O que os anos recentes de um dos grandes líderes sindicais das décadas de 1970 e 1980 contam sobre o Brasil de hoje.
Este texto foi escrito 4 dias antes da morte de Luiz Gushiken
Montaigne escreveu que o tamanho do homem se mede na atitude diante da morte, e citava como exemplos Sócrates e Sêneca.
Os dois morreram
serenamente consolando os que os amavam. Sócrates foi obrigado a tomar
cicuta por um tribunal de Atenas e Sêneca a cortar os pulsos por ordem
de Nero.
Meu pai jamais se
queixou em sua agonia, e penso sempre em Montaigne quando me lembro de
sua coragem diante da morte, confortando-nos a todos.
Me veio isso ontem à
mente ao ler no twitter a notícia de Luís Gushiken morrera aos 63 anos.
Depois desmentiram, mas ficou claro que ele vive seus dias finais num
quarto do Sírio Libanês, com um câncer inexpugnável.
Soube que ele mesmo
se ministra a morfina para enfrentar a dor nos momentos em que ela é
insuportável, e para evitar assim a sedação.
Li também que ele recebe, serenamente, amigos com os quais fala do passado e discute o presente.
A força na doença
demonstrada por Gushiken é a maior demonstração de grandeza moral
segundo a lógica de Montaigne, que compartilho.
Não o conheci
pessoalmente, mas é um nome forte em minha memória jornalística. Nos
anos 1980, bancário do Banespa, ele foi um dos sindicalistas que fizeram
história no Brasil ao lado de personagens como Lula, no ABC.
Eu trabalhava na
Veja, então, e como jovem repórter acompanhei a luta épica dos
trabalhadores para recuperar parte do muito que lhes havia sido
subtraído na ditadura militar.
Os militares haviam
simplesmente proibido e reprimido brutalmente greves, a maior arma dos
trabalhadores na defesa de seus salários e de sua dignidade. Dessa
proibição resultou um Brasil abjetamente iníquo, o paraíso do 1%.
Fui, da Veja, para o jornalismo de negócios, na Exame, e me afastei do mundo político em que habitava Gushiken.
Ele acabaria fundando o PT, e teria papel proeminente no primeiro governo Lula, depois de coordenar sua campanha vitoriosa.
Acabaria deixando o
governo no fragor das denúncias do Mensalão. E é exatamente esta parte
da vida de Gushiken que me parece particularmente instrutiva para
entender o Brasil moderno.
Gushiken foi
arrolado entre os 40 incriminados do Mensalão. O número, sabe-se hoje,
foi cuidadosamente montado para que se pudesse fazer alusões a Ali Babá e
os 40 ladrões.
Gushiken foi
submetido a todas as acusações possíveis, e os que o conhecem dizem o
quanto isso contribuiu para o câncer que o está matando.
Mas logo se
comprovou que não havia nada que pudesse comprometê-lo, por mais que
desejassem. Ainda assim, Gushiken só foi declarado inocente formalmente
pelo STF depois de muito tempo, bem mais que o justo e o necessário,
segundo especialistas.
Num site da
comunidade japonesa, li um artigo de um jornalista que dizia, como um
samurai, que Gushiken enfim tivera sua “dignidade devolvida”.
Acho bonito, e isso
evoca a alma japonesa e sua relação peculiar com a decência, mas
discordo em que alguém possa roubar a dignidade de um homem digno com
qualquer tipo de patifaria, como ocorreu. A indignidade estava em quem o
acusou falsamente e em quem prolongou o sofrimento jurídico e pessoal
de Gushiken.
O episódio conta
muito sobre a justiça brasileira, e sobre, especificamente, o processo
do Mensalão. A história há de permitir um julgamento mais calmo, e tenho
para mim que o papel do Supremo será visto como uma página de
ignomínia.
Gushiken não foi atropelado apenas pela justiça. Veio, com ela, a mídia e, com a mídia, o massacre que conhecemos.
Um caso é exemplar.
Uma nota da seção
Radar, da Veja, acusou Gushiken de ter pagado com dinheiro público um
jantar com um interlocutor que saiu por mais de 3 000 reais. A nota
descia a detalhes nos vinhos e nos charutos “cubanos”.
Gushiken processou a
revista. Ele forneceu evidências – a começar pela nota e por testemunho
de um garçom – de que a conta era na verdade um décimo da alegada, que o
vinho fora levado de casa, e os charutos eram brasileiros.
Mais uma vez, uma demora enorme na justiça, graças a chicanas jurídicas da Abril.
Em junho passado, Gushiken enfim venceu a causa. A justiça condenou a Veja a pagar uma indenização de 20 mil reais.
O tamanho miserável
da indenização se vê pelo seguinte: é uma fração de uma página de
publicidade da Veja. Multas dessa dimensão não coíbem, antes estimulam,
leviandades de empresas jornalísticas que faturam na casa dos bilhões.
Não vou entrar no
mérito dos leitores enganados, que construíram um perfil imaginário de
Gushiken com base em informações como aquela do Radar. Também eles
deveriam ser indenizados, a rigor.
Gushiken enfrentou, na vida, a ditadura, as lutas sindicais por seus pares modestos, a justiça e a mídia predadora.
Combateu o bom combate.
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