nem saber sua importância. Isso é um absurdo em minha opinião. Esse é o
primeiro ponto.
O segundo ponto é que os ministros do Supremo adotaram um princípio que,
a meu ver, é incabível. O princípio de que as pessoas são culpadas até
que se prove o contrário. A regra é outra: as pessoas são inocentes até
que se prove o contrário.
E no caso de José Dirceu, a PGR partiu da tese que o Dirceu era culpado,
porque ele era hierarquicamente superior às outras pessoas. E que isso
bastaria para configurar a responsabilidade dele. Portanto, uma
responsabilidade objetiva. Isso é outro absurdo. Isso cria uma
insegurança jurídica enorme. A AP 470 contrariou a tradição jurídica
ocidental, talvez "até universal", mas, "com certeza, a tradição
jurídica ocidental", como disse o jurista Celso Antonio Bandeira de
Mello. E o caso paradigmático disso é justamente o do José Dirceu. Esse
julgamento foi levado a circunstâncias anômalas. Tanto que o ministro
Luís Roberto Barroso, antes de ser empossado no Supremo, disse que
aquela decisão era um ponto que ele considerava fora da curva. O que ele
quis dizer com isso? Que alguma coisa estava fora da linha de
julgamento do Supremo. Houve casuísmo.
O fato é que parte da mídia, a serviço de seus interesses e de seus
patrocinadores, sempre pré-julga. E no caso do mensalão, pré-julgou. A
pessoa que corresponde às expectativas da mídia passa a ser o herói
nacional e quem não corresponde passa a ser o vilão. Esse é um problema
muito sério, que se vê, sobretudo, em casos criminais. O mensalão é um
caso criminal, de pressão da mídia que forma a opinião pública. Não é a
pressão da opinião pública, porque a opinião pública é manejada pela
mídia. Eu não estou querendo defender a posição do relator ou do
revisor, porque eu não conheço o processo. Mas nos casos criminais do
Brasil, o que é proibido em outros países, a mídia condena sem processo e
dificilmente absolve. As interceptações telefônicas, por exemplo, devem
correr em segredo de Justiça, mas sai tudo no jornal! Isso é crime. Mas
quem é que forneceu a informação? Quem tem interesse em fornecer a
informação? Ninguém nunca foi atrás, como afirmou a Jurista Ada
Pellegrinni, professora da Faculdade de Direito da USP.
E há fatos antecedentes à própria AP 470 que merecem nossa atenção, como
por exemplo, a necessidade de mudança casuísta da Jurisprudência do STF
para possibilitar a cassação de Zé Dirceu pela Câmara dos Deputados. O
então Deputado Federal Zé Dirceu foi cassado pela Câmara dos deputados
por quebra de decoro parlamentar, em razão de supostos atos praticados
enquanto estava licenciado. Até então a jurisprudência afirmava que
deputado licenciado não poderia ter seus atos apurados, enquanto
licenciado, mas não podemos esquecer que a cassação só foi possível
porque o Supremo alterou a jurisprudência (por 7 x 4).
Alterou-se a jurisprudência especialmente para cassar Zé Dirceu?
Desde o oferecimento da denúncia, é evidente que houve pressão externa
sobre o Supremo para que esse julgamento tivesse o caráter político e de
exceção, tanto que se partiu da "verdade" que Zé Dirceu era culpado.
Outro fato inédito: toda vez que um partido denunciante retirava
denúncia junto à Comissão de Ética a comissão arquivava o processo, o
PTB retirou a representação contra Zé Dirceu, mas, pela primeira vez,
não ocorreu o arquivamento. Por quê?
Não foram apresentadas provas pela PGR, o então Procurador Geral da
República afirmou, em relação ao Zé Dirceu, que "as provas são tênues".
Então, para condenar Zé Dirceu (essa era tarefa do isento colegiado do
STF?) foi adaptada a "Teoria do Domínio do Fato" e o julgamento foi
deliberadamente marcado no período eleitoral, um absurdo. Por quê?
Apenas para condenar os réus do mensalão e Zé Dirceu?
Quem afirma que a aplicação da "Teoria do Domínio do Fato" deu-se
erroneamente é o jurista alemão Claus Roxin, estudioso da teoria do
domínio fato. Ele afirmou que a teoria foi usada casuisticamente pelos
ministros do Supremo Tribunal Federal para condenar Zé Dirceu e
discordou da interpretação e aplicação dada a ela. Não é demais lembrar
que Roxin aprimorou a teoria, corrige a noção de que só o cargo serve
para indicar a autoria do crime e condena julgamento sob publicidade
opressiva, como está acontecendo no Brasil. "Quem ocupa posição de
comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado",
diz Roxin. Penso que alguns aspectos da decisão do STF em relação a AP
470, como a injustificada e equivocada aplicação da "Teoria do Domínio
do Fato", nos colocam num estado de unsicherheit e de profunda tristeza.
Mas Gurgel, seu sucessor Barbosa e outros maus juízes serão condenados pela História.
E não podemos esquecer-nos da tragédia pessoal que isso causa a
inocentes como Zé Dirceu. Mas o ódio, as infâmias, a calúnia não
abateram o ânimo de José Dirceu de Oliveira e Silva. Ele segue sua vida
militante e nos oferece como exemplo seu otimismo e confiança no povo
brasileiro, na democracia e nas instituições. Parece nada recear e
serenamente segue fazendo de sua vida História.
Zé Dirceu enfrenta tudo com luta e dignidade, mês a mês, dia a dia, hora
a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando
em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, pois sabe o
valor de sua obra e tem a consciência limpa. Talvez seja essa uma das
razões pelas quais seus amigos estão e estarão com ele, não haverá
desamparo. As aves de rapina querem sangue, querem continuar sugando o
povo brasileiro, e contra isso Zé Dirceu oferece seu silencio como
fortaleza e sua consciência como exemplo. E aos que o pensam derrotado
ele responde com um sorriso largo e generoso e com atos que buscarão a
afirmação de seus direitos pelas vias democráticas e institucionais, um
exemplo.
Pedro Maciel
Advogado, sócio da Maciel Neto Advocacia, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário
”Sendo este um espaço democrático, os comentários aqui postados são de total responsabilidade dos seus emitentes, não representando necessariamente a opinião de seus editores. Nós, nos reservamos o direito de, dentro das limitações de tempo, resumir ou deletar os comentários que tiverem conteúdo contrário às normas éticas deste blog. Não será tolerado Insulto, difamação ou ataques pessoais. Os editores não se responsabilizam pelo conteúdo dos comentários dos leitores, mas adverte que, textos ofensivos à quem quer que seja, ou que contenham agressão, discriminação, palavrões, ou que de alguma forma incitem a violência, ou transgridam leis e normas vigentes no Brasil, serão excluídos.”