Em artigo exclusivo para o 247, Breno
Altman, diretor do Opera Mundi, argumenta que os protestos contra a
cubana Yoani Sánchez foram uma manifestação democrática legítima; ele
lembra que, em 2007, a claque organizada pelo ex-prefeito do Rio, Cesar
Maia, para vaiar o ex-presidente Lula não gerou a mesma indignação;
Altman diz ainda que, embora a direita tenha planejado a visita de Yoani
como uma apoteose midiática, o episódio acabou demonstrando que a
solidariedade em relação à Revolução de 1959 permanece viva na América
Latina
Por Breno Altman
O direito de protestar faz parte da democracia. Essa garantia inclui
apupos, gritos, gestos, cartazes e até o esculacho. Apenas exclui o
exercício da violência direta, monopólio do Estado em seu papel
regulador das relações sociais. Não se pode classificar, como
modalidades aprioristicamente antidemocráticas, por exemplo, piquetes
grevistas, ocupações de terra e bloqueios de estrada. Muito menos o
recurso à vaia.
O sistema democrático, afinal, não tem como finalidade tornar a
política o reino dos eunucos, mas normatizar o conflito de classes,
partidos e grupos a partir de regras válidas para todos e resguardadas
pelas instituições pertinentes.
Protegido por esse princípio, o então prefeito do Rio de Janeiro,
César Maia, organizou uma claque para vaiar o presidente Lula na
abertura dos Jogos Panamericanos de 2007 e impedi-lo de discursar. A
esquerda aceitou o fato como natural e tratou de mobilizar suas forças
para, na garganta, neutralizar as cornetas conservadoras.
Na semana passada, quando a blogueira Yoani Sanchez chegou ao Brasil,
diversas entidades e agrupamentos progressistas resolveram botar a boca
no trombone, por considerarem insultante a visita de uma dissidente
incensada e financiada pelos Estados Unidos, no eterno propósito de
combater a revolução cubana.
Esses movimentos tomaram várias iniciativas para demonstrar que, a
seu juízo, Yoani era persona non grata. As medidas tomadas, em alguns
momentos, até passaram do ponto, caindo em provocações e deslizando para
o exagero. Os ativistas eventualmente cometeram erros políticos,
correndo o risco da antipatia do senso comum. Agiram, contudo, sob
amparo da mesma Constituição que avalizou os protestos do Maracanã.
Inúmeros oráculos da direita reagiram com fúria descontrolada.
Cerraram fileiras e acusaram os manifestantes de atentarem contra a
democracia, sem pudores de expor sua dupla moral. Boa parte dos que
supostamente se horrorizaram com as vaias contra a escriba, vale
lembrar, vibrou com a armação de Maia e se dedica a estimular qualquer
ação de repúdio, verbal ou física, aos petistas acusados no processo do
chamado "mensalão".
Essa indignação pretensamente democrática dos setores conservadores
exala o odor de sua contumaz hipocrisia. Claro, muitos cidadãos torceram
honestamente o nariz, à direita e à esquerda, pois está sedimentado, em
nossa cultura política, que o confronto é uma aberração da natureza.
Mas a vanguarda reacionária está preocupada com qualquer outra coisa que
não os bons modos.
A direita imaginou que o road show de Yoani Sanchez seria a apoteose
midiática de uma nova voz contra o governo cubano. Acreditou que teria
conforto para revalidar seu ponto de vista sobre o regime fundado em
1959, dando-lhe ares de unanimidade, em um momento no qual as atenções
se concentravam na eleição de Raul Castro para novo mandato presidencial
e no aprofundamento das reformas do sistema socialista.
Essa aposta, além de subserviência ideológica aos Estados Unidos,
voltava-se também para desgastar um aspecto importante da política
internacional brasileira, qual seja, o apoio à economia cubana e à
integração plena do país no bloco latino-americano. Não é à toa que os
valetes da blogueira foram alguns ases da oposição mais iracunda, aos
quais se somou o inefável senador Eduardo Suplicy.
Qual não foi a surpresa dessa gente, porém, quando reparou que não
haveria pacto de silêncio e a empreitada estava sendo enfrentada por
onde passasse sua heroína. O governo não saiu um milímetro de seu papel
institucional, a favor ou contra a blogueira, mas uma fatia da esquerda
resolveu dizer publicamente o que pensava, em alto e bom som.
Bastou para os organizadores da visita reduzirem o número de eventos e
Yoani cancelar sua ida para a Argentina, arremetendo diretamente para a
República Checa. Temia-se que, em Buenos Aires, a recepção fosse ainda
mais calorosa e massiva. O próprio Wall Street Journal, santuário do
pensamento conservador, registrou que a presença da dissidente havia
sido um tiro pela culatra e ressuscitado a solidariedade com a revolução
cubana.
A mesma lucidez faltou a seus pares brasileiros. Como é de praxe, a
imprensa tradicional recorreu à pena de articulistas que, com passado na
esquerda, atualmente cumprem expediente como banda de música da
direita. Outrora essa posição foi preenchida pelo talento político e
literário de Carlos Lacerda, até de Paulo Francis. Infelizmente seus
herdeiros têm poucas luzes e pálidos dotes narrativos, déficit que
parecem compensar com um rancor irracional contra seu lado de origem.
E o ódio costuma ser, como se sabe, parteiro de ideias delirantes. Os
manifestantes chegaram a ser comparados com os camisas-negras de
Mussolini e as tropas de choque nazistas, enquanto Yoani Sanchez foi
citada como equivalente cubana do sul-africano Nelson Mandela. São
afirmações reveladoras de que não há limites para o reacionarismo quando
as ruas ousam desafiar seu modo de ver o mundo.
Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel.
Do 247
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