Passada a fase da defesa dos réus, os ministros do Supremo Tribunal
Federal começaram nesta quinta-feira 16 a expor seus votos sobre o
chamado “mensalão”. Durante a primeira etapa do julgamento, os advogados
tentaram explorar as contradições expostas na denúncia da Procuradoria
Geral da República – parte dela baseada no relatório da CPI dos
Correios, entregue em março de 2006. O relatório, que seria aprovado uma
semana depois pelos integrantes da comissão, foi uma espécie de
reconhecimento da tese do “mensalão” escancarada por Roberto Jefferson.
Desde então, muitas perguntas ainda faltam ser respondidas, como
mostrou uma reportagem publicada assinada por Sergio Lirio na edição de
número 387 de CartaCapital.
Como recordar é viver, republicamos no site a matéria de 5 de abril de
2006, que já apontava todas as brechas no documento legado pelo relator
da CPI, Osmar Serraglio. Está agora nas mãos dos ministros do Supremo
decidir quantas das perguntas listadas há mais de seis anos puderam ser
respondidas por procuradores, advogados e réus. Confira:
PERGUNTAS AO RELATOR
O relator da CPI dos Correios, Osmar Serraglio. Foto: Agência Brasil |
O relatório do deputado Osmar Serraglio (PMDBPR) resistiu poucas horas.
Enfático, mas vazio de provas, o trabalho desagradou a todo mundo. Na
noite de 29 de março de 2006, parlamentares governistas e
oposicionistas reuniram-se para achar pontos de acordo que não
inviabilizem a aprovação do texto. O presidente da CPI dos Correios,
senador Delcídio Amaral (PT-MS), disse que o prazo final para as
sugestões termina na terça-feira, 4 de abril. CartaCapital relaciona algumas perguntas não respondidas por Serraglio.
ONDE ESTÃO AS PROVAS DO MENSALÃO?
O relatório de Serraglio chama de “farsa” o argumento de que as
operações do PT com o publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza
serviram para esconder o caixa 2 nas eleições de 2004. O texto é
categórico ao defender a existência do mensalão, mas, de forma
contraditória, em nenhum momento afirma que tenha havido compra de votos
para aprovação de projetos de interesse do governo.
O deputado culpa a falta de provas à CPI da Compra de Votos, criada,
entre outros motivos, para apurar a existência do mensalão e que acabou
sem produzir relatório final. E remete ao Ministério Público Federal a
responsabilidade de confirmar se houve ou não pagamento regular a
parlamentares.
Após 287 dias, o trabalho de Serraglio continua com as mesmas
incongruências apresentadas nos textos parciais. Dos 19 deputados
acusados de receber o mensalão, sete são filiados ao PT. Por que
parlamentares petistas precisariam receber dinheiro para votar com o
governo? Serraglio não esclarece. Outro citado, Roberto Brant, integra o
PFL, legenda que mais faz oposição a Lula no Congresso. Sem os
petistas e Brant, sobram 11 parlamentares da base governista. É
possível ganhar uma votação na Câmara pagando a tão pouca gente? Outra
dúvida: se o relator confirma o mensalão, por que os parlamentares
serão indiciados apenas por crime eleitoral, que pune caixa 2?
POR QUE O EX-DEPUTADO JOSÉ BORBA NÃO FOI INDlCIADO?
Nas vésperas da divulgação do relatório, circularam boatos de que 50
novos nomes seriam incluídos na lista de beneficiários do Valerioduto. A
maioria seria do PMDB, partido do relator. Serraglio teria omitido a
nova listagem por considerá-la inconfiável. O ex-líder do partido na
Câmara, deputado José Borba, paranaense como Serraglio, nem sequer
chegou a figurar entre os possíveis indiciados. Detalhe: Borba renunciou
depois de a imprensa divulgar que ele recebeu cerca de 2 milhões de
reais das contas de Marcos Valério.
QUANDO O ARGUMENTO DE EMPRÉSTIMO VALE?
Segundo Serraglio, o PT e Marcos Valério inventaram os empréstimos de
55 milhões de reais para esconder os crimes cometidos. Quando se trata
do argumento petista, o relator toma o correto cuidado de usar a palavra
empréstimo entre aspas.
Eduardo Azeredo: dois pesos e duas medidas? Foto: Luiz Alves / Agência CâmaraAdd caption |
A mesma cautela não é utilizada no caso do senador tucano Eduardo
Azeredo. Ao relatar a situação de Azeredo, Serraglio usa empréstimos sem
aspas.
Para relembrar. Azeredo foi candidato à reeleição ao governo de Minas
Gerais em 1998. O então tesoureiro da campanha, Cláudio Mourão, admitiu
em depoimento à CPI ter feito um caixa 2 de cerca de 12 milhões de
reais. O dinheiro teria saído de empréstimos do Banco Rural avalizados
por Marcos Valério. Mais tarde, um documento assinado por Mourão, cuja
autenticidade foi confirmada por peritos da Polícia Federal, relaciona
um caixa 2 de 92 milhões de reais na campanha tucana. Parte substancial
dos recursos teria origem em contribuições ilegais de empresas estatais
mineiras, entre elas a Cemig e a Copasa.
POR QUE NÃO HÁ REFERÊNCIAS AO CASO FUNDACENTRO?
O Ministério Público Federal comprovou desvios de 5,8 milhões de reais
nas verbas publicitárias da Fundacentro, ligada ao Ministério do
Trabalho, controladas pela SMP&B. À época, Marcos Seabra de Abreu
Rocha, funcionário do governo de Minas Gerais, era diretor financeiro da
instituição. Segundo o MP, a maior parte dos desvios ocorreu em 1998,
justamente no ano em que Azeredo concorreu à reeleição.
Por causa desses fatos, Azeredo pode ser considerado o “pai do
Valerioduto”. Essa linha temporal parece, porém, não ter interessado ao
relator. Na descrição do funcionamento do esquema, Serraglio omite o
histórico relacionado à campanha tucana de 1998. Azeredo, cujo processo
acabou arquivado no Conselho de Ética do Senado, deve ser indiciado por
crime eleitoral, já prescrito.
É O MAIOR CASO DE CORRUPÇÃO DA HISTÓRIA?
Se é, o relatório não conseguiu provar. Serraglio diz que as fontes do
Valerioduto foram empresas estatais e privadas. O texto final não
consegue, porém, ir além do que havia sido apresentado em novembro de
2005. Em nove meses, a CPI avançou muito pouco na definição das fontes
que abasteceram o esquema. O principal trunfo do relator é o repasse de
12 milhões de reais, sem serviços comprovados, às agências de Marcos
Valério pela Visanet, empresa da qual o Banco do Brasil detém 33%. Outra
companhia citada é a Usiminas, que teria feito uma doação via caixa 2 à
campanha do deputado pefelista Roberto Brant. Valor da contribuição:
125 mil reais.
O operador Marcos Valério. Foto: Agência Brasil |
Há omissões imperdoáveis. O relator esquece de detalhar o uso de verbas
das operadoras Telemig Celular e Amazônia Celular. Técnicos da CPI
identificaram movimentações de 122 milhões de reais da Telemig e de 36
milhões de reais da Amazônia para as agências DNA e SMP&B, mas o
relatório deixa de informar se os pagamentos correspondem a serviços
prestados. Quanto à Brasil Telecom, Serraglio esquece de citar os
contratos de 50 milhões de reais fechados com Valério semanas antes de o
ex-deputado Roberto Jefferson dar a primeira entrevista à Folha de
S.Paulo. Isso leva à próxima pergunta.
POR QUE O BANQUEIRO DANIEL DANTAS NEM SEQUER FOI CITADO NO RELATÓRIO?
A informação prestada pelo gabinete do senador Delcídio Amaral (PT-MS) é
de que a omissão foi um lapso do relator. Por meio de assessores,
Amaral garantiu que a participação de Dantas na crise ficará explícita
no texto final, a ser aprovado em meados de abril.
A omissão chama atenção porque as referências ao banco Opportunity
permeiam todo o relatório. A Brasil Telecom, operadora de telefonia
administrada por Dantas até outubro de 2005, aparece como uma das
principais fontes do Valerioduto.
À CPI, Marcos Valério e Delúbio Soares afirmaram que o publicitário
intermediou reuniões de petistas com representantes do banqueiro. Em
janeiro deste ano, CartaCapital revelou que Humberto Braz,
lobista do Opportunity em Brasília, encontrou-se diversas vezes com o
publicitário e com emissários petistas em meados de 2004. Foi um período
extremamente difícil para Daniel Dantas. Em junho, soube-se que o
orelhudo havia contratado a Kroll para bisbilhotar a vida de desafetos e
concorrentes. Em outubro, a Polícia Federal apreendeu documentos na
sede do banco e na casa de Dantas. Por pouco, o banqueiro não foi preso.
Chamado a depor na comissão, o banqueiro falou por 19 horas. Disse ter
sido perseguido tanto pelo governo Fernando Henrique Cardoso quanto
pelo de Lula. Auditoria da nova diretoria da BrT mostrou que Daniel
Dantas mentiu várias vezes no depoimento à CPI e que sua ingerência na
BrT era maior do que afirmava. Carla Cico, expresidente da operadora de
telefonia, aliada do banqueiro, esteve diante dos parlamentares por
oito horas.
COMO EXPLICAR A VIAGEM DE MARCOS VALÉRIO A PORTUGAL?
Para provar que José Dirceu era o “chefe do esquema”, o ex-deputado
Roberto Jefferson mencionou uma viagem de Marcos Valério a Lisboa.
Segundo Jefferson, o publicitário, acompanhado do petebista Emerson
Palmieri, teria ido achacar empresários portugueses. Serraglio manteve
essa versão no relatório, mas evitou aprofundar o assunto.
O ex-ministro José Dirceu. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr |
Em janeiro de 2005, Marcos Valério reuniu-se com o presidente da
Portugal Telecom, Miguel Horta e Costa. Sabe-se que a Portugal Telecom
queria comprar a Telemig Celular e que Dantas tentava uma maneira de
convencer os fundos de pensão a aceitar o negócio, ruim para eles.
Daniel Dantas contava com o apoio de integrantes do governo Lula para
dobrar os diretores das fundações, em especial Sérgio Rosa, da Previ. O
relator não se esforçou para tentar elucidar a principal questão: em
troca de quê Miguel Horta e Costa aceitaria “doar” dinheiro ao PT e ao
PTB?
O QUE FAZER COM O SUB-RELATÓRIO DE ACM NETO?
A criação da sub-relatoria de fundos de pensão foi uma reação da
“bancada do orelhudo” no Congresso, a turma do PFL que desfruta do apoio
e da amizade de Dantas. Quando aumentavam as evidências de que a
disputa pelo controle da Brasil Telecom, Telemig Celular e Amazônia
Celular estava na gênese da crise política, a bancada amiga arrumou uma
forma de desviar o foco. O objetivo era descobrir se os maiores fundos,
Previ, Petros e Funcef, em disputa com o Opportunity, financiaram o
Valerioduto.
O trabalho de ACM Neto, apoiado por auditores da Ernst & Young,
passa longe desse objetivo. A denúncia bombástica do deputado ficou
menor. Depois que os auditores limparam o trabalho de vários erros
grosseiros, os supostos prejuízos de 725 milhões de reais de 14 fundos
viraram 300 milhões, a maior parte concentrada em pequenas instituições.
A nova quantia continua passível de novos questionamentos.
Os alvos principais da investigação saíram ilesos. O sub-relator sugere
que o Ministério Público aprofunde a investigação para descobrir
possíveis irregularidades na Previ e na Petros, mas não pede o
indiciamento de nenhum diretor das duas instituições.
O QUE O BANCO SANTOS, A PRECE E A GEAP TÊM A VER COM O MENSALÃO?
ACM Neto propôs o indiciamento do diretor-financeiro da Funcef,
Demósthenes Marques, por conta de perda de 10 milhões de reais em
aplicações no Banco Santos.
É uma sugestão curiosa. Nunca houve qualquer ilação de que as
aplicações na falida instituição de Edemar Cid Ferreira tenham relação
com o esquema de Marcos Valério. Além disso, o sub-relator acha
importante citar o prejuízo da Funcef, mas ignora o prejuízo da fundação
dos empregados do Banco do Estado do Ceará, que perdeu quase 8 milhões
de reais no Banco Santos. O Ceará é administrado pelo tucano Lúcio
Alcântara, ligado ao presidente do PSDB, Tasso Jereissati. Tucanos e
pefelistas formarão uma chapa presidencial nas próximas eleições. O
próprio Jereissati foi vítima da butique financeira de Cid Ferreira.
Perdeu cerca de 2 milhões de reais.
Fosse a exclusão de fundos estaduais um critério, tudo bem. Mas não é. O
sub-relator sugere o indiciamento de seis dirigentes da Prece, dos
empregados da companhia de água e esgoto do Rio de Janeiro, e de dois da
Geap, da fundação de seguridade social.
Ambos estão subordinados a Rosinha Garotinho, cujo marido sonha ser
candidato à Presidência pelo PMDB. É até possível que as caixas de
previdência tenham cometido irregularidades sem-fim. Só que, mais uma
vez, é necessário perguntar: Por que investigar a Prece e o Geap? Qual a
participação dos dois fundos estaduais no suposto pagamento de
mensalão a deputados federais? Foi para engordar a soma dos prejuízos? O
sub-relatório não responde.
QUEM FINANCIOU A CORRUPÇÃO?
O deputado ACM Neto esforçou-se para achar problemas, apesar de na
parte principal do relatório do colega Serraglio não ter incluído os
fundos entre os financiadores do Valerioduto. Mesmo sem chegar a
qualquer conclusão, o sub-relatório dedica seis páginas ao acordo que
obriga os fundos a comprar as ações do Citibank na Brasil Telecom, caso
as partes não consigam realizar uma venda conjunta da empresa até o fim
de 2007. Na falta de provas mais concretas, abusa da acrobacia verbal.
Anota, por exemplo: “A influência político-partidária, na nomeação de
diretores, não permite que se afastem as hipóteses de ingerência
indevida nos interesses dos fundos de pensão. Operações atípicas como o
contrato de Put das ações da Brasil Telecom, bem como o direcionamento,
especialmente em 2004, na aquisição de créditos de instituições
bancárias como o BMG e o Rural, e investimentos em empreendimentos como
Umberto Primo e Costa do Sauípe”.
O neto de Antônio Carlos Magalhães “esqueceu” os aliados no sub-relatório |
Dito dessa maneira, parece que todos os negócios foram feitos pelos
atuais dirigentes das fundações. O deputado omite que os investimentos
da Previ no complexo hoteleiro Costa do Sauípe, na Bahia, são de 1999.
Deixa de dizer também que a Fundação dos Empregados do Banco do Brasil
contabiliza prejuízos de 900 milhões de reais, o triplo dos prejuízos de
14 fundos apontados em seu trabalho. Não há menção ao fato do avô,
ACM, ter pressionado para que a Previ investisse em Sauípe, apesar de
análises técnicas contrárias. Antonio Carlos Magalhães, defensor dos
interesses baianos, afirmou, depois de CartaCapital revelar na
edição 383 (de 8 de março de 2006) sua atuação no caso: “O investimento
foi bom para a Bahia, mas se fosse diretor da Previ eu votaria contra”.
Fica como sugestão de epígrafe para o subrelatório do neto.
Aprendiz da manha política da família, ACM Neto conseguiu arrancar
elogios de jornalistas que tiveram acesso a seu relatório com
antecedência. É assim mesmo. Parte considerável dos repórteres de
Brasília abre mão do espírito crítico em troca de migalhas. Houve, por
isso, quem na imprensa elogiasse a proposta do deputado de criação de
uma agência para fiscalizar os fundos.
CartaCapital relembra episódio narrado na reportagem “A orelha
desponta”, publicada na edição 353 (de 3 de agosto de 2005).
Capitaneados por ACM e Jorge Bornhausen, a bancada do PFL no Senado
derrubou a Medida Provisória que criava a Superintendência Nacional de
Previdência Complementar, apelidada Previc. A intenção do governo era
fortalecer a fiscalização dos fundos.
O primeiro parecer sob responsabilidade da Previc dizia respeito ao uso
da Fundação 14, ligada à Brasil Telecom, no interesse de Dantas. À
época, a fundação patrocinou ações judiciais contra os sócios do
Opportunity na BrT. Procuradores da Previc entenderam que a liminar
obtida pelo fundo não tinha valor. Decidiu, portanto, contra Daniel
Dantas. E foi extinta por ação dos senadores pefelistas.
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