Lilia Diniz
Há 60 anos, nascia o jornal Última Hora, uma das mais importantes publicações do Brasil. Fundada pelo jornalista Samuel Wainer, a UH transformou o jornalismo: instalou máquinas modernas, pagou ótimos salários, adotou paginação inovadora e a atualização das notícias em várias edições ao longo do dia. Seis meses depois do lançamento, era o vespertino mais vendido no país. Nas décadas de 1950 e 1960, abrigava um time invejável de colunistas e cronistas. Em seu auge, chegava a todo o Brasil e tinha sede própria em sete estados.
As questões populares tinham espaço garantido no jornal, que mantinha colunas voltadas para o trabalhador e tratava problemas como o preço do leite com grande destaque. Nas duas décadas em que circulou, o jornal foi marcado por grandes polêmicas. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira pela TV Brasil (22/11) relembrou a trajetória deste jornal que é um marco na história da mídia brasileira.
Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu a historiadora Alzira Abreu e o jornalista Milton Coelho da Graça. Doutora em Sociologia pela Universidade de Sorbonne, Alzira é historiadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde coordenou a atualização do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Milton Coelho é jornalista há mais de 50 anos. Na Última Hora foi copydesk, chefe de reportagem e editor de primeira página nas décadas de 1950 e 1960. Durante a ditadura militar foi preso por conta de sua atuação no jornal. Nas décadas seguintes, voltou ao jornal como diretor de Redação e comentarista internacional. Milton também trabalhou em O Globo, O Dia e na Editora Abril.
Um repórter empresário
Em editorial, Dines comentou que a Última Hora foi uma “revolução azul”, um divisor de águas. “O vespertino Última Hora antecipou os anos dourados de JK, combinou um jornalismo vibrante, popular, com sofisticação cultural, colocou Nelson Rodrigues ao lado de Vinicius de Moraes, uma dupla impossível e impensável. O grande triunfo deste repórter-estrela que tornou-se dono de uma cadeia de jornais foi justamente a razão de sua queda: os barões da imprensa não queriam um intruso, sobretudo sendo filho de imigrantes judeus”, sublinhou. Para Dines, Samuel Wainer foi um “fabuloso mancheteiro”, sedutor e, ao mesmo tempo, sufocante. Simbolizava um jornalismo de emoções e de inteligência que deixou de existir.
A reportagem exibida no programa entrevistou jornalistas que trabalharam na Última Hora e estudiosos da trajetória deste jornal. A criação da UH reuniu duas figuras carismáticas e polêmicas: o presidente Getúlio Vargas e o jornalista Samuel Wainer. Após deixar o poder com a negativa carga de um governo ditatorial, em 1947, Vargas exilou-se em sua fazenda no Rio Grande do Sul. Wainer era repórter dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e estava escrevendo uma matéria sobre a produção de trigo quando passou em uma localidade próxima à fazenda de Vargas.
Ousado, foi até a estância e conseguiu uma bombástica entrevista com o ex-presidente, que não falava com a imprensa havia dois anos. Com exclusividade, o então ex-presidente anuncia seu retorno à política. No dia seguinte, Wainer emplaca a histórica manchete anunciando que Vargas voltaria à vida política.
Manchete Histórica
“Getúlio se aproveita desse talento que está ali com ele e diz para o Samuel: ‘Eu voltarei nos braços do povo’. Samuel liga para o Chateaubriand e diz: ‘Olha, temos a manchete. Getúlio me disse que volta’. Aí... ‘Parem as máquinas!’ Enfim, faz-se a primeira página e o jornal dá essa notícia. A partir daí, Samuel vai ficar colado na campanha de Getúlio. Os outros jornais não estão interessados em ter Getúlio no poder”, explicou Joëlle Rouchou, autora deSamuel, duas vozes de Wainer.
Vargas foi eleito em 1950 com larga vantagem sobre os adversários, mas enfrentava dura oposição no meio político e na imprensa. Era preciso um veículo que desse voz ao presidente e Vargas ofereceu a Wainer uma série de facilidades para criar um jornal. Antes de fundar a Última Hora, Samuel Wainer havia trabalhado no Diário de Notícias, em O Globo e nos Diários Associados. Em 1937, lançou a revista Diretrizes, que fizera oposição ao governo Vargas.
Durante todo o governo democrático de Vargas, a Última Hora defendeu abertamente o presidente. “Ele precisava desse contato com o povo porque todos os outros jornais eram inimigos de Getúlio. Ele vinha da revista Diretrizes, que desafiou a ditadura de Getúlio e depois virou amigo de Getúlio. Quer dizer, era uma pessoa muito hábil. Ele acreditava nisso, nessa habilidade de Getúlio”, contou o jornalista Pinheiro Jr., que foi repórter na UH.
Guerra de Jornais
A identificação do jornal com o presidente Vargas rendeu uma série de inimigos à Última Hora. Carlos Lacerda, jornalista e político, antigo amigo de Samuel Wainer, foi o adversário mais ácido da UH. Opositor de Getúlio Vargas, Lacerda moveu uma série de campanhas contra Wainer em seu jornal, a Tribuna da Imprensa. Uma guerra diária que culminou com a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que levou a oposição a cogitar o impeachment de Vargas.
Lacerda acusou Wainer de ter sido favorecido por órgãos oficiais para abrir a UH, sobretudo pelo Banco do Brasil. Também denunciava que Wainer seria estrangeiro e, por isso, não poderia ser proprietário de um jornal no Brasil. Para provar que havia nascido no Brasil, Wainer apresentou depoimentos de integrantes da comunidade judaica que garantiram terem assistido a sua circuncisão no Brasil, quando este seria ainda um bebê.
Joëlle Rouchou afirma que o fundador da UH nasceu, na verdade, na Bessarábia e chegou ao Brasil ainda pequeno. “Uma tia dele me contou que ele tinha nascido lá e aí ele vem para cá como um imigrante que quer vencer”, explicou Joëlle. “Samuel começa uma briga gigantesca através da Justiça para provar que ele era brasileiro. E durante toda a vida dele, Samuel manteve essa história porque ele não queria prejudicar esses senhores que o ajudaram. E ele ganha na Justiça”. Cinco meses depois, Wainer foi absolvido das acusações de favorecimento, concorrência desleal e de ser devedor insolvente. Nada foi provado, naquela ocasião, sobre a condição de estrangeiro.
Um jornal inovador
Uma das características mais marcantes do fundador da Última Hora, de acordo com Joëlle, era descobrir novos talentos. A pesquisadora comentou que Samuel Wainer procurava valorizar os funcionários do jornal: “O Samuel é conhecido como um empresário mas, como já havia sido repórter, conhece as dificuldades de uma Redação de jornal. Ele tem um cuidado com as relações trabalhistas. Ele melhora os salários, sobe os salários dos jornalistas. Dá uma dignidade às fotografias”.
Outra grande diferença entre a Última Hora e os outros jornais do período é a utilização da cor: “É a Última Hora que introduz a cor. Até na logomarca, no logotipo da Última Hora tinha uma cor azul chapada”, lembra Pery Cota, ex-repórter da UH. Para o jornalista, os jornais daquela época eram “bisonhos”, malfeitos, montados muitas vezes na oficina, às pressas. “A Última Hora, não. Era desenhada, tinha cores e as fotografias eram muito abertas. As manchetes eram muito vibrantes. Isso fazia com que o jornal fosse diferente dos outros jornais”, diz.
A Última Hora, na avaliação de Joëlle, sempre defendeu o funcionário: “Apesar de ter várias colunas, de ter um glamour, de ter um charme de toda a elite carioca, que Samuel fazia questão de trazer para dentro do jornal, tinha um fundo de preocupação com essa massa trabalhadora. Eu diria que era um jornal que se queria popular, mas dando um pouco de charme e de purpurinas. Ao mesmo tempo que tinha smoking, eles usavam ‘havaianas’ naquela redação”. Pinheiro Jr. contou que a cena cultural tinha destaque na Última Hora. Em 1953, o jornal lançou a revista Flan. “Era uma revista muito bonita, impressa em policromia e que tinha a colaboração dos maiores intelectuais da época”, disse o jornalista. Pinheiro Jr. sublinhou que era um jornal “popular sem ser popularesco”.
Povo como protagonista
Domingos Meirelles, que foi repórterda Última Hora, contou que o jornal causou um “frisson” na imprensa brasileira. “O Samuel contrata os melhores profissionais e monta uma redação extraordinária. Agora, na minha visão, o que a Última Hora conseguiu era reproduzir os sentimentos do cidadão comum, as suas queixas, as suas aflições. A Última Hora era um espelho da realidade brasileira que você não encontrava em outros jornais”. Pery Cota também comentou a importância que a cidadania tem na Última Hora: “É um jornal de cidadania. É um jornal de interesse público. É um jornal voltado para as comunidades, para a sociedade, para o meio sindical, para a área de Educação como evolução, como plataforma para o sujeito conseguir um bem estar maior”.
A Redação da UH tinha grandes estrelas. Domingos Meirelles contou como era o clima entre os funcionários: “Eu me lembro bem, por exemplo, do Nelson Rodrigues, torcedor do Fluminense, sempre muito mal humorado. Sempre que o Nelson Rodrigues se afastava da máquina de escrever, as pessoas se aproximavam, principalmente o pessoal da editoria de Polícia, vizinhos de mesa do Nelson Rodrigues, e continuavam o texto. Acrescentavam duas, três, quatro palavras. E ele sentava, continuava escrevendo e não percebia. Eu ficava chocado, indignado com esse tipo de comportamento irreverente da redação, mas a Última Hora era assim”.
Após a morte de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, Samuel Wainer começou a enfrentar uma série de dificuldades para manter o seu empreendimento. Nos anos seguintes, a Última Hora apoiou os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Em 1964, após o golpe militar, Samuel Wainer teve seus direitos políticos cassados e exilou-se na França.
Anos de Chumbo
“A Última Hora era um jornal que defendia o restabelecimento do Estado de Direito e a volta da democracia e das garantias individuais. E a Redação tinha uma independência que hoje me parece quase que uma fantasia. O [setor] Comercial dificilmente interferia na linha editorial do jornal, ou melhor, a Redação impedia que o Comercial interferisse na linha editorial”, relembrou Domingos Meirelles. Samuel Wainer voltaria ao Brasil três anos depois, quando reassumiu a direção do jornal. Em 1971, afogado em dívidas, o vendeu. Com outros proprietários e sem o mesmo charme, a UH interrompeu definitivamente a circulação em 1991.
Para Pinky Wainer, filha de Samuel e Danuza Leão, mesmo nos momentos mais duros, o pai sempre foi otimista: “O problema do Samuel é que ele vendia para nós o ‘marketing das vidas’ – e isso é uma coisa que eu passei para os meus filhos, eles estão passando para os deles, meus netos –, que era a melhor das vidas. A gente estava junto, não tinha muito dinheiro, mas ele fazia uma graça, fazia um charme e quando a gente via estava na melhor das vidas”.
Nasce o Corvo
O chargista Lan contou a história da sua mais famosa caricatura, o Corvo Lacerda, encomendada por Samuel Wainer para criticar o uso político que Lacerda fazia da morte do repórter Nestor Moreira, de A Noite, que fora espancado pelo policial Paulo Ribeiro Peixoto, conhecido como Coice de Mula. Wainer pediu a Lan que caprichasse no desenho para passar a impressão de Lacerda como um papa-defunto. Mas o chargista tinha um compromisso às oito horas e vinte minutos daquela noite e não pretendia demorar a sair do jornal. Primeiro, pensou em usar a imagem de um urubu, mas precisaria consultar o arquivo para lembrar exatamente como era o animal. Então, lembrou-se de outra ave associada à morte, o corvo:
“Eu fiz aquele negócio truculento e cheguei ao encontro às oito horas e dezoito minutos, para se ter uma idéia de como corri com este desenho que até hoje, para meu gosto, acho o pior desenho que fiz na minha vida. E foi o que me deu mais notoriedade. No dia seguinte, eu estava com esta carga na consciência: ‘Poxa, o Samuel me pediu para caprichar e eu fiz a droga desse corvo...’ ”. Lan contou que chegou à Redação e encontrou Danton Coelho, presidente do PTB, e Samuel Wainer. Surpreso, foi abraçado energicamente e parabenizado. Para o presidente do partido, o chargista tinha feito um trabalho psicológico genial.
No debate ao vivo, Alzira Abreu explicou que a UH solidificou as mudanças que vinham ocorrendo na imprensa brasileira: “Era uma imprensa partidarizada, que tinha uma linguagem muito agressiva, usava muito adjetivo. Não era financiada pelos partidos, mas se declarava claramente a favor deste ou daquele partido. E Samuel Wainer vai mudar um pouco este modelo”.
Redação plural
A historiadora pontuou que o objetivo de Carlos Lacerda com as campanhas contra a UH não era atingir Samuel Wainer, e sim o presidente Getúlio Vargas. Com a morte de Vargas, a população se volta contra Carlos Lacerda e Wainer recupera seu prestígio. Então, Lacerda começa uma nova campanha contra Wainer dizendo que o proprietário da UH era comunista e que o jornal era um órgão do Partido Comunista.
A Redação da Última Hora, para Milton Coelho da Graça,era uma amostra do Rio de Janeiro: “Tinha gente de todos os pensamentos, tinha de tudo. Tinha comunista, udenista, tinha preto, tinha branco, tinha chinês, tinha o diabo. Era uma Redação democrática pela sua aparência. Ela ficava perto da área de prostituição. Ela tinha até uma aproximação deste tipo com a alma popular carioca”. Para o jornalista, a UH não foi apenas uma revolução na técnica jornalística e nas artes gráficas: “Ela foi uma revolução de espírito da imprensa brasileira. A UH era um jornal moderno, era o Brasil se transformando”.
Dines questionou se 60 anos depois do lançamento da Última Hora a “fórmula” poderia ser adaptada para os dias de hoje. Milton Coelho avaliou que a imprensa perdeu a ousadia na concepção dos jornais: “Se você olhar bem, nossos jornais estão parados no tempo”. Alzira comentou que Samuel Wainer acompanhou as mudanças pelas quais o Brasil passava em seu processo de modernização das instituições e de industrialização. “Os jornais hoje deveriam ter um pouco mais do espírito de Samuel Wainer de ousadia, de criatividade, de vibração”, disse a historiadora. Dines comentou que a imprensa precisa se espelhar na entrega total ao ofício de Samuel Wainer, que “só pensava em jornal”.
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Revolução azul
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 620, exibido em 22/11/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Uma revolução azul. A Última Hora foi um divisor de águas, a mais importante das revoluções que Samuel Wainer fez ao longo da sua vida. O semanário Diretrizes, lançado em seguida à instalação do Estado Novo, conseguiu o milagre de fazer um jornalismo político num ambiente onde a política estava banida.
O vespertino Última Hora antecipou os anos dourados de JK, combinou um jornalismo vibrante, popular, com sofisticação cultural, colocou Nelson Rodrigues ao lado de Vinicius de Moraes, uma dupla impossível e impensável. O grande triunfo deste repórter-estrela que tornou-se dono de uma cadeia de jornais foi justamente a razão de sua queda: os barões da imprensa não queriam um intruso, sobretudo sendo filho de imigrantes judeus.
Graças a Wainer, Getúlio Vargas materializou o seu sonho de voltar à presidência, desta vez nos braços do povo. A entrevista em que se lançou candidato à sucessão de Gaspar Dutra foi concedida a Samuel ainda na condição de repórter do matutino O Jornal, de Assis Chateaubriand. Vargas ganhou a eleição de 1950, a despeito da ferrenha oposição da imprensa da capital e de São Paulo. Para não ser derrubado, precisava garantir ao menos uma parcela de apoio na imprensa.
Aí entra o gênio empreendedor de Wainer: com apoio do Banco do Brasil, monta rapidamente dois jornais, um no Rio e outro em São Paulo, e compra a Rádio Clube do Brasil. Não contava, porém, com a fúria de Carlos Lacerda, ex-amigo e ex-camarada, agora na extrema direita, que viu no sucesso do Última Hora uma ameaça ao seu próprio vespertino, a Tribuna da Imprensa, lançado dois anos antes. Com o apoio maciço da grande imprensa, Samuel sofre uma das mais sórdidas campanhas, quase perde o jornal. Dois anos depois, sitiado por esta mesma imprensa, suicida-se Getúlio Vargas.
Estamos a seis décadas deste episódio que marcou indelevelmente a história da imprensa e a história política brasileira. Agora é possível juntar os fios, fazer comparações, relacionar e entender o cenário, as forças e os personagens desta tragédia. Agora é possível entrever com mais nitidez este fabuloso mancheteiro, figura sedutora e também sufocadora, chamado Samuel Wainer, símbolo de um jornalismo de emoções e de inteligência do qual estamos irremediavelmente afastados.
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