O cronista suíno avisa: em terras de Bruzundanga, só mandam prender os bois magros – o resto nunca dá bode...
Luiz Ricardo Leitão
Certos setores de mídia desta próspera e pitoresca Bruzundanga já não sabem mais o que fazer diante da crescente onda de protestos que se espraia nos EUA e na Europa contra o capital financeiro e o moribundo credo neoliberal. Os locutores de telejornais da poderosa Vênus Platinada e os articulistas da Veja, em particular, realizam verdadeiros malabarismos semânticos e ideológicos a fim de fazer-nos crer que o movimento dos “indignados”, iniciado na Espanha há cerca de seis meses, é uma espécie de boi sem nome, que nada tem a ver com a crise aguda do capitalismo globalizado no limiar do século 21.
Haja acrobacia! Só no último dia 15/10, centenas de milhares de manifestantes se reuniram em mais de 950 cidades de 82 países para expressar sua legítima indignação contra as terríveis mazelas que essa crise tem legado aos povos, em especial os jovens, que padecem com as elevadas taxas de desemprego (acima de 20% na Espanha, por exemplo) e os cortes estratosféricos nos programas sociais (receituário que os governos da Grécia e Itália prometem cumprir à risca). E as mobilizações não param por aí: se até Tio Sam começa a inquietar-se com os indignados do Ocupe Wall Street, nas ruas e praças de Nova Iorque, as greves gerais dos trabalhadores europeus indiciam uma radicalização ainda maior da resistência popular no Velho Mundo, cujos governantes são meros fantoches da banca internacional.
O temor, mais do que óbvio, é que, depois de devidamente identificada a raiz do mal, as turbas organizadas passem a exigir “mudanças revolucionárias dentro do sistema ou de um outro sistema”, como declarou um militante do Ocupe Washington entrevistado por um jornal brasileiro. Não por acaso, alguns quadros da intelligentsia tupiniquim, como o economista Bresser-Pereira (ex-ministro de Sarney e FHC), reconhecem que “os 30 anos neoliberais do capitalismo (1979-2008) foram realmente um imenso retrocesso social e político”, cujos males que provocaram ainda estão longe de se esgotar. E não hesitam em admitir que os responsáveis por essa catástrofe são as elites, as quais teriam ‘permitido’ que apenas 2% da população auferissem as riquezas geradas pelos “30 anos dourados do capitalismo” (1949-1978).
É claro que há matizes sutis nesse processo, já abordados por cientistas como o sociólogo Michael Burawoy, que identifica nos atuais movimentos sociais um refl exo da “era da exclusão” gerada pela terceira onda de mercantilização do planeta (a primeira se deu no séc. 19 e a segunda em meados do séc. 20). Para ele, a crise do capitalismo financeiro não o destruirá, pois este tende a tornar-se mais forte fora do controle dos Estados – e só sucumbiria após exaurir as condições de sua própria existência. Assim, estudantes e jovens desempregados ocupam a cena pública, indignados com seu estado de precariedade e com o fato de sequer terem acesso a uma posição estável de exploração.
“As pessoas vão para as ruas porque acreditam que a ação de massas pode levar a alguma coisa”, arremata o senegalês Gilbert Achcar. O neoliberalismo solapou as proteções e ganhos sociais, e isso não só fomentou a indignação europeia, como também estimulou a chamada “Primavera Árabe”, que indicia uma perda progressiva de influência do Tio Sam no Oriente Médio. Nem o sorriso do bom-mulato Obama logrará impor-se em temas áridos como a questão palestina – que o diga a renitente oposição de Netanyahu à criação de um Estado soberano na região controlada por Israel.
Cá na República, porém, as cousas recebem nomes muito vagos e difusos. Cartazes e outdoors espalhados pelas ruas nos informam que a grande inimiga é a corrupção, a qual deverá ser varrida com vassouras novíssimas, de um verde exuberante, que vemos fincadas nas tórridas areias de Ipanema e nas calçadas da Avenida Paulista. Um mal quase abstrato, genérico, ou seja, bois anônimos e sem donos, que vivem em pastos nebulosos e alheios – e onde, a julgar pela descrição da mídia, não existem banqueiros a especular com os fundos públicos, nem fazendeiros a grilar terras de pequenos lavradores, muito menos empreiteiras a engordar com as pródigas licitações ‘oficiais’. Cuidado, boi Fubá! Arreda, vaca Estrela! O cronista suíno avisa: em terras de Bruzundanga, só mandam prender os bois magros – o resto nunca dá bode...
Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.
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