André Singer acompanha entrevista de Lula nos tempos em que trabalhava como porta-voz da Presidência (Foto: Wilson Dias/ABr)
Ao combater pobreza com manutenção da ordem, lulismo marcou tendência política
André
Singer expõe alguns paradoxos do governo petista e tece previsões sobre
a possível continuidade do processo iniciado em 2003, com a chegada do
ex-metalúrgico ao poder
Por: João Peres e Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual,
São Paulo – O cientista político e jornalista André Singer lança na
próxima terça-feira (18) um livro que começou a ser gestado cinco anos
atrás, quando resolveu abdicar do cargo que ocupara durante o primeiro
mandato do ex-presidente Lula. “Ao deixar o governo, fiquei com a
sensação de que tinham acontecido coisas muito importantes no país”,
lembra. Mas o trabalho intenso como porta-voz da Presidência não lhe
havia permitido analisar com calma as medidas que vinham sendo tomadas
pelo governo – e seus efeitos sobre a sociedade brasileira.
Foi só ao reassumir sua cadeira de professor na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 2007,
que André, agora reconvertido em pesquisador, pôde se debruçar sobre os
dados da realidade e depurar o que até então era apenas uma intuição. “À
medida que comecei a estudar, fui percebendo que não estávamos vivendo
uma simples passagem, mas um novo período.”
Foram essas pesquisas teóricas e estatísticas que, sistematizadas pelo autor, acabaram por se converter em Os Sentidos do Lulismo – Reforma Gradual e Pacto Conservador,
que a Companhia das Letras traz aos leitores do país em 280 páginas e
R$ 29,50. Antes de virar livro, porém, as hipóteses do cientista
político haviam sido testadas em outras publicações, como a revista Novos Estudos, mantida pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e a revista piauí. Muitos debates acadêmicos também o precederam.
De acordo com André Singer, o lulismo pode ser resumido num processo
exitoso de combate à pobreza que, para melhorar a condição de vida da
parcela mais pobre da população, não precisou atentar contra a ordem
econômica vigente. As políticas adotadas pelo governo acabaram por criar
o que o autor chama de "realinhamento eleitoral" no país, e que é sua
principal tese: o sucesso de Lula ao criar condições para a ascensão de
30 milhões de brasileiros à classe C marcou uma tendência que deve
permanecer por um bom tempo, de maneira que dificilmente candidatos e
partidos que não assumam a bandeira do combate à pobreza poderão
eleger-se para cargos de relevância nacional.
André Singer recebeu a Rede Brasil Atual em
sua pequena sala de professor da USP, em meio a livros e alunos pedindo
orientação, para esmiuçar suas ideias e responder algumas perguntas
sobre como (e se) o lulismo seguirá impactando a política brasileira. O
autor explica as comparações que são feitas entre Lula e o presidente
norte-americano Franklin Delano Roosevelt, expõe alguns paradoxos do
governo petista e tece previsões sobre a possível continuidade do
processo iniciado em 2003, com a chegada do ex-metalúrgico ao poder.
Como
é pra você – que é professor universitário e trabalhou com Lula –
analisar um governo do qual fez parte? Como separar as duas coisas?
É um assunto complexo. Embora eu esteja na carreira acadêmica desde
1990, eu mantive até minha volta de Brasília, em 2007, uma atividade
profissional paralela como jornalista. E eu acabei me engajando no
trabalho de porta-voz da Presidência como jornalista, não como professor
universitário. Fui convidado por ser jornalista, porque é uma atividade
de comunicação, normalmente exercida por jornalistas. Portanto, eu
participei do governo como jornalista e faço o trabalho de análise como
cientista político. A não ser nos períodos em que exerci cargos de
confiança em empresas de comunicação – porque aí me afastei, por razões
profissionais –, sempre fui militante político. Nunca tive cargos de
direção, mas militei no movimento estudantil, depois entrei no PT logo
após sua fundação, ajudei na construção do partido como militante de
base, e sou membro até hoje. Aí surge uma questão mais difícil: como
compatibilizar o trabalho científico com a militância?
É claro que pode haver tensões, porque o trabalho de análise tem que ser
objetivo: existe o compromisso de apontar aquilo que você vê, sem
distorções. E às vezes aquilo que você vê como cientista político não é
muito grato para o militante, que pode não gostar de certas coisas que o
intelectual vê. É possível compatibilizar essa dualidade acreditando no
papel construtivo dos intelectuais, ou seja, acreditando que o
pensamento crítico dos intelectuais pode contribuir para a mudança
social. Acho também que é uma responsabilidade dos intelectuais
intervirem na vida pública, porque o conhecimento que é gerado nas
universidades, nos centros de pesquisa, tem que servir pro
enriquecimento do debate público. Em certa medida, você pode observar a
qualidade do debate público dos países, por meio da maior ou menor
intervenção ou da presença dos intelectuais.
Me
chamou a atenção no livro a comparação que você faz entre Lula
(2003-2010) e Franklin Delano Roosevelt (1933-1945). Qual é o sentido
dessa comparação?
Tem duas coisas. O realinhamento eleitoral, tese que eu defendo para o
lulismo, é um conceito que vem da ciência política americana. Um dos
exemplos mais claros de realinhamento é o que aconteceu em 1932, nos
Estados Unidos, com a eleição do Roosevelt. Sua vitória trouxe para a
classe trabalhadora para dentro do Partido Democrata. A história dos
partidos políticos americanos é um pouco diferente da nossa, porque o
Partido Republicano, na origem, no século XIX, na época do Abraham
Lincoln, era um partido que estava à esquerda do Partido Democrata.
Depois houve uma inversão. Nesse período da crise de 1929, da Grande
Depressão, Roosevelt começa a desenvolver políticas fortemente
populares, atrai o apoio da classe trabalhadora e dá início a um
processo de realinhamento eleitoral, que eu desconfio dura até 1968.
Portanto, foi um ciclo de 36 anos, nos Estados Unidos.
O que eu pensei em relação ao Brasil, imediatamente, foi que as eleições
de 2006 pareciam um pouco com esse processo. O pleito brasileiro de
2006 se parece ao norte-americano de 1936. Você teve, antes, a vitória
de um partido da oposição, porque havia crise. No Brasil, ainda não era
uma grande crise, mas depois viria a ser uma recessão tão importante
quanto à quebra de 1929. Nós tínhamos aqui a crise do final dos anos
1990, começo dos 2000, que pegou a Argentina, havia muito desemprego no
Brasil, todo aquele processo de neoliberalismo na América do Sul. Eu
acho que a vitória do Lula em 2002 é o resultado disso. Só que daí veio a
surpresa. Começa a haver um política, que não é nem uma política
neoliberal, mas também não é uma política de ruptura, como o PT
originalmente tinha pensado. É uma coisa nova, que acabei chamando de
lulismo. Eu acho que essa política gerou um tipo de realinhamento,
parecido com o de Roosevelt, porque trouxe para o Lula e depois para o
PT os setores populares do Brasil. Finalmente, os setores populares se
aproximaram de uma opção mais à esquerda.
A segunda coisa que me levou a pensar na comparação com Roosevelt foi o
que aconteceu na crise de 2008. A partir do segundo mandato, foi visível
que houve uma inflexão. Eu não acho que esta tenha sido tão grande
quanto alguns analistas chegam a pensar, como se fossem dois mandatos
diferentes. Todas as linhas programáticas já estavam colocadas. Mas no
segundo mandato efetivamente houve um certo reequilíbrio dos elementos
da equação, em que se sobressaíram mais os elementos desenvolvimentistas
em detrimento dos elementos mais neoliberais. Então, o segundo mandato
foi marcado pelo PAC, ou seja, uma opção por aumentar o gasto público em
obras de infraestrutura, que geravam muito emprego e ao mesmo tempo
favoreciam o crescimento. Isso lembra um pouco o New Deal. Quando veio a
grande crise, em 2008, que aí sim nós estamos agora diante de uma crise
– dizem os economistas, a maior desde 1929 –, eu achei que a maneira
como o governo enfrentou a recessão era um dado novo: conseguiu, por
exemplo, utilizar os bancos públicos pra obrigar o setor financeiro a
liberar créditos, num momento em que os créditos estavam bloqueados e o
bloqueio do crédito faz a economia parar.
Ao mesmo tempo, o governo optou por um caminho arriscado, mas que deu
muito certo, de estimular o consumo, sobretudo o consumo das camadas
populares, por meio de novos aumentos do Bolsa Família, do salário
mínimo e até mesmo desse crédito que já mencionamos, além da própria
palavra do presidente, que se arriscou dizendo pros consumidores
continuarem comprando. Isso podia ter levado a uma quebradeira geral, se
não desse certo. Como deu certo, o resultado foi que o Brasil
conseguiu, por assim dizer, driblar essa grande crise com custos
relativamente pequenos. É verdade que a economia não cresceu em 2009,
mas cresceu quase 8% em 2010. Então, houve um vale temporalmente curto.
Com isso, se conseguiu manter as taxas de emprego. Isso criou, no final
de 2010, uma sensação de euforia, e nessa sensação de euforia levou
várias pessoas a comentarem que talvez nós tivéssemos entrado um período
semelhante ao New Deal. Achei a comparação interessante.
Depois, continuei trabalhando no assunto e acabei chegando a uma
conclusão um pouco diferente. Acho que na verdade não temos um processo
do tipo New Deal, pela seguinte razão: a queda da desigualdade não é
rápida o suficiente para produzir, num país como o Brasil, que tem uma
desigualdade muito grande, uma espécie de igualdade básica. Quando falo
em igualdade básica – tudo isso tem que ser bem qualificado, porque pode
ser mal entendido – não estou falando em nada parecido com o
socialismo, nem mesmo o socialismo real, ou seja, uma igualdade mais
radical: estou simplesmente falando numa certa redução da desigualdade
pra padrões talvez europeus, algo dessa linha.
Cheguei à conclusão, depois de ler bastante e consultar os dados, que o
ritmo em que está caindo a desigualdade não permite a comparação com o
New Deal. Não está acontecendo isso. Por isso que acabei chamando de
“sonho rooseveltiano”. Acho que se assemelhar ao governo Roosevelt é um
desejo, e é um desejo interessante pro Brasil, porque coloca no aumento
da renda a questão da redução da desigualdade. Do jeito que as políticas
atuais estão desenhadas, a redução da desigualdade será lenta. Daí o
subtítulo do livro: Reforma gradual e pacto conservador, porque as
reformas são lentas e, portanto, dado o patamar de desigualdade do
Brasil, demoraria mais uma geração até a gente chegar, mantendo esse
ritmo que houve entre 2003 e 2008, à queda da desigualdade.
O
senhor identifica três momentos nos oito anos do lulismo: o programa
Bolsa Família, valorização do salário mínimo e crescimento do mercado
interno. O governo Dilma Rousseff já encontrou um quarto momento?
Ainda é cedo pra falar em quarto momento, mas diria que há um elemento
novo em relação ao processo anterior, que é a posição que o governo
tomou em relação aos bancos no primeiro semestre de 2012. Isso é
resultado de uma decisão estratégica, que foi tomada lá atrás, ainda
antes da posse da presidente Dilma, que foi a substituição do presidente
do Banco Central. A troca de comando permitiu ao governo enfrentar
mesmo o capital financeiro, numa posição de força, que até então nunca
tinha tido. Se você pensar, de alguma maneira, já tinha havido um sinal
disso, quando, contrariando todo o mercado, o BC decidiu começar a
redução de juro em agosto do ano passado, quando o mercado não esperava.
Outros aspectos não foram alterados. Por exemplo, houve um ajuste fiscal
enorme no primeiro momento do governo Dilma, houve um aumento dos
juros, pisou-se forte no acelerador da economia. Agora, o embate com os
bancos, a gente não sabe onde isso vai dar porque parece que os bancos
têm resistido. Efetivamente, não está muito claro quanto as taxas
caíram, mas é verdade, por outro lado, que a Selic está mais baixa do
que sempre foi, e eu espero que seja uma redução duradoura.
Em terceiro lugar, houve este movimento de concessões de rodovias e de
ferrovias, e parece que de portos, em um segundo momento. Já tinha
havido concessões de aeroportos, o que é de alguma maneira é uma
política privatizante, que também mantém esse aspecto híbrido do
lulismo.
Por fim, o governo da presidenta Dilma não deixou que as más condições
da economia nesses primeiros dois anos afetassem os programas sociais.
Aparentemente, os programas sociais foram preservados e até ampliados, o
que, evidentemente, em primeiro lugar, é bom, é positivo, e em segundo
lugar confirma as previsões de que esse é o compromisso principal do
lulismo em relação à sua base social. Mas havia uma expectativa de que
ocorressem avanços maiores, por exemplo, com o envio pro Congresso das
chamadas consolidações das leis sociais, que é um passo importante
porque transformará esses avanços num direito reconhecido na
Constituição. Enquanto isso não acontecer, embora eu seja da opinião de
que alguns deles sejam praticamente irreversíveis, não estando na lei,
sempre poderá revertido por uma mudança de conjuntura econômica ou de
governo, que a gente não sabe quando ou como pode ocorrer.
Até que ponto a receita lulista de combate à pobreza com manutenção da ordem pode ser mantida?
Acho que o elemento-chave é a questão da conjuntura econômica. É saber
qual é a sustentabilidade das condições econômicas que permitiram a
realização dessa política. Não há nenhuma resposta para isso. É
impossível saber quando e como vai ocorrer a próxima grande crise. O que
a gente sabe é que o capitalismo funciona por crises periódicas. Isso
faz parte da natureza do sistema, então é de se esperar que em algum
momento ela ocorra. Mas isso pode ocorrer daqui a 20 anos.
Num momento de crise, é provável que as contradições de classe se tornem
mais graves. Isto é o que a ciência social nos ensina. Numa situação de
agudização do conflito de classes, uma política de pactos se torna mais
difícil. Esse é um elemento pra gente prestar atenção.
As classes sociais estão em movimento: vamos reduzir juros ou não, vamos
aumentar o gasto público ou contê-lo, aumentar a taxação sobre os ricos
ou não, o Estado vai controlar o câmbio ou deixá-lo completamente
livre, resultando em problemas pra indústria? Quando você observa com
atenção todas essas questões, as classes estão em movimento pressionando
o governo de um lado pro outro. Os empresários, o capital, visivelmente
empurrando em uma direção, e os trabalhadores, as centrais sindicais,
tentando empurrar em outra. E o governo vai arbitrando, como tem sido
típico do lulismo. O que vai acontecer e a durabilidade desse modelo
depende da correlação de forças. O que está hoje parecendo que há um
certo equilíbrio.
Sem
a crise internacional – que levou o governo a tomar medidas que
estimulassem o mercado interno – e sem o mensalão – que provocou um
distanciamento do eleitorado de classe média –, o lulismo teria tido o
mesmo fim?
Acho que sim. Isso é até um ponto que gostaria de insistir. De certa
maneira, o que procuro mostrar no livro é justamente isso: o lulismo
começa a se gestar no primeiro mandato, e logo no começo, porque é uma
combinação surpreendente de elementos antagônicos. Essa política
macroeconômica conservadora, que houve no começo, de aceitar a
dependência técnica do BC – que não é técnica, na verdade, dependência
política –, o aumento dos juros, do superávit primário, o câmbio
flutuante, todo esse conjunto de coisas foi complementado com políticas
que vão exatamente em direção oposta, ou seja, transferência de renda
pros setores mais pobres, expansão do crédito pras camadas de baixa
renda, aumento do salário mínimo... Tudo isso gerando uma expansão do
emprego.
Essas políticas não combinam, e porque elas não combinam ninguém
imaginou que pudessem ser feitas ao mesmo tempo. Sua pergunta pode levar
uma interpretação de que o lulismo foi meio casual, que foi mais o
resultado de impactos externos do que propriamente uma política. Eu não
acredito nisso. Você não faz nada da sua cabeça, claro, tem de fazer o
que é possível. Então, evidentemente, essa política lidou com os dados
da realidade.
Mas os resultados obtidos pelo lulismo estavam previstos desde o começo?
Não sei dizer se estava programado. Acho que não. Pelo menos, não estava
escrito em lugar nenhum. Daí que falo tanto na coisa da surpresa. As
pessoas demoraram a perceber, porque era surpreendente. Eu acho que não
estava escrito, mas você olhando em retrospecto vai vendo como foram
tomadas decisões políticas que resultaram nisso. Se isso era plenamente
consciente, não saberia dizer, mas o que quero insistir é o fato de que
houve decisões políticas. Isso incide sobre o sentido do lulismo. Ele
não é meramente um resultado de acasos, que poderiam acontecer com um
outro governo, com outro partido, mesmo com outro presidente. Acredito
que é importante destacar isso para a justa compreensão daquilo que
estamos vivendo. O que nós estamos vivendo é um momento muito
interessante pro Brasil, com aspectos progressistas e outros
conservadores: uma situação contraditória, mas muito rica, muito
interessante e por vezes muito difícil de entender, e que do ponto de
vista da esquerda apresenta certos paradoxos que precisam ser bem
decifrados.
Qual é o principal paradoxo?
Não diria que há um principal, mas esse conjunto de contradições sobre
os quais falamos constrói um panorama ambíguo, que você olha de um lado e
parece regressivo, de outro parece plenamente progressista. Cria-se uma
situação difícil de compreender, diante da qual você tem dificuldade de
se posicionar. Como acho que pra mudança do Brasil, no sentido de mais
igualdade, é importante ter uma esquerda atuante, gostaria de contribuir
para uma melhor compreensão desta situação atual.
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