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terça-feira, 28 de agosto de 2012

Nordestinos em São Paulo: marginalizados e amados

Marginalizados, e amados. Os nordestinos que moram em São Paulo tomaram no fim-de-semana o calçadão do monumental Vale do Anhangabaú, atraídos pelo festival 100 Anos de Gonzagão – Rei do Baião, em honra à memória e ao legado do pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989).


O duplipensar dos paulistanos com relação a esse imenso contingente de migrantes transborda em cada detalhe do evento bancado pela atual administração da cidade. “Nós, como nordestinos, fomos marginalizados por muito, muito tempo. Neste momento, é importante a gente se juntar e mostrar sem caricatura o melhor do Nordeste”, define Rodrigo Oliveira, chef do Mocotó, um dos restaurantes que centralizam as atenções do público do festival, servindo caldo de mocotó e baião-de-dois.

 
 
A experiência gastronômica dá continuidade àquela iniciada na Virada Cultural deste ano, quando paulistanos disputaram a tapa uma porção da galinhada do chef Alex Atala - há galinhada baiana no cardápio dos 100 Anos de Gonzagão, mas não é a de Atala. Desta vez, não há confusão – nem a superlotação de público que houve no Minhocão na Virada Gastronômica.

O vale onde um dia correu a céu aberto o riacho Anhangabaú é hoje território tão nobre quanto marginalizado, a ponto de não atrair grandes lotações às barracas de comida ou aos shows de homenagem a Gonzagão liderados por DominguinhosElba RamalhoFalamansaGenival LacerdaTrio Nordestino e Trio Virgulino, entre outros. Melindrosa, a programação privilegia o outrora discriminado forró “de raiz” e o chamado forró universitário deste início de século, mas deixa de fora os popularíssimos grupos de “oxente music”, feito Calcinha Preta e Aviões do Forró. Os gramados, para variar, não estão habitados somente pelo povo das ruas – ao menos nestes dois dias, os visitantes ocasionais que venceram receios e preconceitos  convivem com eles, pacificamente.
 

O evento é bem organizado aqui, desleixado acolá. Os shows acontecem pontualmente, mas nem as bilheteiras da Galeria Olido sabem do debate sobre a aceitação do forró em São Paulo, prometido na programação do evento, mas não realizado. Um festival com bom nível de organização tem de conviver com o lixo que se empilha e espalha por todo o centro degradado, semiabandonado, da cidade, por mais incessante que seja o movimento da reduzida equipe de garis trabalhando na festa.

De lado a lado, o vale corta bolsões de abandono e de luxo – na direção da praça da Sé, escadas malcheirosas, a sede da prefeitura, o edifício Martinelli e o cérebro financeiro das bolsas de valores; para o lado da praça da República, o Teatro Municipal, o calçadão degradado da avenida São João e os prédios ruinosos ocupados por manifestantes de movimentos de sem-teto – muitos nordestinos entre os subcidadãos que os habitam precariamente.


Palco de manifestações históricas como a campanha pelas Diretas Já, em 1984, o Vale do Anhangabaú foi reinaugurado com novo projeto arquitetônico em 1991, pela prefeita (nascida paraibana) Luiza Erundina. Recebeu grandes shows e eventos, mas com o passar dos anos ficou subutilizado. Atualmente, a Virada Cultural é o evento mais vistoso de que o vale urbanizado participa. Embora bancado pela Secretaria Municipal de Cultura, o 100 Anos de Gonzagão só se materializou graças à mobilização e insistência de figuras como Paulo Rosa, proprietário da tradicional casa de shows de forró e ritmos nordestinos Canto da Ema, localizada no bairro de Pinheiros.

Apesar da presença maciça de eleitores paulistanos ao longo dos dois dias de festival, o afluxo de campanhas de partidos é pequeno no Anhangabaú – não há sinal nem de propaganda eleitoral do candidato que durante a campanha à Presidência de 2010 se colocou como benfeitor dos nordestinos e fã fervoroso de Luiz Gonzaga.


A comemoração se dispersa por dois palcos de shows (um deles erguido debaixo do colossal Viaduto do Chá), uma barraca dedicada ao repente e à literatura de cordel e, mais próximo do viaduto Santa Ifigênia, o corredor gastronômico cozido divinamente em escondidinho, mexidinho paraibano, xibiu, a macaxeira recheada do chef Marcelo Pinheiro (foto), licor de jurubeba, sorvete de cajá, bolo de rolo e cuscuz de tapioca.

Paulistano “de alma pernambucana”, Rodrigo Oliveira, do Mocotó, é a celebridade gastronômica do evento – e de seu próprio negócio. Seu restaurante se localiza na Vila Medeiros, periferia norte da cidade, tomando posse do que inicialmente era o armazém de produtos nordestinos de seu pai. Aos domingos, formam-se filas gigantescas de espera, regadas a caipirinha, torresmo e queijo coalho com melaço. O sucesso da comida sertaneja revalorizada por Rodrigo tem desempenhado papel crucial em instigar uma reconfiguração des-desequilibrada do mapa gastronômico-geográfico de São Paulo. 
 
“Eu e os convidados que estão cozinhando aqui, inclusive gente da minha família, temos restaurantes de origem e alma nordestina. Somos gente que fala das suas raízes, uma relação que vem de berço. É um momento muito favorável, a gente vive uma onda de brasilidade muito forte”, ele afirma. Embora cite a marginalização da população nordestina, Rodrigo diz achar passado o tempo da discriminação: ”Vejo que a gente tem sido acolhido como se deve. Numa cidade como São Paulo, multicultural, multifacetada, não podia ser diferente”. 


A brasilidade que respeita os saberes nordestinos e afrobrasileiros brilha na barraca do chef alagoano Guga Rocha, que vende uma peculiar invenção própria diante do imponente prédio central dos Correios: o hot bode. “É uma versão do hot dog, mas usando uma linguiça artesanal de bode, com páprica, canela, cravo, batata-palha e molho de tomate caseiro, bem doce”, explica Guga.

 

Mais audacioso – e nacional-sofisticado – é o bode quilombola com mingaupitinga, receita que o chef traz da culinária dos quilombos do Brasil, sobre a qual está escrevendo um livro. “Fui aos quilombos, fizemos um livro com 250 receitas, tudo de conhecimento oral”, conta. “Mingaupitinga é um creme de massa puba, que é uma massa de mandioca fermentada, com leite de coco, leite de vaca, cebola, sal e um pouquinho de pimenta. A gente serve num recipiente de bambu, como base para o bode, com banana da terra, feijão de corda, amendoim, gengibre, pimenta dedo de moça, linguiça calabresa defumada. Do bode a gente só usa o pescoço, porque carne perto de osso é onde está o sabor, Fica supermacio, supersaboroso”, entusiasma-se.

Guga celebra a aproximação de mundos dramaticamente distantes no primeiro evento de rua de que participa: “É demais, eu adoro as pessoas, o contato. Todos os malucos param na banca. Um morador de rua acabou de me dar uma super-receita de doce de chuchu. O cara foi cozinheiro, eu queria até contratar ele”. 

O preconceito brasileiro contra a cozinha brasileira vem à tona no discurso do chef: “Fiz eventos no Canadá, lá fora as pessoas têm uma curiosidade enorme por nossa comida. E aqui existe preconceito. Agora que os olhos do mundo estão voltados para o Brasil, a gente tem a obrigação de enaltecer cada vez mais a nossa cozinha. É para isso que a gente está aí”.

Paradoxos do duplipensar: a tensão norte-sul, Nordeste-Sudeste, é mais notada hoje porque vem sendo colocada em xeque, talvez diminuindo, desde que um migrante pernambucano ocupou, com pleno êxito e reconhecimento mundial, a presidência da república do Brasil. Luiz Inácio Lula da Silva não é retratado nem citado diretamente no 100 Anos de Gonzagão, mas a presença dele anda por toda parte, no orgulho nordestino, nos sabores, nos sons, no sotaque dos repentistas que louvam a cidade de São Paulo em ritmo de trava-língua.


O repentista cearense Cacá Lopes, do sertão do Araripe, faz rimas em trava-língua sobre “O caqui que Cacá quer” e sobre loucura. Explica o Coletivo Chapéu de Palha que toma conta da barraca e conta que “cordeografou” o mestre Luiz Gonzaga e está lançando o cordel pela editora Luzeiro. Amados na terra natal, o repente e o cordel sobrevivem em São Paulo como subculturas, bem menos reconhecidos do que mereciam – inclusive pelo desconcertante parentesco com o rap, gênero musical que viceja nas periferias paulistanas e é filho do hip-hop norte-americano com mãe migrante nordestina (prova disso é o grupo Z’África Brasil, formado por filhos de migrantes nordestinos).

Na barraca Chapéu de Palha, acontecem fusões e (re)encontros que não costumam caber nos cérebros das elites e da intelectualidade paulistana: Luiz Gonzaga, rei pernambucano do baião, do xote e do xaxado, confraterniza com Roberto Carlos, rei capixaba do iê-iê-iê e do romantismo, seja nas biografias em formato de cordel ou no canto do repentista triste que lembra Gonzagão, mas canta o “bem” e o “mal” à maneira de Robertão.


Entre um e outro duelo de repentistas, o DJ toca a melancolia de Luiz Gonzaga em “Hora do Adeus” (1967), quando o forró perdia espaço para a bossa nova e a MPB universitária: “Eu agradeço ao povo brasileiro/ norte, centro, sul, inteiro, onde reinou o baião/ se eu mereci minha coroa de rei, essa sempre eu honrei/ foi a minha obrigação/ minha sanfona, minha voz, o meu baião/ este meu chapéu de couro e também o meu gibão/ vou juntar tudo, dar de presente ao museu, é a hora do adeus/ de Luiz, rei do baião”. 

A melancolia atemporal dos cantos de passarinhos aprisionados de Gonzagão soa próxima da melancolia cotidiana dos nordestinos mais simples e humildes, que vagam por São Paulo sem proteção a seus direitos fundamentais. Um vale de concreto se abre entre o Brasil florescente do chef Rodrigo Oliveira e a dura memória presente do mítico (e provavelmente nordestino) “Pedreiro Waldemar“, sucesso na voz do paulista Blecaute no carnaval de 1949: “Você conhece o pedreiro Waldemar?/ Não conhece, mas eu vou lhe apresentar/ de madrugada toma o trem da circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar/ leva marmita embrulhada no jornal/ se tem almoço, nem sempre tem jantar/ o Waldemar, que é mestre no oficio,/ constrói um edificio/ e depois não pode entrar”. Amados, mas ainda marginalizados.

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