
Hoje
as coligações partidárias não se fazem por aproximação ideológica, mas
simplesmente para somar o tempo de rádio e de televisão. Isso precisa
ser discutido. Foto: Marcello Casal Jr/ABr
O espetáculo judicial e o silêncio estridente
Roberto Amaral, na CartaCapital
No
julgamento do chamado ‘mensalão’, com o qual a direita imprensa se
propõe a salvar a honra da nação e resolver todos os problemas do país,
tem ela, como em tudo o mais, um lado, formado independentemente dos
autos. Neste ponto ocupa o papel deixado pelos partidos de oposição, sem
rumo, sem objetivos, meros acessórios em cena política medíocre. Por
isso mesmo, a tarefa dos jornalões, deixando de informar seus leitores,
tem sido apenas a de pressionar o STF para que este confirme o
julgamento ao qual eles, jornalões, já submeteram os réus, previamente
condenados mediante a execração pública, independentemente da
culpabilidade ou inocência deles. Mas o pronunciamento do STF pode não
ser exatamente aquele que lhe dita a imprensa, e nesta caso a Suprema
Corte estará frustrando a expectativa que o noticiário unilateral criou.
É um risco. O grande público, pobre plateia, começa a desconfiar da
condenação prévia, na medida em que lhe chega aos ouvidos a defesa dos
acusados.
A
questão real não se cinge a condenar A ou B por este ou
aquele ilícito, mas discutir, o que não interessa nem à direita
impressa nem à direita parlamentar, os fundamentos endêmicos da
corrupção pública neste país, que, a par de criar algumas fortunas
individuais, proporcionando a alguns amigos do rei o acesso ao consumo
conspícuo (jatinhos, caviar, charutos, prostitutas’, ‘acompanhantes’ de
luxo, piscinas com cascata etc.), serve, sobretudo, para garantir a
‘governabilidade’, que se dá pelo acordo (isto é, combinação de
interesses) do governo da vez com o mando político-econômico de
sempre - aqueles que, como bem sublinhou o insuspeito Cláudio Lembo,
estão no poder desde Cabral.
À
direita, criadora e principal beneficiária dos esquemas de corrupção,
obviamente, não interessa resolver os problemas estruturais do nosso
processo político-eleitoral-administrativo.
Mas e os partidos?
A
análise do fenômeno, suas causas, os meandros do poder público, as
viciadas estruturas de poder, as relações promíscuas entre o poder
político e o poder econômico, unidos em processo corruptor que abastarda
a vida política, configuram uma crise do Estado e da democracia
representativa aqui e no mundo. O alto custo das campanhas eleitorais, o
assistencialismo que humilha o eleitor e desnatura o voto, o aluguel de
legendas e de mandatos pagos com o empreguismo e o favorecimento são
questões de fundo que não interessam a uma imprensa ligeira, mas
onipotente, senhora de si e de sua aspiração para alterar o processo
político, nele intervindo como sujeito. Se possível alterando até o
processo eleitoral, como intentou – trata-se de mero exemplo – nas
eleições de 1982, com o famoso ‘caso Proconsult’. A mídia, assim, busca
apenas o sensacionalismo, transformando o julgamento no STF em
espetáculo.
A
sociedade, preparada para receber uma condenação e só a condenação
severa e em bloco – a prisão (de preferência cinematográfica,
espetacular) de todos os acusados –, pode, porém, ser surpreendida por
veredicto diverso. É apenas uma hipótese, que começa a emergir na medida
em que é posta em relevo a fragilidade técnica da peça acusatória. E
nesta hipótese, o STF terá sido exposto à frustração das ruas porque a
direita impressa não se preocupou em exercer o elementar dever de
informar. Ao disputar com o Procurador Geral da República a beca da
acusação, omite, por exemplo, que o esquema do inefável Marcos Valério
surgiu em Minas Gerais sob a batuta do então governador Eduardo Azeredo,
do PSDB, e que é alvo também de processo judicial, mais antigo que o
ora em julgamento, como omitiu a compra de votos de deputados e
senadores para a aprovação da emenda constitucional da reeleição de
titulares do Poder Executivo.
Por
outro lado, a transmissão direta das sessões do STF possibilita à
população se inteirar do que de fato aconteceu. É o contraponto à versão
unilateral que lhe vinha sendo imposta.
Em
defesa da sociedade civilizada, a Justiça precisa estar atenta ao
processo social que exige a diária atualização do direito, e jamais a
pressão popular, o clamor das ruas, podem ser considerados como
ilegítimos; mas não pode a imprensa, no afã de formar opinião, negar ao
acusado a voz dos seus direitos legais. Este, o grande erro da cobertura
dos jornalões.
Como
consequência dessa cobertura, ora apaixonada e quase sempre
superficial, a sociedade perde excepcional oportunidade de abrir uma
necessária e sempre adiada discussão sobre a crise de nosso sistema, o
pano de fundo da crise política que produziu a crise de 2005, crise que
quase transborda em insuportável fratura institucional.
A História mostra que a desmoralização da democracia representativa é o primeiro passo para a construção dos regimes de exceção.
Caberia,
nessa discussão de que hoje somos privados, uma profunda e corajosa
reflexão sobre o nosso “presidencialismo de coalizão”, que ora mais
parece um parlamentarismo abastardado – e essa reflexão iluminaria fatos
recentes de nossa vida política, para além do chamado “mensalão”, como a
aprovação dos 5 anos de Sarney, a re-eleição de FHC e, em sentido
oposto, a deposição de Collor.
São
diversos os problemas que afetam o sistema representativo brasileiro no
qual se assenta nossa democracia, e o primeiro deles é a presença
crescentemente dominante do poder econômico, buscando sempre decidir as
eleições e desta forma desmontando uma das vigas mestras da democracia, a
expressão livre da soberania popular. Mantido o quadro de hoje, se
medidas preventivas não forem adotadas, brevemente o processo eleitoral
transformar-se-á numa só transação econômica, que se processará à
margem do povo, a quem, porém, como sempre, será enviada a conta. Quando
os recursos financeiros se sobrepõem ao debate político, quando a
imprensa renuncia ao dever de informar, quando as estruturas partidárias
são substituídas pela troca de favores e o voto é conquistado com a
prestação assistencialista, o mandato é inevitavelmente posto a serviço
de seus financiadores e credores, como atesta o cassado mandato do
senador Demóstenes, líder catão com os pés e a alma chafurdando na
lama. Caso exemplar mas não único.
A
melhor contribuição que a análise crítica e profunda do ‘mensalão’,
para além do julgamento ora em curso, deveria oferecer para o
aprimoramento da vida política seria passar a limpo, sem preconceitos e
sem ressalvas nosso processo eleitoral, cuja exaustão só não é percebida
por aqueles que dela se aproveitam.
Os
partidos, passada a refrega de 2012, o governo e a Justiça, a academia
silente e a sociedade, precisam discutir, já com vistas às eleições de
2014, uma reforma profunda da legislação eleitoral, de sorte a diminuir –
diminuir já será grande coisa! -, a influência do poder econômico nas
eleições. A primeira medida haverá de ser o financiamento público
exclusivo das campanhas. Esta é a medida essencial, a reforma sem a
qual nada será alcançado. É a mais importante, mas não é única. O
próprio funcionamento do Congresso e o processo legislativo precisam ser
revistos, como reduzido precisa ser o recesso e aumentado o número de
sessões deliberativas durante a semana. Por exemplo: parlamentar pode
continuar com direito à reeleição, mas para disputar outro cargo, ou
assumir funções no Executivo, deverá renunciar ao mandato. A criação e
manutenção de partidos deve ser a mais livre possível, como agora, mas o
acesso ao rádio e à televisão no horário eleitoral carece de
condicionantes, como, por exemplo, o número mínimo de parlamentares.
Hoje, as coligações não se fazem por aproximação ideológica, mas
simplesmente para somar o tempo de rádio e de televisão, e a
permissividade legislativa enseja o aluguel de legendas criadas para
esse ofício. E é com base nesse tipo de alianças que se formam as
maiorias governamentais nos três níveis da vida política.
Este
arrolar não encerra uma proposta de reforma, pois simplesmente levanta
questões que nos parecem relevantes, sem prejuízo de tantas outras que
podem ser formuladas, como a urgente transparência do Judiciário, em
todas as suas instâncias.
E então, vamos discutir as questões de fundo?
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