Com tudo que tem de retrógrada e atual, essa questão central remete a
um contexto muito contemporâneo: a sociedade brasileira, assim como
quase todos os países latino-americanos, está dividida em dois grupos
antagônicos, duas visões de mundo divergentes que se tornam cada vez
mais ortodoxas conforme se agrava o radicalismo presente na mídia e nas
redes sociais digitais.
Nas edições de sexta-feira (15/3), os jornais reproduzem declaração do
arquiteto argentino Adolfo Pérez Esquivel – que em 1980 recebeu o Prêmio
Nobel da Paz por sua campanha pacifista contra a violência política –,
no qual afirma não considerar que o cardeal Bergoglio tenha sido
cúmplice da ditadura, mas que lhe faltou coragem para acompanhar a luta
pelos direitos humanos nos momentos mais difíceis.
Como os jornais recortam sua manifestação, melhor ler a íntegra do texto original, em seu site autobiográfico (ver www.adolfoperezesquivel.org).
Interessante destacar como Esquivel declara desejar que o novo papa “dê
alento às transformações sociais que vêm ocorrendo na América Latina e
em outras partes do mundo, nas mãos de governos populares que tratam de
superar a noite do neoliberalismo”.
No contexto de extremismos em que tudo é enquadrado por estes dias,
esse posicionamento do prêmio Nobel o colocaria automaticamente em um
dos lados da conflagrada disputa por corações e mentes que se pode
acompanhar nas redes sociais e na imprensa. No entanto, sua discordância
quanto às acusações levantadas contra Bergoglio produz certamente
algum desconforto entre seus simpatizantes e admiradores, ainda mais se
considerarmos que a denúncia de que o papa foi colaborador e até mesmo
cúmplice de crimes das forças de repressão na Argentina partiu de
familiares de vítimas da ditadura e foi amplificado pelo livro escrito
por Horacio Verbitsky, jornalista de grande reputação que, no entanto,
não escapa do contexto de confronto em que vivemos (ver “Um ersatz”).
Raciocínio em bloco
É muito mais confortável empacotar todas as informações em duas caixas
separadas, uma para os correligionários e outra para os que pensam
diferente. Esse comportamento foi alimentado nos últimos anos pela
imprensa na América Latina, onde uma sucessão de governos contrários ao
chamado “consenso de Washington”, que dominou o cenário político nos
anos 1990, vem produzindo mudanças econômicas e sociais importantes
desde o início deste século.
A declaração de um personagem claramente engajado como Esquivel exige
uma reflexão mais elaborada, mas a imprensa tradicional não parece capaz
de enxergar outras tonalidades que não o preto e o branco. Seria longo
e repetitivo descrever aqui onde e como se manifesta essa dicotomia
que transforma a complexidade da vida contemporânea em um confronto de
radicais. Também é ocioso ficar repetindo as demonstrações de que a
imprensa tradicional se comporta como um monolito, caracterizada pelo
que o antigo Pasquim chamava de “raciocínio em bloco”.
Há pelo menos dez anos se observa o fenômeno do fechamento da imprensa
em si mesma, alienando-se do contexto mais amplo e diversificado da
sociedade e da cultura, num comportamento que, curiosamente, repete o
modelo usado pela chamada imprensa alternativa nos tempos da ditadura
brasileira (ver “Imprensa alternativa, procura-se”, 6/1/2004).
Se o maniqueísmo da imprensa alternativa, também chamada “nanica”, se
justificava de alguma forma como resistência à violência política e à
censura, a visão monolítica que a imprensa tradicional impõe a seu
público pode ser vista como sinal de discordância com os caminhos a que a
democracia levou o Brasil e outros países do continente – e estimula
ativistas saudosos da ditadura.
Nas redes digitais, embora proliferem grupos homogêneos e radicais, há
mais reflexão nas divergências e, eventualmente, algum humor entre
amigos que têm pontos de vista diferentes. Na imprensa tradicional,
qualquer que seja a pauta – o novo papa, a morte de Hugo Chávez ou os
indicadores de inflação – o que se pode esperar é mais do mesmo: um
mundo sem sutilezas.
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