Faz sentido que o desacato seja mais grave que o abuso da autoridade ao cidadão?
Em 1999, escrevi para a Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (edição nº51/52), o artigo “Projeções constitucionais para a Reforma Penal”, tratando de indicativos para a reforma da Parte Especial, que então parecia certa.
Passaram-se mais de dez anos, a reforma naufragou e agora existe outra comissão, desta vez para a reforma integral do Código Penal que também se mostra iminente.
Entre as indicações que fiz à época, uma delas se referia diretamente à necessidade de reverter o quadro de hipervalorização da autoridade sobre o indivíduo, típico de um Estado policial, mas não de um democrático.
Entre outras coisas, essa supervalorização fazia com que o desacato fosse mais severamente (e também mais frequentemente) punido que o abuso de autoridade contra o cidadão; na mesma toada, é a supervalorização da autoridade que impõe a permanência do foro privilegiado.
Não se sabe se a atual reforma penal vingará -a pressa em conduzi-la está diminuindo a capacidade de discussão do modelo pretendido. Mas neste particular, ao que se indicou, a reforma acerta, propondo de uma vez a revogação do crime de desacato.
Para quem se interessar, o artigo pode ser encontrado no próprio site da Revista da PGE-SP
Projeções constitucionais para a Reforma Penal (trecho)
(...)
De uma maneira resumida, buscamos apontar oito indicativos ao legislador ordinário, que se deduzem do espírito deste Estado Democrático, que, a nosso critério, deveriam orientar a reformulação da Parte Especial
a-) abandono do rigorismo penal
b-) prevalência dos direitos humanos
c-) transformação da tutela da segurança nacional na proteção da ordem democrática
d-) reversão do quadro de hipervalorização da autoridade sobre o indivíduo
e-) desmilitarização da legislação penal
f-) eliminação dos conceitos que revelam opções morais
g-) transformação dos crimes contra a organização do trabalho na proteção aos direitos e segurança do trabalhador
h-) inversão da excessiva proteção ao patrimônio privado, em detrimento dos crimes contra a pessoa e contra a Administração Pública
(...)
d-) Reversão do quadro de hipervalorização da autoridade sobre o indivíduo.
Corolário do autoritarismo é a prevalência da noção de autoridade sobre as liberdades individuais – que não se exercem senão sob a tutela e permissão das autoridades. Como resultado, dá-se demasiada proteção à figura da autoridade e a submissão à ordem, desprotegendo o indivíduo, quer limitando seu campo de ação, quer desprezando sua opressão pela própria autoridade.
A legislação infraconstitucional nos revela um absoluto paradoxo.
A desobediência à ordem de funcionário público, ou o desacato à pessoa do funcionário, é punido de forma mais contundente do que o abuso da autoridade para com o indivíduo, que envolve graves infrações à liberdade de locomoção, inviolabilidade do domicílio, liberdade de consciência, de associação, além das concretas condutas relacionadas ao excesso da atividade repressiva. A consequência dessa inversão de valores é um retrato fiel da omissão dos Poderes quanto à propulsão da violência policial.
Assim é que, embora tenha sido comum o julgamento de atos de particulares por crimes de desacato, quase sempre contra policiais, raras foram as condenações desses nos Tribunais por abuso de autoridade. A exigüidade da pena cominada ao abuso muitas vezes contribuiu para a extinção da punibilidade pela prescrição. A situação foi apenas atenuada pela recente Lei da Tortura.
A projeção constitucional indica, de um lado, que deva ser excluída ao máximo a punibilidade da mera desobediência – infração de caráter administrativo que não reclama, em regra, sanção penal. O Estado deve ter meios suficientes para executar suas próprias decisões, tornando desnecessária, e por isso mesmo, um mero exercício do poder de punir, a sanção ao descumprimento e resistência (desde que não violenta).
Por outro lado, deve ser criminalizada à altura a ação violenta e excessiva dos representantes do Estado em face do indivíduo. A limitação do poder, de quem pode exercê-lo, à esfera estritamente legal e o impedimento da usurpação da noção de autoridade para concretizar interesses ou anseios pessoais, é a essência da democracia republicana. É preciso, portanto, incorporar todas as formas de abuso de autoridade no Código Penal, com penas compatíveis com a nova criminalização da tortura.
Coerente com essa perspectiva, o constituinte deve privilegiar no corpo da Carta a isonomia que consagra no artigo 5º como parâmetro dos direitos fundamentais. O resíduo de verticalização na Constituição Federal pode ser visto na imensa teia de foros privilegiados para julgamento de autoridades em crimes comuns, bem ainda na exagerada imunidade parlamentar formal, que praticamente impede a punição de integrantes do poder político que sejam ou venham a ser eleitos para o Parlamento. A impunidade seletiva não é só um mau exemplo, mas um real empecilho ao esclarecimento da criminalidade organizada, que invariavelmente tem braços que se escondem nas entranhas do poder político – como o noticiário recente tem nos demonstrado.
A valorização da ordem democrática e o respeito às suas instituições podem ser também equacionados em uma repulsa mais significativa aos fazedores de justiça com as próprias mãos. O crime de exercício arbitrário das próprias razões comporta, hoje, proporcionalmente, uma punição assaz branda para o prestígio que se empresta à resolução mediatizada dos conflitos. Na democracia, impõe-se não só que os fins, mas os meios sejam legítimos. Esse é o sentido, aliás, que inviabiliza a aceitação no processo de provas ilícitas (art. 5º, LVI).
Marcelo Semer
No Sem juízo
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