Prof. Dr. Marco Antonio Leonel Caetano
Pinheirinho: Crime contra a humanidade
Muito bem explicado e didaticamente analisado por Enrique Lewandowski, existe um órgão da ONU conhecido como Tribunal Penal Internacional (TPI). Quem desejar consultar o estatuto basta acessar o link em pdf aqui. O Brasil assinou o Tratado de Roma, que criou o TPI em 2000 e o ratificou em 2002, após aprovação do Congresso Nacional. O Brasil é o país de número 69 a fazer parte do tratado e a se submeter às leis internacionais. Logo, gostem ou não, regras internacionais não podem ser violadas sob qualquer alegação, mesmo no que se refere à soberania nacional. Os EUA não fazem parte desse tratado exatamente por isso.
O TPI definine diversos tipos de crimes passíveis de intervenção e acusação, tais como crime de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade. Em seu artigo sobre crimes contra humanidade, o tribunal define:
Crime contra humanidade é qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque. E incluem:
(1)homicídio; (2)extermínio; (3) escravidão; (4) deportação ou transferência forçada de populações; (5) encarceramento ou privação grave da liberdade física em violação a normas fundamentais de direito internacional; (6) tortura; (7) estupro; (8) escravidão sexual (...); (9) perseguição de um grupo com identidade própria, por motivos políticos, raciais, étnicos, culturais ou religiosos; (10) desaparecimento de pessoas; (11) apartheid e (12) práticas que causem grande sofrimento físico ou mental das pessoas.
Dito isso, cabe ao leitor ler novamente o ítem (4) "transferência forçada de populações". Na semana que passou, muito se comentou e se falou na mídia sobre a reintegração de posse de uma área conhecida como Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, estado de São Paulo. Vamos partir do primeiro ponto, ao dizer que essa não é uma reintegração de posse comum, onde normalmente barracas de sacos plásticos são erguidas e "leões de chácara" cuidam da área com facões e armas na mão em uma semana. Essa é uma área invadida há 8 anos, quando uma empresa faliu por conta de peripécias financeiras de seu dono, o conhecido senhor Libanês-Brasileiro Naji Nahas.
Nesses 8 anos, a invasão da área que na época foi de 50 famílias passou para mais de 500 famílias, ou quase três mil pessoas, com crianças, gente idosa e doentes. Sim , também se instalaram aproveitadores, bandidos e traficantes que criaram sua cracolandia. Mas tudo isso debaixo dos olhos do poder municipal local, que absolutamente não fez nada, apenas assistiu as instalações aumentando ano após ano. Tanto não fez nada nesses anos, que nem sabia quantas pessoas realmente de fato moravam lá. A prefeitura se disse surpresa com o número de quase 3.000 pessoas, quando se imaginava mais de 6.000. Um "pequeno" erro de estimativa. O prefeito alega que a reintegração de posse foi pedida logo em seguida, mas que o processo se arrastou até 2006. Lembremos que na época o governador era do mesmo partido, e o prefeito atual também, pois foi eleito em 2004. Logo, pela primeira vez, personagens e eventos são os mesmos, apenas o tempo fluiu e rodou. Então, por que tamanha rapidez em reintegrar e expulsar as pessoas em 5 dias, numa ação que levou 8 anos?
E mesmo assim, se levou 8 anos com o mesmo prefeito, por que a prefeitura não fez um grande projeto para o sistema "minha casa minha vida" e incluiu essas pessoas, já alertando o governo federal que seriam despejadas? Caso fosse negado, poderia publicar matéria paga alertando o tal descaso, essa é a função do prefeito como adminstrador. A prefeitura deixou famílias inteiras serem constituídas no local, com velhos e crianças, e infelizmente, bandidos. Pessoas pobres e trabalhadoras estavam misturadas aos traficantes, e infelizmente foram tratadas iguais. A polícia possui uma área conhecida como "inteligência", paga pelo dinheiro público para investigar, se infiltrar, reconhecer e capturar traficantes. Em 8 anos isso não seria possível? Separar os trabalhadores, crianças e idosos dos traficantes seria tão difícil?
Está bem, vamos realmente acreditar que o Estado e o Município tinham que tirar essas pessoas. E por que não se fez um estudo minucioso sobre como o processo de reinstalação se daria? A resposta da prefeitura é que primeiro iam desalojar e oferecer passagens para quem quisesse voltar para sua terra natal e depois pensariam na instalação. E por que, antes de retirá-las e causar trauma nas crianças, não ofereceram essas passagens? Por que as assistentes sociais não entraram uma semana antes e ofereceram as passagens?
A primeira noite após a expulsão, as famílias tinham uma opção de instalação, é verdade. A instalação da prefeitura era uma tenda branca, sem paredes, com colchão em terra batida. A opção era essa, dormir ao vento frio da madrugada. Após a mídia aparecer e cobrir o caso, outras opções foram criadas, como escolas e ginásios.
E os deliquentes e bandidos? Por que uma semana antes a polícia não entrou e prendeu todos os traficantes. A polícia conhece quem são, sabe onde moram e sabiam que estavam na localidade há 8 anos. E mesmo se não soubesse, um mês de infiltração à paisana seria mais que suficiente.
Pinheirinho - São José dos Campos
Comunidade do Pinheirinho em meio ao tráfico de drogas
O governador e prefeito usaram de um jargão muito "chulo", com o perdão da palavra, para dizer que ordem da Justiça é ordem cumprida. É verdade, mas a Justiça aprova um determinado procedimento, mas quem dá a ordem ao comandante é o governador. Ao governador, e somente a ele, é dado o direito e dever de encaminhar ordens ao comandante da polícia. A Justiça não tem poder para dizer que deve entrar hoje ou amanhã. A Justiça diz que deve ser reintegrada, mas a decisão da data e hora é responsabilidade do governador. Logo, como já ocorreu em outras ocasiões, o governador poderia ter esperado para um plano mais digno e humano, de separar os bandidos das famílias no local.
No entanto, a história não termina nesse ponto. Seria realmente a área invadida do empresário Naji Nahas? A história do local é que uma família de alemães foi brutalmente assassinada nos anos 1960. Nunca se encontrou os assassinos e a família não tinha descendentes na terra. Logo o Estado se empossou. Se isso é verdade, como foram essas terras ir para um empresário? Talvez seja um processo legal, mas então que se mostrem as provas e as circunstâncias da transferência.
Segundo uma professora historiadora de São José dos Campos, Valéria Zanetti de Almeida (leia aqui) , toda a documentação das terras dessa época sumiram, e foram transferidas para Jundiaí. Por que? Jundiaí não é nem perto de São José dos Campos. Teria o Estado feito um leilão? Se isso ocorreu, os documentos da licitação ou compra devem ser públicas. E se esse é um ato público deve estar disponível para todos saberem e reconstituirem a história. Existe um "buraco" e nem a prefeitura, nem o Estado e nem Naji Nahas apresentaram documentações comprovando quem vendeu para quem, ou quem comprou de quem. Estão todos contando histórias diferentes, sem documentos oficiais. Seria um contrato de gaveta?
Pelo menos a pressa em desalojar as famílias parece ter uma resposta. Há anos o prefeito vem modificando e alterando o plano diretor de vários bairros de São José dos Campos. Mesmo contrário ao interesse da população, diversos bairros onde não eram permitidos a construção de edifícios passaram a ser autorizados e regularizados. A exploração imobiliária disparou na cidade.
Para a copa do mundo de futebol em 2014, talvez São José acolha uma seleção para jogos em São Paulo. O atrativo financeiro já se tornou grande a ponto de empreiteiras de São Paulo entrarem em São José e construirem condomínos de alto luxo. Com a instalação da plataforma do trem-bala, morar em São José e trabalhar em São Paulo é o sonho de consumo de paulistanos empresários. Seria esse o motivo de tamanha pressa do governo do Estado e da Prefeitura? Só o tempo dirá, bem mais rápido do que se imagina.
Então, muito mais perguntas tem nesse episódio do que respostas claras e documentadas. Caso seja provada que a área não poderia ter sido adquirida por Naji Nahas, significa que a reintegração de posse foi ilegal. Quem deveria pedir seria o Estado e não o empresário. E caso fosse do Estado, bastaria construir ou dar condições para que o local realmente virasse um bairro de verdade e não desalojado.
Muitos dizem que o estado de direito deve ser cumprido. De quem é o primeiro direito? A constituição garante que se alguém se instalar em local por mais de 5 anos, tem direito a documento de posse definitiva. O erro de tudo isso é que ambos os lados escondem fatos e personagens. As famílias pobres foram usadas por espertalhões de um movimento onde já se provou que diversos participantes possuem propriedades e até dinheiro, e usam as pobres famílias como massa de manobra política. Por isso, entre não ter nada oficial que deveria ser dado pelo Estado e ter algo oficioso garantido pelo experto de um movimento, as familias escolhem quem dê casa para seus filhos. Quem você escolheria? Ficar na rua com filhos, ou seguir o movimento?
Muitos vão responder que essas pessoas não deveriam ter saído de onde moravam. Não podemos esquecer que o Estado Federal também esqueceu dessas famílias em sua localidade. Entre passar fome e encontrar chance de trabalho em cidades mais ricas, qual você escolheria? E se ainda assim, insistirem nesse jargão de que essas pessoas deveriam ficar onde moravam, então vamos rasgar a constituição, pois o primeiro artigo garante que todos tem liberdade de ir e vir, isso lhes é garantido.
Ainda assim, mesmo sem as respostas devidas, se supormos que tudo isso é legal perante a Justiça e códigos nacionais, o crime contra a humanidade foi cometido. Deportação forçada de população é crime contra a humanidade e o Brasil cometeu essa infração. O especialista da ONU Claudio Acioly também vê isso (leia aqui). E se o governo federal for conivente, todos devemos sermos punidos com sansões pela ONU. Como signatário do tratado de Roma, esse episódio foi um erro. A representante no Brasil na ONU também acha isso, e deseja esclarecimentos do Estado Brasileiro (leia aqui). Ela também comenta esse fato em seu blog pessoal.
Não se justifica o governador e prefeito assinarem acordo para construção de casas, ou auxílio moradia depois do fato ocorrido. A deportação foi realizada de forma forçada, e ambos cometeram crime contra a humanidade, segundo o tratado que assinamos. Nós todos assinamos, visto que o congresso nacional aprovou. Logo, o silêncio torna todos nós tão culpados quanto a invasão do EUA no Iraque ou qualquer outro crime contra a humanidade. Silêncio tão absurdo como do atual ministro da Justiça, em que se pronunciou dizendo "Questão de Pinheirinho é do governo de São Paulo" (leia aqui). Então, São Paulo deve pedir sua independência e se desligar do Brasil. Não precisa do governo federal para dizer o que é certo ou errado! Ora ministro, algumas vezes é bom não ser ministro, ou então se calar.
O silêncio da autoridade federal nesse episódio, é o reconhecimento que está aprovando um crime do qual o país se diz contra. E se assim for, teremos o direito de reinvindicar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU? Temos moral para isso?
(ATUALIZAÇÃO em 29/01/2012 - domingo)
Hoje, a folha de São Paulo entrevistou o provável vendedor da área do Pinheirinho para o empresário Naji Nahas. O nome do ex-proprietário é Benedito Bento Filho (75) e diz que Pinheirinho "era um lindo jardim" (leia a reportagem "Pinheirinho era um jardim"). Ao lado do Pinheirinho, o "comendador bentinho" como é conhecido, tem outro grande terreno e diz que agora espera a desapropriação de seu terreno pelo governo do Estado para construção de casas. O valor ele não revela. O título de comendador, segundo a reportagem, foi lhe dado pela Ordem de Cristo, segundo wikipedia criada pelo papa João XXII em 1319 com característica religiosa e militar. São os herdeiros diretos da fama conhecida dos "cavaleiros templários".
Além desse empreendimento, o "comendador" está construindo o Centro de Treinamento para a copa de 2014 junto com um resort para abrigar uma seleção na copa de 2014, conforme salientamos no texto. Ainda segundo a reportagem, "comendador bentinho" está sempre no epicentro dos grandes negócios imobiliários da cidade. (A íntegra dessa reportagem está no site da folha, mas apenas para assinantes).
O próprio "comendador bentinho" afirma que em 1978, a idéia era transformar a área num grande condomínio de nome "Parreiras de São José, que nunca saiu do papel.
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