Soldado brasileiro em missão humanitária no Haiti. |
Em artigo no jornal New York Times, o presidente Lula faz um balanço das
conquistas e obstáculos nos últimos dez anos de ajuda ao Haiti, e chama
às falas os países ricos para cumprirem suas promessas.
Eis o artigo:
Não vamos nos esquecer do Haiti
Em 2014, completam-se dez anos de presença da Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti e quatro anos do terremoto que devastou e agravou a frágil situação deste que é o país mais pobre da América Latina.
Grandes crises institucionais e catástrofes naturais levam países às manchetes em todo o mundo e despertam durante algum tempo a atenção da imprensa internacional e dos governantes. Mas depois, sobretudo se o país vitimado é pobre e periférico, sem peso no jogo geopolítico global, os holofotes se apagam, as notícias se tornam cada vez mais raras, o clamor de solidariedade arrefece e boa parte das promessas de apoio são esquecidas. Até porque a reconstrução das áreas atingidas e a solução real dos problemas de suas populações não acontece, obviamente, na mesma velocidade com que as notícias são difundidas na internet e na televisão. Exige uma atuação paciente e continuada, com inevitáveis altos e baixos, ao longo de anos, que vá muito além do socorro humanitário. E isso supõe um forte compromisso ético e político dos países envolvidos.
Vale a pena lembrar que, no primeiro semestre de 2004, o Haiti sofreu uma gravíssima crise política que resultou na queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide e na disputa pelo poder entre diversos grupos armados, sacrificando brutalmente a população civil. A violência e os atentados aos direitos humanos se generalizaram. Gangues de delinquentes passaram a agir livremente em Porto-Príncipe, apoderando-se inclusive de prédios e órgãos públicos. Alguns dos maiores bairros da capital, como Bel-Air e Cité Soleil, foram completamente dominados por facções criminosas. Na prática, o Estado democrático entrou em colapso, incapaz de garantir condições mínimas de segurança e estabilidade para que o país continuasse funcionando.
A pedido do governo haitiano, e com base em resolução do Conselho de Segurança, a ONU decidiu enviar ao país uma Missão de Paz e Estabilização – a MINUSTAH. Um general brasileiro comanda a componente militar da missão, que conta com soldados de dezenas de países, e é integrada majoritariamente por tropas de nações sul-americanas.
O Brasil e seus vizinhos aceitaram a convocação da ONU por um imperativo de solidariedade. Não podíamos ficar indiferentes à crise político-institucional e ao drama humano do Haiti. E o fizemos convictos de que a tarefa da MINUSTAH não se limitava à segurança, mas abrangia também o fortalecimento da democracia, a afirmação da soberania política do povo do Haiti e o apoio ao desenvolvimento sócio- econômico do país. Daí a atitude respeitosa e não truculenta – de verdadeira parceria com a população local – que tornou-se sua marca registrada.
Hoje a situação de segurança se transformou profundamente: os riscos de guerra civil foram neutralizados, a ordem pública restabelecida e os bandos de delinquentes derrotados. O país foi pacificado e o Estado reassumiu o controle de todo o território nacional. Além disso, a MINUSTAH tem contribuído para equipar e treinar uma força haitiana de segurança.
As instituições democráticas voltaram a funcionar e estão se consolidando. Já em 2006, foram realizadas eleições gerais no Haiti, com a participação de todos os setores políticos e ideológicos interessados. Sem interferir na disputa eleitoral, a MINUSTAH garantiu a tranquilidade do pleito e que prevalecesse a vontade popular. O presidente eleito, René Préval, apesar de todas as dificuldades, cumpriu integralmente o seu mandato e, em 2011, transmitiu o cargo ao seu successor, Michel Martelly, também escolhido pela população.
Na esfera humanitária e social, conseguiu-se algumas melhorias significativas, ainda que persistam enormes desafios e que o terremoto de 2010, com sua onda de destruições, tenha comprometido parte do esforço anterior, gerando novas carências. Apesar de tudo, a população desabrigada, segundo relatório da ONU de 2013, caiu de 1,5 milhões de pessoas para 172 mil. Três em cada quatro crianças já frequentam regularmente a escola fundamental, frente a menos da metade em 2006. A insegurança alimentar foi drasticamente reduzida. O flagelo do cólera está sendo enfrentado.
Nas três vezes em que visitei o Haiti, pude testemunhar a capacidade de resistência e a dignidade do seu povo. Em 2004, a seleção brasileira de futebol esteve no país para um jogo amistoso com a seleção local em prol do desarmamento. Até hoje me comovo ao lembrar o carinho com que a população haitiana recebeu os nossos atletas.
Além de sua participação na MINUSTAH, para a qual contribui com o maior contingente de soldados, o Brasil tem colaborado intensamente com o povo do Haiti na àrea social. Com recursos próprios ou em parceria com outros países, implementou uma série de programas que vão desde campanhas nacionais de vacinação até o apoio direto à pequena e média empresas e à agricultura familiar, passando pela alimentação escolar e a formação profissional da juventude.
Há três iniciativas brasileiras, entre outras, que me entusiasmam particularmente. Uma são os três hospitais comunitários de referência, construídos junto com Cuba e o próprio governo do Haiti, para atender às camadas mais pobres da população. Outra é um projeto inovador de reciclagem de resíduos sólidos, elaborado e executado pelo grupo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), que contribuiu ao mesmo tempo para a limpeza urbana, a geração de energia e a criação de empregos. Essa inciativa foi, inclusive, premiada pela ONU. E a terceira é o projeto de construção de uma usina hidrelétrica no Rio Artibonite, que certamente representará um salto histórico na infraestrutura do país, ampliando o acesso da população à eletricidade, favorecendo a agricultura e a indústria, e permitindo ao Haiti reduzir a sua dependência da importação de petróleo. Trata-se de um empreendimento para o qual o Brasil já elaborou os projetos de engenharia e doou 40 milhões de dólares (1/4 do seu valor total) que estão depositados num fundo especifico do Banco Mundial, esperando que outros países completem os recursos necessários para a execução da obra.
Alguns países desenvolvidos também tem apoiado ativamente a reconstrução do país. Os Estados Unidos, por exemplo, investiram recursos significtaivos em diversos projetos econômicos e sociais, a exemplo do polo industrial de Caracol, no norte do país.
Mas, infelizmente, nem todos os que se comprometeram com o Haiti cumpriram as suas promessas. A verdade é que a maioria dos países ricos tem ajudado muito pouco o Haiti. O volume de ajuda humanitária está diminuindo e há entidades de cooperação que começam a retirar-se do país. A comunidade internacional não pode diminuir a sua solidariedade ao Haiti.
Em 2016 deverá ocorrer a próxima eleição presidencial no país. Será o terceiro presidente eleito democraticamente desde 2004. Penso que este momento deve ser um marco no processo já iniciado de devolução ao povo haitiano da responsabilidade plena pela sua segurança. Mas isso só será possível se a comunidade internacional mantiver – e se necessário, ampliar – os recursos financeiros e técnicos destinados à reconstrução do país e ao seu desenvolvimento econômico e social.
Devemos substituir cada vez mais a vertente da segurança pela vertente do desenvolvimento. O que implica em maior cooperação, ainda que com novas finalidades. Será que não está na hora das Nações Unidas convocarem uma nova Conferência sobre o Haiti, para discutirmos francamente o que foi feito nesses dez anos e o que fazer daqui para a frente?
Eis o artigo:
Não vamos nos esquecer do Haiti
Em 2014, completam-se dez anos de presença da Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti e quatro anos do terremoto que devastou e agravou a frágil situação deste que é o país mais pobre da América Latina.
Grandes crises institucionais e catástrofes naturais levam países às manchetes em todo o mundo e despertam durante algum tempo a atenção da imprensa internacional e dos governantes. Mas depois, sobretudo se o país vitimado é pobre e periférico, sem peso no jogo geopolítico global, os holofotes se apagam, as notícias se tornam cada vez mais raras, o clamor de solidariedade arrefece e boa parte das promessas de apoio são esquecidas. Até porque a reconstrução das áreas atingidas e a solução real dos problemas de suas populações não acontece, obviamente, na mesma velocidade com que as notícias são difundidas na internet e na televisão. Exige uma atuação paciente e continuada, com inevitáveis altos e baixos, ao longo de anos, que vá muito além do socorro humanitário. E isso supõe um forte compromisso ético e político dos países envolvidos.
Vale a pena lembrar que, no primeiro semestre de 2004, o Haiti sofreu uma gravíssima crise política que resultou na queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide e na disputa pelo poder entre diversos grupos armados, sacrificando brutalmente a população civil. A violência e os atentados aos direitos humanos se generalizaram. Gangues de delinquentes passaram a agir livremente em Porto-Príncipe, apoderando-se inclusive de prédios e órgãos públicos. Alguns dos maiores bairros da capital, como Bel-Air e Cité Soleil, foram completamente dominados por facções criminosas. Na prática, o Estado democrático entrou em colapso, incapaz de garantir condições mínimas de segurança e estabilidade para que o país continuasse funcionando.
A pedido do governo haitiano, e com base em resolução do Conselho de Segurança, a ONU decidiu enviar ao país uma Missão de Paz e Estabilização – a MINUSTAH. Um general brasileiro comanda a componente militar da missão, que conta com soldados de dezenas de países, e é integrada majoritariamente por tropas de nações sul-americanas.
O Brasil e seus vizinhos aceitaram a convocação da ONU por um imperativo de solidariedade. Não podíamos ficar indiferentes à crise político-institucional e ao drama humano do Haiti. E o fizemos convictos de que a tarefa da MINUSTAH não se limitava à segurança, mas abrangia também o fortalecimento da democracia, a afirmação da soberania política do povo do Haiti e o apoio ao desenvolvimento sócio- econômico do país. Daí a atitude respeitosa e não truculenta – de verdadeira parceria com a população local – que tornou-se sua marca registrada.
Hoje a situação de segurança se transformou profundamente: os riscos de guerra civil foram neutralizados, a ordem pública restabelecida e os bandos de delinquentes derrotados. O país foi pacificado e o Estado reassumiu o controle de todo o território nacional. Além disso, a MINUSTAH tem contribuído para equipar e treinar uma força haitiana de segurança.
As instituições democráticas voltaram a funcionar e estão se consolidando. Já em 2006, foram realizadas eleições gerais no Haiti, com a participação de todos os setores políticos e ideológicos interessados. Sem interferir na disputa eleitoral, a MINUSTAH garantiu a tranquilidade do pleito e que prevalecesse a vontade popular. O presidente eleito, René Préval, apesar de todas as dificuldades, cumpriu integralmente o seu mandato e, em 2011, transmitiu o cargo ao seu successor, Michel Martelly, também escolhido pela população.
Na esfera humanitária e social, conseguiu-se algumas melhorias significativas, ainda que persistam enormes desafios e que o terremoto de 2010, com sua onda de destruições, tenha comprometido parte do esforço anterior, gerando novas carências. Apesar de tudo, a população desabrigada, segundo relatório da ONU de 2013, caiu de 1,5 milhões de pessoas para 172 mil. Três em cada quatro crianças já frequentam regularmente a escola fundamental, frente a menos da metade em 2006. A insegurança alimentar foi drasticamente reduzida. O flagelo do cólera está sendo enfrentado.
Nas três vezes em que visitei o Haiti, pude testemunhar a capacidade de resistência e a dignidade do seu povo. Em 2004, a seleção brasileira de futebol esteve no país para um jogo amistoso com a seleção local em prol do desarmamento. Até hoje me comovo ao lembrar o carinho com que a população haitiana recebeu os nossos atletas.
Além de sua participação na MINUSTAH, para a qual contribui com o maior contingente de soldados, o Brasil tem colaborado intensamente com o povo do Haiti na àrea social. Com recursos próprios ou em parceria com outros países, implementou uma série de programas que vão desde campanhas nacionais de vacinação até o apoio direto à pequena e média empresas e à agricultura familiar, passando pela alimentação escolar e a formação profissional da juventude.
Há três iniciativas brasileiras, entre outras, que me entusiasmam particularmente. Uma são os três hospitais comunitários de referência, construídos junto com Cuba e o próprio governo do Haiti, para atender às camadas mais pobres da população. Outra é um projeto inovador de reciclagem de resíduos sólidos, elaborado e executado pelo grupo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), que contribuiu ao mesmo tempo para a limpeza urbana, a geração de energia e a criação de empregos. Essa inciativa foi, inclusive, premiada pela ONU. E a terceira é o projeto de construção de uma usina hidrelétrica no Rio Artibonite, que certamente representará um salto histórico na infraestrutura do país, ampliando o acesso da população à eletricidade, favorecendo a agricultura e a indústria, e permitindo ao Haiti reduzir a sua dependência da importação de petróleo. Trata-se de um empreendimento para o qual o Brasil já elaborou os projetos de engenharia e doou 40 milhões de dólares (1/4 do seu valor total) que estão depositados num fundo especifico do Banco Mundial, esperando que outros países completem os recursos necessários para a execução da obra.
Alguns países desenvolvidos também tem apoiado ativamente a reconstrução do país. Os Estados Unidos, por exemplo, investiram recursos significtaivos em diversos projetos econômicos e sociais, a exemplo do polo industrial de Caracol, no norte do país.
Mas, infelizmente, nem todos os que se comprometeram com o Haiti cumpriram as suas promessas. A verdade é que a maioria dos países ricos tem ajudado muito pouco o Haiti. O volume de ajuda humanitária está diminuindo e há entidades de cooperação que começam a retirar-se do país. A comunidade internacional não pode diminuir a sua solidariedade ao Haiti.
Em 2016 deverá ocorrer a próxima eleição presidencial no país. Será o terceiro presidente eleito democraticamente desde 2004. Penso que este momento deve ser um marco no processo já iniciado de devolução ao povo haitiano da responsabilidade plena pela sua segurança. Mas isso só será possível se a comunidade internacional mantiver – e se necessário, ampliar – os recursos financeiros e técnicos destinados à reconstrução do país e ao seu desenvolvimento econômico e social.
Devemos substituir cada vez mais a vertente da segurança pela vertente do desenvolvimento. O que implica em maior cooperação, ainda que com novas finalidades. Será que não está na hora das Nações Unidas convocarem uma nova Conferência sobre o Haiti, para discutirmos francamente o que foi feito nesses dez anos e o que fazer daqui para a frente?
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