Sanguessugado do Conversa Afiada
“Quanto
à classe média conservadora, cujas opiniões influenciam grandemente os
magistrados, não foi preciso grande esforço dos meios de comunicação de
massa para nela suscitar a fúria punitiva dos políticos corruptos, e
para saudar o relator do processo do “mensalão” como herói nacional. É
que os integrantes dessa classe, muito embora nem sempre procedam de
modo honesto em suas relações com as autoridades – bastando citar a
compra de facilidades na obtenção de licenças de toda sorte, com ou sem
despachante; ou a não-declaração de rendimentos ao Fisco –, sempre
esteve convencida de que a desonestidade pecuniária dos políticos é
muito pior para o povo do que a exploração empresarial dos trabalhadores
e dos consumidores”.
Fábio Konder Comparato
Ao
se encerrar o processo penal de maior repercussão pública dos últimos
anos, é preciso dele tirar as necessárias conclusões ético-políticas.
Comecemos por focalizar aquilo que representa o nervo central da vida humana em sociedade, ou seja, o poder.
No
Brasil, a esfera do poder sempre se apresentou dividida em dois níveis,
um oficial e outro não-oficial, sendo o último encoberto pelo primeiro.
O
nível oficial de poder aparece com destaque, e é exibido a todos como
prova de nosso avanço político. A Constituição, por exemplo, declara
solenemente que todo poder emana do povo. Quem meditar, porém, nem que
seja um instante, sobre a realidade brasileira, percebe claramente que o
povo é, e sempre foi, mero figurante no teatro político.
Ainda
no escalão oficial, e com grande visibilidade, atuam os órgãos
clássicos do Estado: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e outros
órgãos auxiliares. Finalmente, completando esse nível oficial de poder e
com a mesma visibilidade, há o conjunto de todos aqueles que militam
nos partidos políticos.
Para a opinião pública e os observadores menos atentos, todo o poder político concentra-se aí.
É
preciso uma boa acuidade visual para enxergar, por trás dessa fachada
brilhante, um segundo nível de poder, que na realidade quase sempre
suplanta o primeiro. É o grupo formado pelo grande empresariado:
financeiro, industrial, comercial, de serviços e do agronegócio.
No
exercício desse poder dominante (embora sempre oculto), o grande
empresariado conta com alguns aliados históricos, como a corporação
militar e a classe média superior. Esta, aliás, tem cada vez mais sua
visão de mundo moldada pela televisão, o rádio e a grande imprensa, os
quais estão, desde há muito, sob o controle de um oligopólio
empresarial. Ora, a opinião – autêntica ou fabricada – da classe média
conservadora sempre influenciou poderosamente a mentalidade da grande
maioria dos membros do nosso Poder Judiciário.
Tentemos, agora, compreender o rumoroso caso do “mensalão”.
Ele
nasceu, alimentou-se e chegou ao auge exclusivamente no nível do poder
político oficial. A maioria absoluta dos réus integrava o mesmo partido
político; por sinal, aquele que está no poder federal há quase dez anos.
Esse partido surgiu, e permaneceu durante alguns poucos anos, como uma
agremiação política de defesa dos trabalhadores contra o empresariado.
Depois, em grande parte por iniciativa e sob a direção de José Dirceu,
foi aos poucos procurando amancebar-se com os homens de negócio.
Os
grandes empresários permaneceram aparentemente alheios ao debate do
“mensalão”, embora fazendo força nos bastidores para uma condenação
exemplar de todos os acusados. Essa manobra tática, como em tantas
outras ocasiões, teve por objetivo desviar a atenção geral sobre a
Grande Corrupção da máquina estatal, por eles, empresários, mantida
constantemente em atividade magistralmente desde Pedro Álvares Cabral.
Quanto
à classe média conservadora, cujas opiniões influenciam grandemente os
magistrados, não foi preciso grande esforço dos meios de comunicação de
massa para nela suscitar a fúria punitiva dos políticos corruptos, e
para saudar o relator do processo do “mensalão” como herói nacional. É
que os integrantes dessa classe, muito embora nem sempre procedam de
modo honesto em suas relações com as autoridades – bastando citar a
compra de facilidades na obtenção de licenças de toda sorte, com ou sem
despachante; ou a não-declaração de rendimentos ao Fisco –, sempre
esteve convencida de que a desonestidade pecuniária dos políticos é
muito pior para o povo do que a exploração empresarial dos trabalhadores
e dos consumidores.
E o Judiciário nisso tudo?
Sabe-se,
tradicionalmente, que nesta terra somente são condenados os 3 Ps:
pretos, pobres e prostitutas. Agora, ao que parece, estas últimas
(sobretudo na high society) passaram a ser substituídas pelos políticos,
de modo a conservar o mesmo sistema de letra inicial.
Pouco
se indaga, porém, sobre a razão pela qual um “mensalão” anterior ao do
PT, e que serviu de inspiração para este, orquestrado em outro partido
político (por coincidência, seu atual opositor ferrenho), ainda não
tenha sido julgado, nem parece que irá sê-lo às vésperas das próximas
eleições. Da mesma forma, não causou comoção, à época, o fato de que o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tivesse sido publicamente
acusado de haver comprado a aprovação da sua reeleição no Congresso por
emenda constitucional, e a digna Procuradoria-Geral da República
permanecesse muda e queda.
Tampouco houve o
menor esboço de revolta popular diante da criminosa façanha de
privatização de empresas estatais, sob a presidência de Fernando
Henrique Cardoso. As poucas ações intentadas contra esse gravíssimo
atentado ao patrimônio nacional, em particular a ação popular visando a
anular a venda da Vale do Rio Doce na bacia das almas, jamais chegaram a
ser julgadas definitivamente pelo Poder Judiciário.
Mas
aí vem a pergunta indiscreta: – E os grandes empresários? Bem, estes
parecem merecer especial desvelo por parte dos magistrados.
Ainda
recentemente, a condenação em primeira instância por vários crimes
econômicos de um desses privilegiados, provocou o imediato afastamento
do Chefe da Polícia Federal, e a concessão de habeas-corpus diretamente
pelo presidente do Supremo Tribunal, saltando por cima de todas as
instâncias intermediárias.
Estranho também, para
dizer o mínimo, o caso do ex-presidente Fernando Collor. Seu
impeachment foi decidido por “atentado à dignidade do cargo”
(entenda-se, a organização de uma empresa de corrupção pelo seu
fac-totum, Paulo Cezar Farias). Alguns “contribuintes” para a caixinha
presidencial, entrevistados na televisão, declararam candidamente terem
sido constrangidos a pagar, para obter decisões governamentais que
estimavam lícitas, em seu favor. E o Supremo Tribunal Federal, aí sim,
chamado a decidir, não vislumbrou crime algum no episódio.
Vou
mais além. Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem no
processo do “mensalão”, declararam que os crimes aí denunciados eram
“gravíssimos”. Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram,
chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como
dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos
agentes da repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a
sistemática tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a
execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a
ocultação dos cadáveres.
Com efeito, ao julgar
em abril de 2010 a ação intentada pelo Conselho Federal da OAB, para que
fosse reinterpretada, à luz da nova Constituição e do sistema
internacional de direitos humanos, a lei de anistia de 1979, o mesmo
Supremo Tribunal, por ampla maioria, decidiu que fora válido aquele
apagamento dos crimes de terrorismo de Estado, estabelecido como
condição para que a corporação militar abrisse mão do poder supremo. O
severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não compareceu às
duas sessões de julgamento.
Pois bem, foi
preciso, para vergonha nossa, que alguns meses depois a Corte
Interamericana de Direitos Humanos reabrisse a discussão sobre a
matéria, e julgasse insustentável essa decisão do nosso mais alto
tribunal.
Na verdade, o que poucos entendem –
mesmo no meio jurídico – é que o julgamento de casos com importante
componente político ou religioso não se faz por meio do puro silogismo
jurídico tradicional: a interpretação das normas jurídicas pertinentes
ao caso, como premissa maior; o exame dos fatos, como premissa menor,
seguindo logicamente a conclusão.
O procedimento
mental costuma ser bem outro. De imediato, em casos que tais, salvo
raras e honrosas exceções, os juízes fazem interiormente um
pré-julgamento, em função de sua mentalidade própria ou visão de mundo;
vale dizer, de suas preferências valorativas, crenças, opiniões, ou até
mesmo preconceitos. É só num segundo momento, por razões de protocolo,
que entra em jogo o raciocínio jurídico-formal. E aí, quando se trata de
um colegiado julgador, a discussão do caso pelos seus integrantes
costuma assumir toda a confusão de um diálogo de surdos.
Foi o que sucedeu no julgamento do “mensalão”.
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