Independência judicial é atributo do estado de direito;juiz que atende "opinião pública" no processo criminalpode até decidir. Mas não julga.
A grande imprensa está se deliciando com o espetáculo. A política
partidária promete converter espectadores em membros de torcida
organizada.
Até o ex-presidente Fernando Henrique deu o seu pitaco jurídico e disse
que o STF deve ouvir a “opinião pública”, enquanto a corregedora Eliana
Calmon, para não perder o hábito, advertiu os ministros que eles também
seriam ‘julgados’ por sua decisão.
Tudo está pronto na Corte, dizem os jornais. Mas há um grande perigo
nessa empolgação: transformar o processo criminal em julgamento político
é um enorme erro judiciário.
O julgamento político tem seus próprios campos: das comissões de
inquérito às de ética, das demissões de ministros às cassações de
mandatos.
No julgamento criminal, no entanto, não há espaço algum para se decidir
“do jeito que a opinião pública espera”. Seja lá qual for a opinião que
se diz pública.
Qualquer juiz que se atreva a julgar um réu, preocupado com o que outros
podem estar pensando dele, abre mão do seu dever constitucional.
Todos os juízes se deparam, mais hora, menos hora, com um processo de
réus conhecidos ou de crimes famosos. São processos trabalhosos, em
geral difíceis e cansativos. Às vezes, até ingratos.
Mas são processos criminais que devem ser julgados como todos os demais:
analisando os documentos e as perícias, ouvindo as testemunhas e os
réus, confrontando alegações e estudando as doutrinas. Sobretudo, com
base na lei e nos princípios da Constituição.
Jamais pensando: se eu decidir desta forma, o que é que vão achar de mim?
A independência judicial é um atributo do estado de direito. Não se
restringe a impedir a pressão de outros poderes sobre o magistrado –
juiz que atende “opinião pública” em processo criminal pode até decidir.
Mas não julga.
Por isso, costuma-se dizer que a jurisdição penal é contramajoritária –
não navega nas pesquisas ou preferências de eleitores. Não joga para a
plateia, enfim.
Quem pensa o contrário não desconhece apenas a jurisdição. Desconhece também a democracia.
Condenar ou absolver alguém para atender a outros interesses ou
vontades, por maiores que sejam, é simplesmente trair a jurisdição.
Prevaricar.
A igualdade das partes também não é suficientemente compreendida pela
imprensa, que não raro escolhe, sem hesitar, os papéis do bem e do mal
em um tribunal.
Um parecer do Ministério Público recebe lastro oficial e se presta a
virar manchete; mas arguições da defesa são reputadas apenas como
manobras.
Em um processo criminal, no entanto, não há patamares entre as partes:
promotor e advogados devem sempre estar no mesmo plano.E os juízes não
são responsáveis por “combater a impunidade” – mas julgar o conflito que
se estabelece toda vez que alguém é acusado de um delito.
Se os magistrados entrarem na “luta”, quem a estará mediando?
Há outro aspecto quase esquecido neste espetáculo de julgamento que se prenuncia.
Não fosse a arcaica e aristocrática previsão do foro privilegiado (que
na verdade só atinge a um ou outro deputado, entre tantos réus), um
julgamento como esse jamais estaria tomando a pauta de quase um mês do
STF, no lugar de centenas de processos de repercussão que aguardam a
decisão dos ministros.
O Supremo não é e nem pode se transformar em uma vara criminal.
Para que este julgamento pudesse acontecer, inúmeros juízes fizeram
audiências pelo país afora, sem contar as dezenas de outros que deixaram
de tocar os seus próprios processos para auxiliar ministros na produção
dos votos.
Onde estará o CNJ para dar conta do atraso que isso provoca?
O foro privilegiado, que permite a um deputado, promotor ou juiz, se ver
julgado por juízes especiais, é um atentado ao princípio da isonomia.
Mais um sintoma da síndrome dos desiguais – como a prisão especial para
diplomados ou a imunidade dos parlamentares.
Tinha sentido na pré-história do direito, quando as diferenças entre
nobres e plebeus, doutores e operários, vinha cravada na lei. Não em
nossa época em que a igualdade é promessa explícita da Constituição.
Quem sabe se ultrapassada essa página da história criminal, sossegados
os ânimos políticos, os parlamentares não se animem em restaurar um
mínimo de igualdade.
Nem que seja por um motivo didático, especialmente importante quando o
assunto é moralidade: mostrar que todos, inclusive os membros do poder,
se submetem às mesmas regras, às mesmas sanções e aos mesmos juízes que
os homens do povo.
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