247 - Quarenta e
seis dias antes de ser assassinado, o ex-presidente dos Estados Unidos,
John F. Kennedy, cogitou um golpe militar contra o ex-presidente
brasileiro João Goulart. A revelação está na versão ampliada do livro "A
Ditadura Envergonhada", de Elio Gaspari, e foi disponibilizada pelo
site Arquivos da Ditadura. Confira abaixo:
Pouco antes de seu assassinato, Kennedy discutiu ação militar para tirar Jango da Presidência
Presidente dos Estados Unidos debateu situação do Brasil e do Vietnã na Casa Branca
Quarenta e seis dias antes de ser assassinado em Dallas,
no Texas, o presidente americano John F. Kennedy indagou, em reunião na
Casa Branca, se os Estados Unidos poderiam “intervir militarmente” no
Brasil para depor o então presidente João Goulart. A informação está na
edição revista e ampliada de A Ditadura Envergonhada, que será lançada em fevereiro pela Intrínseca. A
pergunta de Kennedy é reveladora de como os Estados Unidos cogitaram
uma ação armada que socorreria um golpe no país para derrubar Jango.
Washington se preparava para um cenário de guerra civil, mas, como se
sabe, não foi preciso oferecer mais do que apoio diplomático aos
militares que promoveram o golpe de Estado no Brasil em 31 de março e 1o
de abril de 1964.
A indagação de Kennedy se deu no primeiro dos dois dias
seguidos de reuniões de cúpula do governo americano, em 7 e 8 de outubro
de 1963, quando se discutiu a situação do Brasil e do Vietnã (aos
20min).
No primeiro encontro, Kennedy, Lincoln Gordon, embaixador
americano no Brasil, e outras autoridades debateram o contexto
brasileiro. Os americanos temiam que, além do caos institucional e do
descontrole econômico no país, as propostas de reformas de base
defendidas por Jango fossem implementadas. A reunião deixava claro que
os Estados Unidos estavam preparados para uma ação militar, caso o
governo Goulart aprofundasse a plataforma de esquerda, “fidelista”, e
fosse colocado diante de uma sedição das Forças Armadas.
No segundo encontro, o assunto discutido era outro golpe
de Estado, este prestes a ocorrer, que moldaria a política americana na
década seguinte: o governo decidira apoiar a ação da Central
Intelligence Agency (CIA), que se envolvera com o golpe de generais que
depuseram e mataram o presidente sul-vietnamita Ngo Dinh Diem. Era o
início do atoleiro americano no Vietnã.
A gravação desses encontros foi posta na internet pela
Biblioteca Kennedy há pelo menos um ano e encontrada durante uma
pesquisa em ferramenta de busca. Procurada na semana passada, a
biblioteca não informou a data em que a gravação foi liberada e
disponibilizada na rede. O áudio integra um conjunto de gravações
clandestinas efetuadas pelo próprio Kennedy de suas reuniões desde 1962,
quando, por coincidência, deu início à série gravando um encontro com
Gordon. Nesse dia, o diplomata já afirmava a Kennedy que o golpe militar
era uma opção para se resolver a crise política brasileira.
Os grampos do presidente americano foram desmantelados
logo após o seu assassinato, ainda em 1963, com a ajuda da fiel
secretária dele, Evelyn Lincoln. A existência dessas gravações era
conhecida por poucos. Só em 1975 a família Kennedy liberaria 260 horas
de gravações. Em 1997, descobriram-se mais cinco horas de conversas
gravadas durante a crise com Cuba. Finalmente, em 2001, foi lançado o
livro The presidential recordings, organizado por Timothy
Naftali – em três volumes estão todas as conversas de julho de 1962,
início do grampo, a 21 de outubro do mesmo ano, quando a crise com Cuba
esfriou.
A Biblioteca John Kennedy não fez transcrição oficial da
reunião em que se discutiu a situação brasileira e a vietnamita, o que
obriga os pesquisadores a trabalhar com a versão do áudio existente, que
é ruim. Embora os presentes estejam identificados é difícil identificar
as vozes. Em relação a Kennedy e a Lincoln Gordon, no entanto, não
restam dúvidas.
Na discussão sobre o Brasil, no dia 7 de outubro de 1963,
Lincoln Gordon abriu a conversa com uma introdução sobre a conjuntura
brasileira: a crise iniciada com a renúncia do presidente Jânio Quadros,
em 25 de agosto de 1961, se acentuara. Além do cenário econômico,
abordou-se o nome dos possíveis sucessores de João Goulart, vice de
Jânio que havia assumido a Presidência em setembro em clima de grande
turbulência devido às suas ligações com o sindicalismo e a esquerda.
Após o embaixador falar sobre eventuais parcerias
culturais entre os dois países, Kennedy o interrompeu. “Temos alguma
decisão imediata para pressioná-lo?”, perguntou, referindo-se a João
Goulart. “O que devemos fazer imediatamente no campo político, nada?”,
prosseguiu. Gordon revelou haver dois planos: “Goulart abandona a imagem
[de esquerdista] e resolve pacificamente. Ou talvez não tão pacífico:
ele pode ser tirado involuntariamente”. Antes de concluir, o diplomata
indagou: “Vamos suspender relações diplomáticas, econômicas, ajuda,
todas essas coisas? Ou vamos encontrar uma maneira de fazer o que todo
mundo faz?”.
Desde que os guerrilheiros barbudos de Sierra Maestra
haviam tomado o poder em Cuba, em 1o de janeiro de 1959, os Estados
Unidos intensificaram as ações contra governos comunistas ou
simpatizantes da esquerda. A prática nortearia a política externa
americana por décadas, sobretudo em relação aos países da América
Latina. Era o mundo bipolar da Guerra Fria.
Exatamente um ano antes da reunião na qual se falou da
possibilidade de uma ação militar no Brasil, Kennedy vivera o período
mais tenso de seu governo, quando protagonizou com Nikita Kruschev,
secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética desde 1953, e
Fidel Castro, líder da Revolução Cubana, a crise dos mísseis, na esteira
da fracassada invasão da baía dos Porcos, em Cuba. O plano da CIA de
invadir a ilha havia sido uma das várias tentativas da Casa Branca de
tirar Castro do poder.
No Brasil, o cenário se deteriorara com a ascensão de João
Goulart. Tolerante com indisciplinas no seio militar, Jango governava
encurralado. O governo transparecia sua personalidade indecisa. Além das
dificuldades políticas, a economia patinava. A alta da inflação em 1963
fecharia em 78%.
A instabilidade afetava os interesses americanos no Brasil
— a empresa energética Amforp, no Rio Grande do Sul, fora reestatizada
por Leonel Brizola, governador do estado e cunhado de Jango — e o
próprio presidente brasileiro defendia bandeiras que assustavam os
Estados Unidos. No mesmo 7 de outubro de 1963 em que a cúpula do governo
americano se reunia em Washington para discutir a crise brasileira, no
Rio de Janeiro o governo João Goulart descartava uma medida apresentada
pelo próprio presidente brasileiro ao Congresso, três dias antes, numa
de suas últimas cartadas pela estabilidade: o estado de sítio. Isolado,
Jango desistira da ideia após deixar o país em suspenso por três dias. A
situação só piorou após o episódio.
Para Jango, contudo, não havia motivos para desconfiar de
Kennedy. Julgava-o um aliado. No início daquele ano, Brasília acertara
com Washington um empréstimo avaliado em US$ 398 milhões — dos quais o
governo brasileiro só receberia um quinto do valor. Jango e sua mulher,
Maria Thereza, haviam sido recebidos por John e Jacqueline Kennedy na
Casa Branca, talvez a mais fotogênica das visitas brasileiras à capital
americana, sobretudo pela beleza das primeiras-damas. O último encontro
entre Kennedy e Goulart, que assumiram as respectivas presidências no
mesmo ano (1961), seria em Roma, em julho de 1963. O socorro econômico,
mais uma vez, estava na pauta.
Quatro meses depois da reunião na Casa Branca, Kennedy
seria assassinado, em 22 de novembro de 1963. Nove meses mais tarde,
Jango seguiria para o exílio no Uruguai, em abril de 1964.
Ao ouvir de Lincoln Gordon as alternativas do que fazer no
Brasil, John Kennedy lhe respondeu com uma pergunta: “Você vê a
situação indo para onde deveria, acha aconselhável que façamos uma
intervenção militar?”. Gordon explicou que eles estavam trabalhando com o
cenário de intervenção, caso Jango desse uma guinada à esquerda,
influenciado pelo que chamou de “velhos amigos” — um deles, Brizola.
O plano, segundo o diplomata, fora discutido em
Washington, no Rio de Janeiro e também no Panamá, onde os Estados Unidos
mantinham o comando de suas forças militares para as Américas Central e
do Sul. Mas Gordon alertou que, para tomar a decisão de intervir
militarmente, a Casa Branca deveria esperar por iniciativas mais claras
de que o governo brasileiro realmente virava a proa para um modelo
“fidelista”. Comentou ter conversado com o general Andrew O’Meara, do
comando do Panamá, que o avisara sobre um possível contingente para uma
ação no Brasil com “seis divisões e 90 navios”.
Nascido em Nova York
em 1913, doutor em economia por Harvard, Lincoln Gordon fez parte de
uma geração americana bem-nascida e intelectualizada, que galgou postos
no Estado após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Servira na década
de 1950 na embaixada em Londres e, no mesmo mês da renúncia de Jânio
Quadros, em agosto de 1961, assumiu o posto de embaixador no Brasil.
Desde que chegara ao país, colaborara com a oposição e setores das
Forças Armadas que conspiravam pela queda de João Goulart.
Em agosto de 1963, em telegrama encaminhado ao
Departamento de Estado, Gordon afirmara que “é quase certo que Goulart
fará tudo para instituir alguma forma de regime autoritário”. Em outro
trecho, ele especula sobre a saúde do presidente: “Se Deus é realmente
brasileiro, o problema cardíaco de Goulart, de 1962, brevemente se
tornará agudo”.
O diplomata sempre negou ter participado da trama do
golpe, mas seria desmentido em 1976 pela divulgação, pelo jornalista
Marcos Sá Correa, do Jornal do Brasil, do que ficou conhecido como Operação Brother Sam.
Até sua morte, em 2009, negou também que os Estados Unidos tenham
cogitado uma ação militar que envolvesse o uso de tropas no país.
Todos os presentes na reunião de outubro de 1963 tinham poder e experiência em ações americanas no exterior.
Dean Rusk seria o segundo secretário de Estado mais longevo da política americana.
Uma das vozes mais respeitadas nos anos Kennedy, W.
Averell Harriman, um milionário liberal, ex-embaixador na Inglaterra e
na União Soviética durante a Segunda Guerra, ex-governador de Nova York
, era o número três do Departamento de Estado.
Robert McNamara, ex-presidente da Ford e secretário de
Defesa, teve papel crucial no desenrolar da Guerra do Vietnã (décadas
depois, ele pediria desculpas publicamente pelo conflito). Ele também
estava lá.
E havia ainda Richard Helms, sócio-fundador e diretor da CIA.
A maior ausência, segundo os registros da reunião, foi a
do procurador-geral Robert Kennedy, irmão e braço direito do presidente.
Enquanto em Washington o governo discutia o futuro de um
país na América Latina e de outro na Ásia, no Texas um ex-fuzileiro
naval de nome Lee Harvey Oswald tocava um plano pessoal que mudaria a
história americana. Após retornar de uma rápida e misteriosa viagem pelo
México, Oswald encontrara trabalho num depósito de livros em Dallas.
Dali, ele mataria a tiros o presidente John Kennedy.
No golpe de 1964, a intervenção militar americana acabou
sendo desnecessária. Acertou Lincoln Gordon, que previra na reunião de
outubro de 1963 o desfecho da crise brasileira: o golpe poderia ser
desencadeado sobretudo por indisciplina e divisões nas Forças Armadas. A
perda de apoio do governo Jango, sua indecisão e a traição de alguns
homens de sua confiança contribuíram para a sua deposição. Sem tiros,
intervenção ou guerra civil, o golpe foi encabeçado pelas Forças Armadas
com o apoio de setores da sociedade civil. Triunfou em menos de 48
horas.
Mas um Plano de Contingência preparado a partir
da reunião de outubro estava pronto desde o dia 11 de dezembro de 1963.
Quando a sedição militar começou, no dia 31 de março do ano seguinte,
ele foi posto em prática, resultando na Operação Brother Sam.
No momento em que as tropas rebeladas do general Olympio
Mourão Filho marchavam de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro,
estava à disposição dos golpistas um contingente com porta-aviões, seis
contratorpedeiros, um porta-helicópteros, um posto de comando
aerotransportado e quatro petroleiros com 553 mil barris de combustível.
No dia 2 de abril, com o golpe recém-consumado, veio o pronto
reconhecimento do novo regime pelo presidente Lyndon Johnson, vice que
assumira a Casa Branca após o assassinato de Kennedy. Como é mencionado
na segunda edição de A ditadura envergonhada, revista e
ampliada, “Johnson apoiou o golpe e orgulhava-se disso, mas apenas
seguiu a planilha de Kennedy”. O reconhecimento imediato do novo governo
era a principal sugestão do Plano de Contingência proposto por Gordon.
No Vietnã, a história foi distinta. Conforme decidido na
reunião de outubro de 1963, em 2 de novembro daquele ano o presidente
sul-vietnamita Ngo Dinh Diem e seu irmão foram depostos e assassinados.
Chefe de um governo autocrático e anticomunista sustentado pelos
americanos, Diem foi vítima de mais uma interferência dos Estados Unidos
no país. Começava o inferno americano no Vietnã. A guerra só terminaria
em 1975, com uma derrota histórica do Exército dos Estados Unidos e a
reunificação do Vietnã.
No dia 20 de outubro de 1963, cinco dias antes do golpe no
Sudeste Asiático, duas reuniões revelariam a complexidade e as
anomalias do poder americano daqueles tempos. Numa delas, em Paris, um
agente da CIA encontrava-se com o cubano Rolando Cubela. Cubela
fornecera uma caneta esferográfica Paper Mate envenenada que deveria ser
usada para assassinar Fidel Castro. Era uma das centenas de tentativas
de matar oComandante. Noutra reunião, na Casa Branca, cujo
conteúdo seria divulgado décadas depois pela organização National
Security Archive, Robert Kennedy alertara o irmão presidente sobre o
golpe iminente no Vietnã. “É diferente de um golpe no Iraque ou na
América Latina. Nós estamos intimamente envolvidos nisso”, disse. De
fato, a ação no Vietnã seria muito diferente do modus operandi de um típico golpe latino-americano.
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