Ao se encerrar o processo penal de maior repercussão pública dos últimos
anos, é preciso dele tirar as necessárias conclusões ético-políticas.
Comecemos por focalizar aquilo que representa o nervo central da vida humana em sociedade, ou seja, o poder.
No Brasil, a esfera do poder sempre se apresentou dividida em dois
níveis, um oficial e outro não-oficial, sendo o último encoberto pelo
primeiro.
O nível oficial de poder aparece com destaque, e é exibido a todos como
prova de nosso avanço político. A Constituição, por exemplo, declara
solenemente que todo poder emana do povo. Quem meditar, porém, nem que
seja um instante, sobre a realidade brasileira, percebe claramente que o
povo é, e sempre foi, mero figurante no teatro político.
Ainda no escalão oficial, e com grande visibilidade, atuam os órgãos
clássicos do Estado: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e outros
órgãos auxiliares. Finalmente, completando esse nível oficial de poder e
com a mesma visibilidade, há o conjunto de todos aqueles que militam
nos partidos políticos.
Para a opinião pública e os observadores menos atentos, todo o poder político concentra-se aí.
É preciso uma boa acuidade visual para enxergar, por trás dessa fachada
brilhante, um segundo nível de poder, que na realidade quase sempre
suplanta o primeiro. É o grupo formado pelo grande empresariado:
financeiro, industrial, comercial, de serviços e do agronegócio.
No exercício desse poder dominante (embora sempre oculto), o grande
empresariado conta com alguns aliados históricos, como a corporação
militar e a classe média superior. Esta, aliás, tem cada vez mais sua
visão de mundo moldada pela televisão, o rádio e a grande imprensa, os
quais estão, desde há muito, sob o controle de um oligopólio
empresarial. Ora, a opinião – autêntica ou fabricada – da classe média
conservadora sempre influenciou poderosamente a mentalidade da grande
maioria dos membros do nosso Poder Judiciário.
Tentemos, agora, compreender o rumoroso caso do “mensalão”.
Ele nasceu, alimentou-se e chegou ao auge exclusivamente no nível do
poder político oficial. A maioria absoluta dos réus integrava o mesmo
partido político; por sinal, aquele que está no poder federal há quase
dez anos. Esse partido surgiu, e permaneceu durante alguns poucos anos,
como uma agremiação política de defesa dos trabalhadores contra o
empresariado. Depois, em grande parte por iniciativa e sob a direção de
José Dirceu, foi aos poucos procurando amancebar-se com os homens de
negócio.
Os grandes empresários permaneceram aparentemente alheios ao debate do
“mensalão”, embora fazendo força nos bastidores para uma condenação
exemplar de todos os acusados. Essa manobra tática, como em tantas
outras ocasiões, teve por objetivo desviar a atenção geral sobre a
Grande Corrupção da máquina estatal, por eles, empresários, mantida
constantemente em atividade magistralmente desde Pedro Álvares Cabral.
Quanto à classe média conservadora, cujas opiniões influenciam
grandemente os magistrados, não foi preciso grande esforço dos meios de
comunicação de massa para nela suscitar a fúria punitiva dos políticos
corruptos, e para saudar o relator do processo do “mensalão” como herói
nacional. É que os integrantes dessa classe, muito embora nem sempre
procedam de modo honesto em suas relações com as autoridades – bastando
citar a compra de facilidades na obtenção de licenças de toda sorte, com
ou sem despachante; ou a não-declaração de rendimentos ao Fisco –,
sempre esteve convencida de que a desonestidade pecuniária dos políticos
é muito pior para o povo do que a exploração empresarial dos
trabalhadores e dos consumidores.
E o Judiciário nisso tudo?
Sabe-se, tradicionalmente, que nesta terra somente são condenados os 3
Ps: pretos, pobres e prostitutas. Agora, ao que parece, estas últimas
(sobretudo na high society) passaram a ser substituídas pelos políticos,
de modo a conservar o mesmo sistema de letra inicial.
Pouco se indaga, porém, sobre a razão pela qual um “mensalão” anterior
ao do PT, e que serviu de inspiração para este, orquestrado em outro
partido político (por coincidência, seu atual opositor ferrenho), ainda
não tenha sido julgado, nem parece que irá sê-lo às vésperas das
próximas eleições. Da mesma forma, não causou comoção, à época, o fato
de que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tivesse sido
publicamente acusado de haver comprado a aprovação da sua reeleição no
Congresso por emenda constitucional, e a digna Procuradoria-Geral da
República permanecesse muda e queda.
Tampouco houve o menor esboço de revolta popular diante da criminosa
façanha de privatização de empresas estatais, sob a presidência de
Fernando Henrique Cardoso. As poucas ações intentadas contra esse
gravíssimo atentado ao patrimônio nacional, em particular a ação popular
visando a anular a venda da Vale do Rio Doce na bacia das almas, jamais
chegaram a ser julgadas definitivamente pelo Poder Judiciário.
Mas aí vem a pergunta indiscreta: – E os grandes empresários? Bem, estes
parecem merecer especial desvelo por parte dos magistrados.
Ainda recentemente, a condenação em primeira instância por vários crimes
econômicos de um desses privilegiados, provocou o imediato afastamento
do Chefe da Polícia Federal, e a concessão de habeas-corpus diretamente
pelo presidente do Supremo Tribunal, saltando por cima de todas as
instâncias intermediárias.
Estranho também, para dizer o mínimo, o caso do ex-presidente Fernando
Collor. Seu impeachment foi decidido por “atentado à dignidade do cargo”
(entenda-se, a organização de uma empresa de corrupção pelo seu
fac-totum, Paulo Cezar Farias). Alguns “contribuintes” para a caixinha
presidencial, entrevistados na televisão, declararam candidamente terem
sido constrangidos a pagar, para obter decisões governamentais que
estimavam lícitas, em seu favor. E o Supremo Tribunal Federal, aí sim,
chamado a decidir, não vislumbrou crime algum no episódio.
Vou mais além. Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao votarem
no processo do “mensalão”, declararam que os crimes aí denunciados eram
“gravíssimos”. Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram,
chamados a votar no processo da lei de anistia, não consideraram como
dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos
agentes da repressão, durante o regime empresarial-militar: a saber, a
sistemática tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a
execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a
ocultação dos cadáveres.
Com efeito, ao julgar em abril de 2010 a ação intentada pelo Conselho
Federal da OAB, para que fosse reinterpretada, à luz da nova
Constituição e do sistema internacional de direitos humanos, a lei de
anistia de 1979, o mesmo Supremo Tribunal, por ampla maioria, decidiu
que fora válido aquele apagamento dos crimes de terrorismo de Estado,
estabelecido como condição para que a corporação militar abrisse mão do
poder supremo. O severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não
compareceu às duas sessões de julgamento.
Pois bem, foi preciso, para vergonha nossa, que alguns meses depois a
Corte Interamericana de Direitos Humanos reabrisse a discussão sobre a
matéria, e julgasse insustentável essa decisão do nosso mais alto
tribunal.
Na verdade, o que poucos entendem – mesmo no meio jurídico – é que o
julgamento de casos com importante componente político ou religioso não
se faz por meio do puro silogismo jurídico tradicional: a interpretação
das normas jurídicas pertinentes ao caso, como premissa maior; o exame
dos fatos, como premissa menor, seguindo logicamente a conclusão.
O procedimento mental costuma ser bem outro. De imediato, em casos que
tais, salvo raras e honrosas exceções, os juízes fazem interiormente um
pré-julgamento, em função de sua mentalidade própria ou visão de mundo;
vale dizer, de suas preferências valorativas, crenças, opiniões, ou até
mesmo preconceitos. É só num segundo momento, por razões de protocolo,
que entra em jogo o raciocínio jurídico-formal. E aí, quando se trata de
um colegiado julgador, a discussão do caso pelos seus integrantes
costuma assumir toda a confusão de um diálogo de surdos.
Foi o que sucedeu no julgamento do “mensalão”.
Fábio Konder Comparato
Nenhum comentário:
Postar um comentário
”Sendo este um espaço democrático, os comentários aqui postados são de total responsabilidade dos seus emitentes, não representando necessariamente a opinião de seus editores. Nós, nos reservamos o direito de, dentro das limitações de tempo, resumir ou deletar os comentários que tiverem conteúdo contrário às normas éticas deste blog. Não será tolerado Insulto, difamação ou ataques pessoais. Os editores não se responsabilizam pelo conteúdo dos comentários dos leitores, mas adverte que, textos ofensivos à quem quer que seja, ou que contenham agressão, discriminação, palavrões, ou que de alguma forma incitem a violência, ou transgridam leis e normas vigentes no Brasil, serão excluídos.”