Sanguessugado do Palavras Insurgentes
Elaine Tavares
Fizemos
uma volta em torno do sol, sem Chávez. Quando anoiteceu, abri uma
cerveja, bem gelada, e fui sorvendo gole a gole. Como se estivesse de
novo na Sabana Grande. Foi ali que descansei o corpo nos dias em que
vivi a Venezuela de Chávez. Era 2006. Tinha reservado hotel aqui do
Brasil, sem saber como era, nem onde se localizava. Tudo que sabia é que
era em Caracas. Pois o Hotel Cristal era um desses hotéis de fluxo
contínuo, que serve aos amantes do grande bulevar da Sabana Grande. Só
por isso já aparecia belo aos meus olhos. Porque abrigava esses amores
fortuitos, apressados, de delicado estilo, cheios de urgência.
Na
recepção, nos aguardava um mal-humorado Jesus, anti-chavista, portanto
sem qualquer afinidade com seu homônimo, nazareno, que por certo amaria a
revolução bolivariana. Achando ruim que chegassem tantos estranhos – e o
que é pior, nem eram casais – o tempo todo ficou criando caso. Talvez
não conseguisse conceber hóspedes normais, sem a marca do amor que urge
se consumar. Os chegantes, alguns já intimidados com a simplicidade do
lugar e com sua peculiar especificidade, se olhavam sem saber o que
fazer. Mas, com o passar dos dias, tudo foi se acomodando, O hotel
Cristal virou casa. O mau humor dos porteiros foi tirado de letra e
alguns deles, como o Abrão e o Omar, viraram amigos.
Saindo
do Cristal, assomava toda a beleza do bairro onde ele estava situado:
Sabana Grande. O bairro era um amontoado de barracas de lona e um
universo caótico de sons de salsa, merengue e música llanera. E, bem
ali, no coração da Sabana, estávamos nós, um pequeno grupo de
catarinenses. “Cuidado! É muito perigoso! Não se desgrudem das bolsas! O
povo aqui ataca com faca! Fiquem longe dos drogados!” Estes eram alguns
dos conselhos do povo do hotel e de quem mais a gente encontrasse na
cidade. Pois a Sabana Grande era um espaço de pobres, onde vicejavam os
hotéis de encontros e as tascas, casas de shows com mulheres de preço
bom. Pelas ruas, tão logo levantavam acampamento os trabalhadores
informais, chegavam os mendigos, drogados, prostitutas e as gentes sem
porvir que buscavam um pouco de amor, ainda que em braços e bocas
alugadas.
Mas, apesar de todos os avisos,
ninguém ali teve problemas. Terminadas as funções do Fórum e as visitas a
grande Caracas, voltávamos e nos aboletávamos em alguma mesa de um dos
bares mais animados. Depois de algumas “polares” geladas, muito bem
atendidos pelo simpático Jairo – chavista de coração - a gente vinha
saltitando pela calçada suja, sem que ninguém interpelasse. Nenhum
roubo, nenhuma agressão. Por conta desses paradoxos da vida, na perigosa
Sabana, nosso refúgio era o Cristal. E assim, por tão frágil, não podia
quebrar. Os perdidos do bulevar, num átimo de beleza, compreenderam a
metáfora e nos deixaram em paz. Garrafadas, assaltos e confusões? Sim,
tudo isso aconteceu, mas só depois que os catarinas já estavam seguros
nas camas repartidas do Cristal.
Aquela vivência
na Sabana Grande nunca mais saiu das retinas. Lembro até hoje o ranger
do elevador do Cristal, pequenino, fatigado de tanto levar os seres do
bulevar rumo às camas do amor urgente. Era irascível. Sacudia,
balançava, travava, demorava. Parecia triste. Não via mais aqueles olhos
oblíquos de quem se esconde, aquele trote no coração de quem escapa da
vida certinha, aquele suor assustado de quem sabe que vai viver uma
delícia proibida, aquele tremor de mãos que anseiam por toques, aquele
cheiro de corpo de fêmea e macho, fremindo de paixão. A velha engrenagem
do Cristal estava a ponto de falhar. Na sua caixinha entravam e saiam
todos aqueles viajantes estranhos, espantando os hóspedes fortuitos.
Morreria o elevador se não pudesse ver florescer o amor, esse, feito de
carne, dor e segredos. Ainda bem que os dias passaram rápido e, quando
saímos, parece que ele retomou seu ritmo normal, sem paradas e sustos.
Mas seu barulho ainda ressoa em mim. Saudade!
Aqueles
foram dias de vertigem. A revolução bolivariana estava no seu auge. Por
todo lugar a luta de classes se expressava. Anti-chavistas, chavistas,
venezuelanos apartidários, sindicalistas. Tudo estava em ebulição. Era o
Fórum Social Mundial e também havia gente de todo mundo, doida para ver
e sentir as transformações que tinham começado em 1998, com Chávez.
Andávamos pelos bairros conhecendo os “simoncitos”, espaços para a
educação infantil, as escolas novas, as estruturas para atendimento
médico, os trabalhos das missões.
Ficou nas
retinas o Maracau, populoso bairro da periferia, misto de reduto
português com venezuelanos da gema. Com Raul e Daniel, dois moradores
locais, circulamos por ali, sentindo a força da transformação e o
sentimento de profundo amor que as gentes tinham pelo “comandante”.
Chovia forte e os estudantes se amontoavam nas paradas, entrando aos
borbotões. Ao saber que ali viajavam brasileiros logo queriam saber de
coisas. Faziam perguntas, contavam de suas vidas e confirmavam o que
dizem quase todas as gentes mais humildes de Caracas. “Com Chávez, é
bom!”
Depois circulamos pelo “23 de Enero”, o
famoso bairro que cerca Miraflores, o palácio presidencial. Dizia Daniel
que até poucos anos atrás ninguém poderia andar por ali, assim, como
fazíamos. “Era um reduto de violência, de assaltos, de gangues. Agora
não, a comunidade assumiu o controle. A gente pode passear, os velhos
podem ficar ao sol e as crianças brincam nas praças. Tudo isso só foi
possível com o poder popular”. Dos milhares de apartamentos populares
que compõe o bairro, assomavam, nas janelas, as cabeças dos mais
ferrenhos defensores da revolução bolivariana. Foram eles que, no golpe
de 2002, desceram rua afora até o palácio, prontos a defender com armas e
com a vida o governo de Hugo Chávez. Aquele era um bairro mítico e não
havia como não se arrepiar ao andar pela calle La Silsa , uma rua
imensa, cheia de casas e muros pintados com grafites pró-revolução.
É
essa Venezuela, prosaica, que hoje me assalta, enquanto celebro a
semeadura desse homem que marcou a vida da América Latina. Sinto o
cheiro do Cristal, o barulho do elevador, a alegria da Sabana Grande, o
olhar cheio de eternidades daqueles que acreditaram na revolução
bolivariana, dos que o amaram e o amarão. Como eu!
Um trago, comandante!
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