LUIZ FLÁVIO GOMES
A decisão do Supremo vai ser revisada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com eventual chance de prescrição de todos os crimes, em razão de, pelo menos, dois vícios procedimentais seríssimos que a poderão invalidar fulminantemente
Muitos brasileiros estão acompanhando e aguardando o final do julgamento
do mensalão. Alguns com grande expectativa enquanto outros, como é o
caso dos réus e advogados, com enorme ansiedade. Apesar da relevância
ética, moral, cultural e política, essa decisão do STF – sem precedentes
- vai ser revisada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com
eventual chance de prescrição de todos os crimes, em razão de, pelo
menos, dois vícios procedimentais seríssimos que a poderão invalidar
fulminantemente.
O julgamento do STF, ao ratificar com veemência vários valores
republicanos de primeira linhagem - independência judicial, reprovação
da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos,
retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas
eleitorais etc. -, já conta com valor histórico suficiente para se dizer
insuperável. Do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do
Estado de Direito, no entanto, o provincianismo e o autoritarismo do
direito latino-americano, incluindo, especialmente, o do Brasil,
apresentam-se como deploráveis.
No caso Las Palmeras a Corte Interamericana mandou processar novamente
um determinado réu (na Colômbia) porque o juiz do processo era o mesmo
que o tinha investigado anteriormente. Uma mesma pessoa não pode ocupar
esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no mesmo
processo. O Regimento Interno do STF, no entanto (art. 230),
distanciando-se do padrão civilizatório já conquistado pela
jurisprudência internacional, determina exatamente isso. Joaquim
Barbosa, no caso mensalão, presidiu a fase investigativa e, agora,
embora psicologicamente comprometido com aquela etapa, está participando
do julgamento. Aqui reside o primeiro vício procedimental que poderá
dar ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela Corte
Interamericana.
Há, entretanto, um outro sério vício procedimental: é o que diz respeito
ao chamado duplo grau de jurisdição, ou seja, todo réu condenado no
âmbito criminal tem direito, por força da Convenção Americana de
Direitos Humanos (art. 8, 2, h), de ser julgado em relação aos fatos e
às provas duas vezes. O entendimento era de que, quem é julgado
diretamente pela máxima Corte do País, em razão do foro privilegiado,
não teria esse direito. O ex-ministro Márcio Thomaz Bastos levantou a
controvérsia e pediu o desmembramento do processo logo no princípio da
primeira sessão, tendo o STF refutado seu pedido por 9 votos a 2.
O ministro Celso de Mello, honrando-nos com a citação de um trecho do
nosso livro, atualizado em meados de 2009, sublinhou que a
jurisprudência da Corte Interamericana excepciona o direito ao duplo
grau no caso de competência originária da corte máxima. Com base nesse
entendimento, eu mesmo cheguei a afirmar que a chance de sucesso da
defesa, neste ponto, junto ao sistema interamericano, era praticamente
nula.
Hoje, depois da leitura de um artigo (de Ramon dos Santos) e de estudar
atentamente o caso Barreto Leiva contra Venezuela, julgado bem no final
de 2009 e publicado em 2010, minha convicção é totalmente oposta. Estou
seguro de que o julgamento do mensalão, caso não seja anulado em razão
do primeiro vício acima apontado (violação da garantia da
imparcialidade), vai ser revisado para se conferir o duplo grau de
jurisdição para todos os réus, incluindo-se os que gozam de foro
especial por prerrogativa de função.
No Tribunal Europeu de Direitos Humanos é tranquilo o entendimento de
que o julgamento pela Corte Máxima do país não conta com duplo grau de
jurisdição. Mas ocorre que o Brasil, desde 1998, está sujeito à
jurisprudência da Corte Interamericana, que sedimentou posicionamento
contrário (no final de 2009). Não se fez, ademais, nenhuma reserva em
relação a esse ponto. Logo, nosso País tem o dever de cumprir o que está
estatuído no art. 8, 2, h, da Convenção Americana (Pacta sunt
servanda).
A Corte Interamericana (no caso Barreto Leiva) declarou que a Venezuela
violou o seu direito reconhecido no citado dispositivo internacional,
"posto que a condenação proveio de um tribunal que conheceu o caso em
única instância e o sentenciado não dispôs, em consequência [da
conexão], da possibilidade de impugnar a sentença condenatória." A
coincidência desse caso com a situação de 35 réus do mensalão é total,
visto que todos eles perderam o duplo grau de jurisdição em razão da
conexão.
Mas melhor que interpretar é reproduzir o que disse a Corte: "Cabe
observar, por outro lado, que o senhor Barreto Leiva poderia ter
impugnado a sentença condenatória emitida pelo julgador que tinha
conhecido de sua causa se não houvesse operado a conexão que levou a
acusação de várias pessoas no mesmo tribunal. Neste caso a aplicação da
regra de conexão traz consigo a inadmissível consequência de privar o
sentenciado do recurso a que alude o artigo 8.2.h da Convenção."
A decisão da Corte foi mais longe: inclusive os réus com foro especial
contam com o direito ao duplo grau; por isso é que mandou a Venezuela
adequar seu direito interno à jurisprudência internacional: "Sem
prejuízo do anterior e tendo em conta as violações declaradas na
presente sentença, o Tribunal entende oportuno ordenar ao Estado que,
dentro de um prazo razoável, proceda a adequação de seu ordenamento
jurídico interno, de tal forma que garanta o direito a recorrer das
sentenças condenatórias, conforme artigo 8.2.h da Convenção, a toda
pessoa julgada por um ilícito penal, inclusive aquelas que gozem de foro
especial."
Há um outro argumento forte favorável à tese do duplo grau de
jurisdição: o caso mensalão conta, no total, com 118 réus, sendo que 35
estão sendo julgados pelo STF e outros 80 respondem a processos em
várias comarcas e juízos do país (O Globo de 15.09.12). Todos esses 80
réus contarão com o direito ao duplo grau de jurisdição, que foi negado
pelo STF para outros réus. Situações idênticas tratadas de forma
absolutamente desigual.
Indaga-se: o que a Corte garante aos réus condenados sem o devido
respeito ao direito ao duplo grau de jurisdição, tal como no caso
mensalão? A possibilidade de serem julgados novamente, em respeito à
regra contida na Convenção Americana, fazendo-se as devidas adequações e
acomodações no direito interno. Com isso se desfaz a coisa julgada e
pode eventualmente ocorrer a prescrição.
Diante dos precedentes que acabam de ser citados parece muito evidente
que os advogados poderão tentar, junto à Comissão Interamericana, a
obtenção de uma inusitada medida cautelar para suspensão da execução
imediata das penas privativas de liberdade, até que seja respeitado o
direito ao duplo grau. Se isso inovadoramente viesse a ocorrer – não
temos notícia de nenhum precedente nesse sentido -, eles aguardariam o
duplo grau em liberdade. Conclusão: por vícios procedimentais
decorrentes da baixíssima adequação da eventualmente autoritária
jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais
histórica de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho
ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.
Luiz Flávio Gomes, 54, é doutor em direito penal, fundou a
rede de ensino LFG, foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983
a 1998) e advogado (1999 a 2001). Seu site: www.professorlfg.com.br
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