Noam Chomsky é, aos 84 anos, um dos maiores intelectuais no mundo. Seu trabalho e suas realizações são bem conhecidos – ele é linguista norte-americano, professor emérito no Massachussets Institute of Technology (MIT) há mais de 60 anos, analista e ativista político constante, crítico original do capitalismo e da ordem mundial que tem como centro os Estados Unidos
Nesse entrevista, Chomsky debate a paralisação do governo
norte-americano, por disputas incessantes no sistema político e, em
especial, chantagem das forças de direita mais primitivas. Também aborda
os sinais de perda de influência de Washington na Síria e da
emegência, na América do Sul, de um conjunto de governos que afasta-se
dos EUA, pela primeira vez em dois séculos.
Gostaria de começar com a paralisação recente do governo dos EUA. Por que ela é diferente dessa vez, se já aconteceu no passado?
Noam Chomsky: Paul Krugman fez há dias, no New York Times, um ótimo comentário a respeito. Lembra que o partido republicano é minoritário entre a opinião pública e controla a Câmara [House of Representatives, que
junto do Senado representa o Legislativo nos EUA]. Está levando o
governo à paralisação e talvez ao calote de suas dívidas. Conseguiu a
maioria por conta de inúmeras artimanhas. Obteve uma minoria de
votos, mas a maioria das cadeiras. Está se utilizando disso para impor
uma agenda extremamente nociva para a sociedade. Foca particularmente a
questão do sistema de saúde público.
Os EUA são o único, entre os países ricos e desenvolvidos, que não
possue um sistema nacional de saúde pública. O sistema norte-americano é
escandaloso. Gasta o dobro de recursos de países comparáveis, para
obter um dos piores resultados. E a razão para isso é ser altamente
privatizado e não-regulado, tornando-se extremamente ineficiente e caro.
Aquilo que alguns chamam de “Obamacare” é uma tentativa de mudar esse
sistema de forma suave – não tão radicalmente como seria desejável –
para torná-lo um pouco melhor e mais acessível.
O Partido Republicano escolheu o sistema de saúde como alavanca para
conquistar alguma força política. Quer destruir o Obamacare. Essa
posição não é unânime entre os republicanos, é de uma ala do partido –
chamada de “conservadora”, de fato, profundamente reacionária. Norman
Orstein, um dos principais comentaristas conservadores, descreve o
movimento, corretamente, como uma “insurgência radical”.
Então, há uma insurgência radical, que implica grande parte da base
republicana, disposta a tudo – destruir o país, ou qualquer coisa, com o
intuito de acabar com a Lei de Assistência Acessível (o Obamacare). É a
única coisa a que foram capazes de se agarrar. Se falharem nisso,
terão de dizer a sua base que mentiram para ela, ao longo dos últimos
cinco anos. Por isso, estão dispostos a ir até onde for necessário. É
um fato incomum – penso que único – na história dos sistemas
parlamentaristas modernos. É muito perigoso para o país e para o mundo.
Como a paralisação poderia terminar?
Bem, a paralisação por si só é ruim – mas não devastadora. O perigo
real surgirá nas próximas semanas. Há, nos Estados Unidos, uma
legislação rotineira – aprovada todo ano – que permite ao governo tomar
dinheiro emprestado. Do contrário, ele não funciona. Se o Congresso não
autorizar a continuação da tomada de empréstimos, talvez o governo
peça moratória. Isso nunca aconteceu e um calote do governo
norte-americano não seria muito prejudicial apenas aos EUA. Ele
provavelmente afundaria o país, de novo, numa profunda recessão – mas
talvez também quebre o sistema financeiro internacional. É possível que
encontrem maneiras para contornar a situação, mas o sistema financeiro
mundial depende muito da credibilidade do Departamento do Tesouro dos
EUA. A credibilidade dos títulos de dívida emitidos pelos EUA é vista
como “tão boa quanto ouro”: esses papéis são a base das finanças
internacionais. Se o governo não conseguir honrá-los, eles não
possuirão mais valor, e o efeito no sistema financeiro internacional
poderá ser muito severo. Mas para destruir uma lei de saúde limitada, a
extrema direita republicana, os reacionários, estão dispostos a fazer
isso.
No momento, os EUA estão divididos sobre como o tema será resolvido. O
ponto principal a observar é a divisão no Partido Republicano. O establishment republicano,
junto com Wall Street, os banqueiros, os executivos de corporações não
querem isso – de maneira nenhuma. É parte da base que deseja, e tem
sido muito difícil controlá-la. Há uma razão para terem um grande grupo
de delirantes em sua base. Nos últimos 30 ou 40 anos, ambos os
partidos que comandam a política institucional dos EUA inclinaram-se
para a direita. Os democratas de hoje são, basicamente, aquilo que se
costumava chamar, há tempos, de republicanos moderados. E os
republicanos foram tanto para a direita que simplesmente não conseguem
votos, na forma tradicional.
Tornaram-se um partido dedicado aos muito ricos e ao setor corporativo –
e você simplesmente não consegue votos dessa maneira. Por isso, têm
sido compelidos a mobilizar eleitores que sempre estiveram presentes no
sistema político, mas eram marginais. Por exemplo, os extremistas
religiosos. Os EUA são um dos expoentes no que se refere ao extremismo
religioso no mundo. Mais ou menos metade da população acredita que o
mundo foi criado há alguns milhares de anos; dois terços da população
está aguardando a segunda vinda de Cristo. A direita também teve de
recorrer aos nativistas. A cultura das armas, que está fora de
controle, é incentivada pelos republicanos. Tenta-se convencer as
pessoas de que devem se armar, para nos proteger. Nos proteger de quem?
Das Nações Unidas? Do governo? Dos alienígenas?
Uma enorme parcela da sociedade é extremamente irracional e agora foi mobilizada politicamente pelo establishment
republicano. Os líderes presumem que podem controlar este setor, mas a
tarefa está se mostrando difícil. Foi possível perceber isso nas
primárias republicanas para a presidência, em 2012. O candidato do establishment
era Romney, um advogado e investidor em Wall Street – mas a base não o
queria. Toda vez que a base surgia com um possível candidato, o establishment
fazia de tudo para destruí-lo, recorrendo, por exemplo, a ataques
maciços de propaganda. Foram muitos, um mais louco que o outro. O establishment republicano não os quer, tem medo deles, conseguiu nomear seu candidato. Mas agora está perdendo controle sobre a base.
Sinto dizer que isso tem algumas analogias históricas. É mais ou menos
parecido com o que aconteceu na Alemanha, nos últimos anos da República
de Weimar. Os industriais alemães queriam usar os nazistas, que eram
um grupo relativamente pequeno, como um animal de combate contra o
movimento trabalhista e a esquerda. Acharam que podiam controlá-los,
mas descobriram que estavam errados. Não estou dizendo que o fenômeno
vai se repetir aqui, é um cenário bem diferente, mas algo similar está
ocorrendo. O establishment republicano, o bastião corporativo e
financeiro dos ricos, está chegando em um ponto em que não consegue
mais controlar a base que mobilizou.
Na política externa, as notícias
sobre a Síria sumiram da mídia convencional, desde a aprovação do
acordo para confiscar as armas químicas do arsenal de Assad. Você pode
comentar esse silêncio?
Nos EUA, há pouco interesse sobre o que acontece fora das fronteiras. A
sociedade é bem insular. A maioria das pessoas sabe bem pouco sobre o
que acontece no mundo e não liga tanto para isso. Está preocupada com
seus próprios problemas, não têm o conhecimento ou o compreensão sobre o
mundo ou sobre História. Quando algo, no exterior, não é
constantemente martelado pela mídia, esta maioria simplesmente não sabe
nada a respeito.
A Síria vive uma situação muito ruim, atrocidades realmente terríveis,
mas há lugares muito piores no mundo. As maiores atrocidades das
últimas décadas têm ocorrido no Congo – na região oriental –, onde mais
ou menos 5 milhões de pessoas foram mortas. Nós – os EUA – estamos
envolvidos, indiretamente. O principal mineral em seu celular é o
coltan, que vem daquela região. Corporações internacionais estão lá,
explorando os ricos recursos naturais Muitas delas bancam milícias, que
estão lutando umas contra as outras pelo controle dos recursos, ou de
parte deles. O governo de Ruanda, que é um cliente dos EUA, está
intervindo maciçamente, assim como Uganda. É praticamente uma guerra
mundial na África. Bem, quantas pessoas sabem disso? Mal chega à mídia e
as pessoas simplesmente não sabem nada a respeito.
Na Síria, o presidente Obama fez um discurso sobre o que chamou de sua
“linha vermelha”: não se pode usar armas químicas; pode-se fazer de
tudo, exceto utilizar armas químicas. Surgiram relatórios credíveis,
afirmando que a Síria utilizou essas armas. Se é verdade, ainda está em
aberto, mas muito provavelmente é. Nesse ponto, o que estava em jogo é o
que se chama de credibilidade. A liderança política e os
comentaristas de política externa indicavam, corretamente, que a
credibilidade norte-americana estava em jogo. Algo precisava ser feito
para mostrar que nossas ordens não podem ser violadas. Planejou-se um
bombardeio, que provavelmente tornaria a situação ainda pior, mas
manteria a credibilidade dos EUA.
O que é “credibilidade”? É uma noção bem familiar – basicamente, a
noção principal para organizações como a Máfia. Suponha que o Poderoso
Chefão decida que você terá que pagá-lo, para ter proteção. Ele tem de
“bancar” essa afirmação. Não importa se precisa ou não do dinheiro. Se
algum pequeno lojista, em algum lugar, decidir que não irá pagá-lo, o
Poderoso Chefão não deixa a ousadia impune. Manda seus capangas
espancá-lo sem piedade, ainda que o dinheiro não signifique nada para
ele. É preciso estabelecer credibilidade: do contrário, o cumprimento de
suas ordens tenderá a erodir. As relações exteriores funcionam quase
da mesma maneira. Os EUA representam o Poderoso Chefão, quando dão
essas ordens. Os outros que cumpram, ou sofram as consequências. Era
isso que o bombardeio na Síria demonstraria.
Obama estava chegando a um ponto do qual, possivelmente, não seria
capaz de escapar. Não havia quase apoio internacional nenhum – sequer da
Inglaterra, algo incrível. A Casa Branca estava perdendo apoio
internamente e foi compelida a colocar o tema em votação no Congresso.
Parecia que seria derrotada, num terrível golpe para a presidência de
Obama e sua autoridade. Para a sorte do presidente, os russos apareceram
e o resgataram com a proposta de confiscar as armas químicas, que ele
prontamente aceitou. Foi uma saída para a humilhação de encarar uma
provável derrota.
Faço comentário adicional. Você perceberá que este é um ótimo momento
para impor a Convenção sobre Proibição de Armas Químicas no Oriente
Médio. A verdadeira convenção, não a versão que Obama apresentou em seu
discurso, e que os comentaristas repetiram. Ele disse o básico, mas
poderia ter feito melhor, assim como os comentaristas. A Convenção sobre
Proibição de Armas Químicas exige que sejam banidas a produção,
estocagem e uso delas – não apenas o uso. Por que omitir produção
e estocagem? Razão: Israel produz e estoca armas químicas.
Consequentemente, os EUA irão evitar que tal convenção seja imposta no
Oriente Médio. É um assunto importante: na realidade, as armas químicas
da Síria foram desenvolvidas para se contrapor às armas nucleares de
Israel, o que também não foi mencionado.
Você afirmou recentemente que o poder norte-americano no mundo está em declínio. Para citar sua frase em Velhas e Novas Ordens Mundiais, de 1994, isso limitará a capacidade dos EUA para “suprimir o desenvolvimento independente” de nações estrangeiras? A Doutrina Monroe está completamente extinta?
Bem, isso não é uma previsão, isso já aconteceu. E aconteceu nas
Américas, muito dramaticamente. O que a Doutrina Monroe dizia, de fato, é
que os EUA deviam dominar o continente. No último século isso de fato
foi verdade, mas está declinando – o que é muito significativo. A
América do Sul praticamente se libertou, na última década. Isso é um
evento de relevância histórica. A América do Sul simplesmente não segue
mais as ordens dos EUA. Não restou uma única base militar
norte-americana no continente. A América do Sul caminha por si só, nas
relações exteriores. Ocorreu uma conferência regional, cerca de dois
anos atrás, na Colômbia. Não se chegou a um consenso, nenhuma declaração
oficial foi feita. Mas nos assuntos cruciais, Canadá e EUA isolaram-se
totalmente. Os demais países americanos votaram num sentido e os dois
foram contra – por isso, não houve consenso. Os dois temas eram admitir
Cuba no sistema americano e caminhar na direção da descriminalização
das drogas. Todos os países eram a favor; EUA e Canadá, não.
O mesmo se dá em outros tópicos. Lembre-se de que, algumas semanas
atrás, vários países na Europa, incluindo França e Itália, negaram
permissão para sobrevoo do avião presidencial do boliviano Evo Morales.
Os países sul-americanos condenaram veementemente isso. A Organização
dos Estados Americanos, que costumava ser controlada pelos EUA, redigiu
uma condenação ácida, mas com um rodapé: os EUA e o Canadá recusaram-se
a subscrever. Estão agora cada vez mais isolados e, mais cedo ou mais
tarde, penso que os dois serão, simplesmente, excluídos do continente. É
uma brusca mudança em relação ao que ocorria há pouco tempo.
A América Latina é o atual centro da reforma capitalista. Esse movimento poderá ganhar força no Ocidente?
Você está certo. A América Latina foi quem seguiu com maior obediência
as políticas neoliberais instituídas pelos EUA, seus aliados e as
instituições financeiras internacionais. Quase todos os países que se
orientaram por aquelas regras, incluindo nações ocidentais, sofreram –
mas a América Latina padeceu particularmente. Seus países viveram
décadas perdidas, marcadas por inúmeras dificuldades.
Parte do levante da América Latina, particularmente nos últimos dez a
quinze anos, é uma reação a isso. Reverteram muitas daquelas medidas e
se moveram para outra direção. Em outra época, os EUA teriam deposto os
governos ou, de uma maneira ou de outra, interrompido seu movimento.
Agora, não podem fazer isso.
Recentemente, os EUA testemunharam o
surgimento de seus primeiros refugiados climáticos – os esquimós Yup’
ik – na costa sul na ponta do Alaska. Isso coloca em mórbida
perspectiva o impacto humano no meio ambiente. Qual é sua posição
acerca dos impostos sobre emissões carbono e quão popular pode ser tal
medida nos EUA ou em outro país?
Acho que é basicamente uma boa ideia. Medidas muito urgentes têm de ser
tomadas, para frear a contínua destruição do meio ambiente. Um imposto
sobre carbono é uma maneira de fazer isso. Se isso se tornasse uma
proposta séria nos EUA, haveria uma imensa propaganda contrária,
desencadeada pelas corporações – as empresas de energia e muitas
outras –, para tentar aterrorizar a população. Diriam que, em caso de
criação do tributo, todo tipo de coisa terrível aconteceria. Por
exemplo, “você não será mais capaz de aquecer sua casa”… Se isso terá
sucesso ou não, dependerá da capacidade de organização dos movimentos
populares.
Entrevista a Harrison Samphir, no Znet | Tradução: Vinícius Gomes | Imagem de HikingArtist No Outras Palavras
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