Saul Leblon
Se nas ruas da indignação ainda há quem conceba enfrentar a crise à margem do poder de Estado, do outro lado da trincheira os banqueiros não alimentam dúvidas, nem acreditam em querubins.
Nos últimos dias, dois fatos ilustraram essa duplicidade. Sábado (15), milhões de pessoas manifestaram-se em um milhar de cidades do planeta contra o colapso econômico impulsionada pela supremacia das finanças sem lei. Na segunda-feira seguinte, 17, de forma inusitada, o banqueiro Emilio Botín, dono do Santander, foi categórico ao arremeter contra a restauração do poder de Estado sobre o setor: "É preciso frear o trem da regulação", sentenciou, emprestando uma bandeira a seus pares em reunião internacional, na Espanha.
Banqueiros falam pouco. Não precisam gastar saliva. O dinheiro fala por eles. O recado de Botín é um sintoma da gravidade alcançada por uma crise que interligou a finança privada e a finança pública numa entropia corrosiva de ajuste incontornável.
A dúvida paralisante é quem arcará com o fardo de elevada octanagem, que pode se traduzir em sacrifícios sociais explosivos ou em perdas patrimoniais robustas.
É justamente a repartição desse ônus que a fala de Don Bottin pretendeu influenciar brandindo contra 'o trem da regulação'.
O impasse entre os interesses das ruas e aqueles condensados na sentença do banqueiro explica a desconcertante incapacidade das lideranças do euro em oferecer respostas ao conflito emblemático desta crise: o explosivo laboratório do colapso grego (leia reportagens do correspondente de Carta Maior em Atenas).
A dívida da Grécia - 300 bi de euros - é impagável. Mas um calote desorganizado significaria a espoleta de uma desastrosa replicação de insolvências latentes (Itália, Espanha, Portugal, Bélgica, Irlanda etc). Para o bem e para o mal, a Grécia é a prefiguração do futuro do euro.
E é isso que inquieta Don Botín.
A Grécia lava nas ruas a roupa suja de um matrimônio que foi harmonioso enquanto a desregulação neoliberal permitiu, a um lado, oferecer crédito ilimitado; ao outro, acomodar um mix de isenção fiscal para os ricos, endividamento público temerário em troca de juros crescentes pagos aos banqueiros e manutenção de serviços sociais à população (estamos falando da Europa).
A ruptura do idílio impõe uma repactuação entre os atores para que o conjunto possa seguir a vida. Precede o passo seguinte da história, porém, a litigiosa distribuição das perdas e danos do ciclo que se fecha.
Há perguntas incômodas na agenda oculta das cúpulas do euro. Quanto os bancos credores estão dispostos a perder é a principal delas. Qual o 'desconto' da dívida que concordam em conceder para evitar uma entropia que, na Grécia, já flerta com a conflagração civil?
Especialistas calculam como inevitável um deságio superior a 50% (já se fala em 60%). Significa que de cada 10 euros emprestados a Atenas, os bancos abririam mão de cinco - mais o alongamento de prazos do saldo e novos aportes para rebocar o país do pântano.
E ainda não é tudo. Antes de conceder o desconto, os bancos terão que fazer provisões. Reforçar o caixa com dinheiro próprio para que o mercado, de um modo geral, tenha a certeza de que a renegociação das dívidas não implicará no esfarelamento das instituições.Em bom português, significa cortar bônus de quem manda no banco -inclusive dos donos, a exemplo de 'Don' Botín. E achatar os dividendos de seus acionistas --o que costuma ter repercussões em espiral descendente no valor das ações. Bancos franceses, por exemplo, detentores de um bom pedaço do mico grego, perderam 45% do valor de mercado este ano.
A lenga-lenga em torno da crise do euro evidencia que essas coisas não acontecerão espontaneamente.
Ao mesmo tempo, não podem mais ser adiadas sob pena de a crise escapar ao controle e ser decidida nas ruas. Quatro encontros europeus de cúpula, todos emergenciais, previstos para acontecer de hoje, sábado, até a próxima quarta-feira,dia 25, ilustram a premência de um desenlace que devolva parâmetros e certezas aos mercados e ao poder.
'Don' Botín e seus pares esticam a corda do seu lado. Querem empurrar o custo de uma recapitalização ampla, geral irrestrita da banca ao setor público- que já arca com o desafio de reforçar em dois trilhões de euros o fundo europeu de estabilização, para evitar que o 'desconto' à Grécia redunde numa cadeia de calotes na periferia da UE.
De onde sairia tanto dinheiro, se a maioria dos Estados já claudica em honrar até os níveis atuais de endividamento? Das respectivas populações, na forma de cortes de gastos, supressão adicional de direitos, salários, empregos e serviços sociais? Quem se habilita a ser o novo Papandreu? Ou o próximo Zapatero? Merkel e Sarkoy hesitam. 'Don' Botin esbraveja. Os impasses se avolumam. E o ruído das ruas já não pode mais ser ignorado.
O banqueiro Emilio Botín sabe muito bem onde vão desaguar esses ruídos e essas perguntas incomodas.
Se a pressão das ruas reverter a fidelidade atual dos governantes aos mercados, o passo seguinte será a imposição de uma dura disciplina regulatória sobre a banca.
Roosevelt, ancorado em pressão social, fez quase uma estatização branca nos EUA, em 1933, obrigando os banqueiros a agir de forma coordenada com políticas públicas de saneamento financeiro, retomado do crescimento e preservação da estabilidade social.
Entende-se a ordem emitida por 'Don' Botín dois dias depois das grandes mobilizações de massa que destacaram o 15 de outubro como um divisor no calendário a crise mundial: "Parem o trem da regulação".
Parar a história é um desejo intrínseco à natureza das classes dominantes. Don Botín está no seu papel. As ruas é que não podem mais ignorar a disputa em torno desse comboio. Sobretudo, não podem abstrair que mudanças na direção do trem pressupõem, no mínimo, ter forte poder de indução sobre o maquinista: o poder de Estado.
Pesquisado da CartaMaior
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