Dirk Adriaensens
Fonte: Truthout Tradução de F.Macias
Segundo dados da ONU, o Iraque tem o maior número de pessoas desaparecidas no mundo.
Nota do Editor: O que segue é uma adaptação da apresentação que Dirk Adriaensens deu na 6ª Conferência Internacional Contra os Desaparecimentos, realizada em Londres em 9 de Dezembro 1910.
Desaparecimentos forçados e pessoas desaparecidas
Um desaparecimento forçado (ou obrigado) é definido no Artº 2º da Convenção pela Protecção de Todas as Pessoas de Desaparecimento Forçado, adoptado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Dezembro de 2006, como a prisão, detenção, sequestro, ou qualquer outra forma de privação da liberdade por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos que agem com a autorização, apoio ou acordo do Estado, seguida por uma negação de conhecimento dessa privação de liberdade ou de encobrimento do destino ou paradeiro da pessoa desaparecida, o que coloca essa pessoa fora da protecção da lei. Muitas vezes, o desaparecimento forçado implica assassínio. Nesse caso a vítima é primeiro sequestrada, depois detida ilegalmente e muitas vezes torturada; então a vítima é morta e o corpo é escondido. Tipicamente, um assassínio é furtivo e o cadáver é tratado de forma a nunca mais ser encontrado, de forma a parecer que a pessoa tenha simplesmente sumido. Quem cometeu o crime pode negar sempre a acção, porque não há nenhum corpo para provar que a vítima, de facto morreu.
Mais de um milhão de pessoas perdidas no Iraque
Estimativas aproximadas indicam que mais de um milhão de pessoas desapareceram no Iraque. Segundo dados das Nações Unidas, o país tem o maior número de pessoas desaparecidas no mundo, resultante de diferentes períodos e que começou na guerra Irão e Iraque em 1980. Os desaparecimentos continuam a ocorrer de um princípio básico muito habitual. As partes mais importantes que estão agora envolvidas são o exército iraquiano, a polícia, diversas milícias, a al-Qaeda e o exército norte-americano. Paul-Henri Arni do Comité Internacional da Cruz Vermelha, disse que o Iraque, depois de três guerras – contra o Irão em 1980, a primeira guerra do Golfo em 1991 e a invasão dos EUA em 2003 – está a enfrentar o maior número de pessoas desaparecidas em todo o mundo.
As famosas prisões secretas do Iraque
A política ambígua das forças de ocupação norte americanas e o crescente fenómeno que são as prisões secretas norte-americanas no Iraque – que até as organizações internacionais não têm conseguido localizar – contribuiu para o vasto número de prisões secretas no Iraque (que um membro do actual parlamento iraquiano avaliou que excedam as 420) e deu origem a um enorme número de casos, relatados uns e outros não relatados, de desaparecimentos forçados.
Centenas de milhares de Iraquianos têm sido sujeitos a abusos e torturas em prisões e centros de detenção. Dezenas de milhares de Iraquianos desapareceram durante os piores dias desta sórdida guerra, entre 2005 e 2007. Alguns foram apanhados e empilhados em camiões por milícias fardadas; outros parecem ter desaparecido, simplesmente. O ministro dos direitos humanos do Iraque, Wijdan Mikhail, disse que o seu ministério recebeu só em 2005 e 2006 mais de 9,000 queixas de Iraquianos que disseram que um familiar tinha desaparecido. Grupos defensores dos direitos humanos apontam um número muito mais alto. O destino de muitos Iraquianos perdidos permanece desconhecido. Muitos estão desfalecidos em qualquer das famosas prisões secretas do Iraque. Em Setembro de 2010, a Amnistia Internacional divulgou um relatório, “Nova Ordem, Os Mesmos Abusos” que refere que vários detidos morreram sob custódia iraquiana devido a tortura e maus tratos por parte dos inquiridores iraquianos e guardas das prisões. O relatório denuncia que dezenas de milhares continuam presos sem acusação e que os guardas não informam o paradeiro dos desaparecidos aos seus familiares, o que para as famílias iraquianas que perderam os entes queridos, é um dos aspectos mais devastadores da ocupação dos EUA”.
Dezenas de milhares de Iraquianos procuram membros da família desaparecidos
Desde que a guerra no Iraque começou em 2003, dezenas de milhares de pessoas procuram membros da família que desapareceram. Segundo a Cruz Vermelha, entre 2006 e Junho de 2007, uns 20.000 corpos - menos de metade dos que foram identificados - foram depositados no Instituto de Medicina Legal (IML) de Bagdade. Corpos que não foram reclamados estão sepultados em vários cemitérios em toda a cidade.
Além disso, o IML de Bagdade informou que recebe uma média de 800 corpos por mês desde 2003 e não consegue identificar uma quantidade significativa destes.
Em 29 de Agosto de 2007 o Comité Internacional da Cruz Vermelha declarou:
Não saber o destino de membros da família desaparecidos, como resultado da guerra e da violência durante a ocupação é uma dura realidade para milhares de Iraquianos. Mães, pais, esposas, maridos, filhas, filhos e as suas famílias alargadas desesperam para saber o paradeiro ou o destino dos seus entes queridos. As pessoas perdidas podem ter sido capturadas, sequestradas, algumas talvez mortas e enterradas em sepulturas não identificadas, ou podem estar num hospital em estado crítico ou permanecer num local de detenção escondido. No meio das guerras, os membros duma família podem ser separados quando fogem das zonas de combate procurando um porto seguro. Às vezes eles nunca mais se reencontram. Cabe às autoridades esclarecerem qual o destino das pessoas perdidas.
2003-2010: Há meio milhão de Iraquianos desaparecidos?
O problema das pessoas desaparecidas e perdidas no Iraque é tratado com sigilo pelas forças ocupantes e as autoridades iraquianas. Os EUA e o governo iraquiano dão números subavaliados que não merecem nenhuma confiança.
Segundo o governo iraquiano, milhares de Iraquianos são dados como desaparecidos desde a invasão norte-americana há sete anos – embora ele saiba que os seus números sejam provavelmente apenas uma pequena parte do número real. Acredita-se que a maioria das pessoas que desapareceram, estejam mortas, mas mesmo aquelas cujos corpos foram encontrados não são sempre identificadas rapidamente. Em Maio de 2009, o Dr. Munjid Salah al-Deen, director da morgue central de Bagdade disse ao New York Times que a sua equipa estava a trabalhar na identificação de 28.000 corpos só de 2006 a 2008.
Num relatório de 20 de Março de 2008, o Crescente Vermelho Iraquiano (IRCS) disse que tinha registado quase 70.000 casos de pessoas desaparecidas no Iraque logo após o início da guerra. Mesmo o IRCS não está imune à anarquia que assola o Iraque: no dia 17 de Dezembro de 2006, 30 dos seus activistas foram raptados de uma das sedes de Bagdade, 13 dos quais ainda continuam desaparecidos.
Mais de 82% das pessoas deslocadas são mulheres e crianças com menos de 12 anos. Inquéritos feitos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) em 2009 declararam que 20% das pessoas deslocadas internamente (IDPs) e 5% dos refugiados retornados disseram que tinham filhos desaparecidos. Esta estatística pode ser atribuída à violência em geral, incluindo raptos, e possivelmente recrutamento de pessoas armadas, entre outras causas. O total da população deslocada internamente no Iraque a partir de Novembro de 2009 foi estimado em 2,76 milhões de pessoas, e em número de famílias, 467.517 famílias. Se 20% destas famílias disseram que tinham filhos desaparecidos, um simples cálculo mostra que mais de 93.500 crianças de famílias deslocadas internamente, estão desaparecidas. Além disso, 30% de IDP (deslocados internamente), mais 30% de retornados e 27% de refugiados mencionaram que membros da sua família tinham desaparecido devido a raptos, sequestros e detenções e que não sabiam o que tinha acontecido com eles. Uma estimativa aproximada deu por isso um número de pessoas desaparecidas entre a população de refugiados e deslocados após ”o choque e o medo”, de 260.000 pessoas, sendo a maioria desaparecimentos forçados. O relatório do ACNUR de 2009 dá nota que a maioria (51%) dos refugiados retornados fugiu devido à violência generalizada; outras razões são as ameaças de que eram alvo ou ataques (39%) e operações militares (3%).
Um em cada cinco Iraquianos é refugiado, ou IDP. Ao extrapolar os números divulgados pelo ACNUR para os restantes 80% da população iraquiana, o número total de pessoas desaparecidas, a partir ”do choque e a sensação de medo” pode ser mais do que meio milhão.
Sheik Muthana Harith Al-Dhari, chefe da influente Associação de Sábios Muçulmanos do Iraque (AMSI) mencionou numa entrevista à Al-Jazeera há poucos meses que desde 2003 estão desaparecidos quase 800.000 iraquianos. E disse que a AMSI documentou com todo o cuidado, pessoas desaparecidas desde 2003 e que ele podia provar esse número com nomes e factos.
Relatórios sobre os corpos não identificados
Dahr Jamail, um dos poucos jornalistas não incorporados relatou em 6 de Fevereiro de 2009 que na região de al-Adhamiya de Bagdade, o que costumava ser um parque era agora um cemitério com mais de 5.500 sepulturas. O primeiro corpo foi ali sepultado em 21 de Maio de 2006. “ A maior parte dos corpos aqui sepultados nunca foram noticiados pela comunicação social” disse Abu Ayad Nasir Walid, de 45 anos e que geria o cemitério, a Jamail. A maior parte dos mortos nunca foram registados por ninguém” disse um coveiro chamado Ali, “porque nós não verificávamos as certidões de óbito, e apenas tentávamos colocar os corpos na terra o mais depressa possível. Eu registava os nomes num livro, mas nunca ninguém do Estado nos veio perguntar quantas pessoas aqui estão sepultadas. Ninguém nem da comunicação social nem do ministério da
saúde parece estar interessado.”
Tais cemitérios – e há muitos – levantam questões sobre o número “oficial” dos desaparecimentos forçados e pessoas desaparecidas no Iraque.
Robert Fisk deu uma informação já em 17 de Agosto de 2005 – meio ano antes do bombardeamento da Mesquita de Samarra Golden – que se calculava que 1.000 corpos tinham dado entrada na morgue de Bagdade no mês de Julho: a maior parte das vítimas tinham sido executadas, esventradas, esfaqueadas, espancadas e torturadas até à morte. Segundo Fisk, o número de mortos era segredo. Houve uma subida de 85% se comparado com o número do mesmo mês antes da invasão dos norte-americanos. Os últimos números mostram uma tendência de subida: em 2004 e 2003, os números de mortos no mês de Julho foram 800 e 700, respectivamente. Por comparação, os números equivalentes em 1997, 1998 e 1999 foram todos inferiores a 200. “ Há tantos cadáveres a serem trazidos para a morgue que têm que ficar empilhados em cima uns dos outros. Os corpos não identificados têm que ser sepultadosem pouco tempo por causa da falta de espaço – mas o município está tão sobrecarregado pela quantidade de assassinatos que deixou de poder fornecer veículos e pessoal para levarem os restos mortais para os cemitérios.
O CICV informou em 17 de Abril de 2007 que em 2006, cerca de 100 civis eram mortos por dia e metade deles continuavam a não ser reclamados ou identificados. Milhares de corpos não identificados foram assim sepultados em cemitérios do Iraque designados para esse fim. Os corpos eram enterrados em cada três ou quatro dias só para darem lugar aos que entravam diariamente, tornando muitas vezes a identificação dos corpos impossível. Entretanto, dezenas de milhares de pessoas estavam sob custódia das autoridades iraquianas e das forças multinacionais no Iraque. Ao mesmo tempo que dezenas de milhares de famílias continuam sem notícias dos familiares que desapareceram durante as guerras passadas e recentes.
Há hoje um novo emprego em Bagdade. Por um curto salário, algumas pessoas fazem a limpeza de lixeiras e das margens dos rios para encontrarem o corpo dum ente querido desaparecido. Por quanto tempo poderão as pessoas viver com tanta violência sem ficarem marcadas para sempre?
Relatórios fortuitos de corpos não identificados fora de Bagdade
No dia 17 de Julho de 2007, a BBC citou o chefe do departamento forense do hospital de Kurt sobre como se tornou constante o fluxo de cadáveres. Até agora nós recebemos 500 corpos. A maioria dos quais baleados ou torturados. Estão em avançado estado de decomposição, pelo que não se pode estar junto deles por muito tempo.” Demoraram pelo menos três dias a flutuar no rio desde o local donde foram atirados. A maioria não foi identificada.
No dia 8 de Fevereiro de 2008, o Vozes do Iraque informou que o número de corpos não identificados que tinha sido enterrado só em Karbala desde Junho de 2006 chegou a 2043.
O número de corpos não identificados que foram enterrados desde Dezembro de 2006 a Fevereiro de 2007 em valas comuns na província de Wassit, a 180 km do sudoeste de Bagdade chegou a 177.
Um relatório do IPS em Baquba de 17 de Julho de 2007 citava Nima Jima’a, um funcionário da morgue:“A morgue recebe uma média de quatro ou cinco corpos por dia. Muitos mais são deitados aos rios e deixados nos campos – ou algumas vezes também são enterrados pelos próprios assassinos por outras razões. O número que nós aqui registamos é apenas uma parte dos que foram mortos”. O número dos corpos não identificados não é mencionado. As famílias são muitas vezes incapazes de identificar e recolher os corpos. É até extremamente perigoso andar pela cidade. Além disso, a maior parte dos corpos não são de todo trazidos para a morgue para serem identificados e contabilizados.
Mais de 280 pessoas da cidade de Faluja foram dadas como desaparecidas em 11 de Novembro de 2005, num relatório do Observatório Iraquiano pelos Direitos Humanos (MHRI). Desconhece-se ainda o seu destino. Estas pessoas estão oficialmente registadas com nomes e fotos de autoridades locais da cidade. Estima-se ainda que o total de pessoas desaparecidas em Faluja, seja superior a 500.
Cada cidade e cada aldeia do Iraque tem uma história parecida para contar acerca de desaparecimentos forçados e de pessoas desaparecidas. Não há relatórios disponíveis de Mossul. Bassorá, Ramadi, Al Qaim, Haditha, e muitas outras cidades e aldeias onde ocorreram combates e limpeza étnica.
Conclusões
1ª Conclusão: Só os simples cálculos e projecções que eu fiz, com base em relatórios oficiais e fontes fidedignas, são mais credíveis do que os números ardilosos dados pelos EUA e o governo fantoche iraquiano.É de salientar que os números representam pessoas e que a recusa em revelar os números reais de pessoas desaparecidas ou perdidas é um crime contra a humanidade. Estes números representam uma incompreensível falta de respeito pelos seres humanos que foram votados ao ostracismo porque os norte-americanos e os seus fantoches iraquianos assim quiseram. É de chamar também a atenção para que as pessoas não identificadas, perdidas, desaparecidas ou o que quiserem chamar-lhes, são sempre o pai ou a mãe de alguém, sempre o filho de alguém. Cada um deles tinha um rosto antes de ser desfeito, desfigurado, agredido com ácido, esburacado, queimado, espancado, baleado e lançado para a rua e enterrado anonimamente com outros corpos não identificados. Cada um deles teve um dia um rosto que podia ver, ouvir, rir e chorar, falar e sentir – antes de ser aniquilado. As suas mortes representam nada menos do que a vida e a dignidade humanas sacrificadas no altar do lucro e da ganância dos poderes corporativos.
2ª Conclusão: Raramente um exército invasor e ocupante resolveu os problemas de um país. A ocupação é a forma extrema de ditadura. Ocupação é pilhagem: roubarem recursos em vez de pagarem por eles. Ocupação é assassinarem pessoas em vez de salvarem vidas humanas. A ocupação dá aos psicopatas a oportunidade e meios para matarem impunemente. Os exemplos da Jugoslávia durante a Segunda Grande Guerra, assim como as guerras sujas no Vietname e na América Central e América Latina deviam ser alertas. Só a total retirada de todas as tropas estrangeiras do solo Iraquiano pode garantir o início de um verdadeiro processo democrático. Só a retirada total pode abrir caminho para o início de uma investigação justa e completa sobre os desaparecimentos forçados e as pessoas desaparecidas no Iraque. Só a retirada total pode pôr fim ao caos que a invasão dos EUA trouxe.
Perguntas
Irá finalmente a Comissão dos Direitos Humanos acordar e nomear um relator especial para a situação dos direitos humanos no Iraque para investigarminuciosamente uma das piores crises no planeta?
Haverá alguma vez revelações da Wikileaks sobre a “guerra suja” no Iraque? Iremos nós saber alguma vez os verdadeiros números das pessoas desaparecidas no Iraque que foram torturadas e depois mortas pelos famosos esquadrões da morte e milícias organizadas, financiadas, equipadas, treinadas e desenvolvidas pelos proclamadores dos “Direitos Humanos” – os Estados Unidos da América e a Inglaterra?
Irão as Nações Unidas alguma vez apelar à retirada total das tropas estrangeiras do solo Iraquiano e restituir a verdadeira soberania ao povo do Iraque, para ser representado pelo movimento anti-ocupação iraquiano? Irá a ONU criar finalmente uma comissão para o pagamento de indemnizações pelas forças invasoras e ocupantes, pelos prejuízos causados durante a invasão e a ocupação ilegais do Iraque?
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