Onde está o dinheiro?
Neste momento, o quadro do julgamento do mensalão parece claro. Joaquim
Barbosa sustenta aquilo que o ministério público define como
“organização criminosa” dedicada a ”comprar” votos para o governo. Não
há apoio político. Não há verba de campanha. Há “propina”, diz Joaquim
Barbosa.
O voto de Joaquim merece elogios e reconhecimento. É um voto competente,
bem articulado e coerente. Não faltam exemplos nem casos. Discordo de
seu esforço para criminalizar a atividade política. Fala em “interesse
dos corruptores” para definir a ação da bancada do governo no Congresso. Toda partilha de verbas é definida
como “vantagem indevida.” Este é o preço que ele paga pelo esforço em
despolitizar uma discussão que é politica em todos os sentidos.
Mas é preciso admitir que Joaquim Barbosa está inteiramente convencido
daquilo que diz. Não faz teatro nem joga. Não quer agradar a mídia –
embora, em grande maioria, ela esteja adorando o que ele diz e sustenta.
Isso lhe garante um tratamento positivo. Ao contrário do que ocorria em
passado recente, quando Joaquim entrou em choque com Gilmar Mendes.
A julgar pelo aconteceu até agora, parece claro que, salvo casos
menores, os réus mais importantes – como José Dirceu, Delúbio Soares,
José Genoíno – têm grandes chances de serem condenados a penas severas.
Está tudo resolvido? Não acho.
Até agora não encontrei uma única notícia do dinheiro que, desviado no
Visanet, e também junto a empresários, nem todos chamados a sentar-se no
banco dos réus, foi recolhido pela “organização criminosa”. Não acho
uma notícia irrelevante.
É frustrante. Como dizia o editor do Washington Post, o jornal do Watergate, ao estimular seus repórteres: ”Follow the money”
Os petistas dizem que foram recursos para campanha, em especial para as
eleições municipais de 2004. As 317 testemunhas ouvidas no inquérito
dizem a mesma coisa. A leitura do relatório da Polícia Federal – que
descreve com maestria o milionário desvio no Visanet – não contém uma
palavra sobre isso. Diz textualmente que foi possível encontrar a
origem mas não se chegou ao destino do dinheiro.
Joaquim diz e repete, ora com ironia, ora com indignação, mas sempre com
fatos e argumentos, que não acredita que os recursos se destinavam a
campanha eleitoral. Rosa Maria Weber, em seu primeiro voto, declarou que
achava essa informação irrelevante.
Eu acho que o debate é mais importante do que parece. Ele permite
demonstrar quem avançou o sinal, quem não fez o combinado pelas regras
informais de nosso sistema político.
Isso não diz respeito apenas ao julgamento de hoje, mas ao funcionamento
da democracia no país. Nossas eleições são limpas há muito tempo porque
são disputadas numa ambiente de liberdade, no qual cada eleitor pode
fazer sua escolha sem pressões indevidas.
Os pleitos expressam a vontade popular e não vejo nenhum motivo para
suspeitar de seus resultados. Não há votos comprados nem fraudados em
escala significativa.
Mas depois de PC Farias, o saudoso tesoureiro de Fernando Collor, nós
sabemos que é preciso ser muito hipócrita para fingir que o
financiamento de campanha, de qualquer partido, antes e depois do
mensalão, é uma operação limpa. Ali se mistura o caixa 2 de empresas, o
dinheiro da corrupção, e também o dinheiro que, mesmo de origem quente,
precisa ser esfriado no meio do caminho.
Se houvesse vontade política para corrigir as imensas imperfeições e
desvios, isso já teria sido feito. Mas sempre que surge essa
oportunidade, ela é barrada por falta de interesse político. É mais
interessante tirar proveito de uma denuncia em vez de procurar a origem
dos erros. O mais recente projeto de reforma eleitoral, elaborado pelo
deputado José Fortunatti, do PT gaúcho, foi sabotado alegremente pela
oposição no ano passado. Previa, como nós sabemos, o financiamento
público exclusivo de campanha, que proíbe a ação dos corruptores na
distribuição de verbas para os partidos. Não há lei capaz de impedir a
prática de crimes. Mas uma boa legislação pode desestimular as más
práticas. Pode criar regras realistas e não um mundo aberto para
falcatruas e irregularidades. A mesma oposição que agora pede guilhotina
para os petistas é a primeira a manter as regras que alimentam o
ambiente de abuso e desvio.
Este é o jogo do moralismo. Joaquim Barbosa pode não fazer jogo.
Mas ele existe e está aí, à frente de todos.
Após sete anos de investigação, não se encontrou um rastro do dinheiro.
Você pode achar que os recursos foram lavados e se perderam nos esquemas
de doleiros e enviados para o exterior. Também pode achar que foram
lavados e entregues aos partidos aliados do PT, como disseram os
advogados da defesa nas já longínquas manifestações dos primeiros dias.
O certo é que a Justiça quebrou o sigilo bancário e fiscal dos acusados e
nada encontrou. O rastreamento não levou a nada. Não há sinal de
enriquecimento indevido no patrimônio de nenhum dos réus.
Não tenho procuração para atestar a honestidade de ninguém. (Só a minha).
Mas não é estranho que não apareça um centavo gasto de forma ilícita?
Como é que o tesoureiro Delúbio Soares continua morando no mesmo flat modesto no centro de São Paulo?
Por que José Genoíno, combatente brasileiro que sempre irá merecer
homenagens pela coragem de assumir as próprias ideias, muitas
inconvenientes a seus interesses, continua residindo na mesma casa no
Butantã, em São Paulo?
Apontado como chefe da “organização criminosa”, falta explicar o que
Dirceu obteve com seus superpoderes de ministro-chefe da Casa Civil.
Também falta outra coisa. O Visanet é um caso comprovado de troca de
favores com dinheiro público. Mas outros casos são fiascos. Marcos
Valério cansou de prometer o que não podia entregar. Não foi só o Banco
Mercantil. Um assessor dele me garante que Valério prometia até entrar
na negociação da licitação da transposição do São Francisco. As obras –
que seguem a passo de tartaruga — acabaram com os militares. É certo que
oferecer vantagem indevida já é crime. Mas vamos combinar que não é a
mesma coisa.
Com seu voto articulado, com exemplos e histórias, Joaquim Barbosa está
levando o julgamento. As descrições e diálogos ajudam a dar
dramaticidade a seu voto.
Mas é uma questão de convicção e convencimento. Pela jurisprudência que
parece dominar a maioria do STF, estes elementos parecem suficientes.
Concordo que ninguém chama fotógrafos para receber uma mala de dinheiro.
Mas o bom senso recomenda admitir que a recíproca não pode ser
verdadeira. A falta de provas não pode ser desculpa para condenação
apressada e portanto errada.
Essa distinção separa a justiça do moralismo, recurso típico daquelas
forças que tem dificuldade de conviver com a democracia e procuram
atalhos para escapar da soberania popular.
Apontado como mensaleiro porque recebeu um cheque de 100 000 reais de
Marcos Valério para sua campanha, o deputado Roberto Brant, do DEM
mineiro, foi absolvido pelo Congresso por uma votação folgada. Não foi
indiciado no mensalão, embora até pudesse, não é mesmo?
Bom político, lúcido e corajoso, Brant explicou, certa vez, ao
jornalista Sérgio Lirio que o moralismo interessa “aos grupos que
controlam o Estado brasileiro, independentemente de quem
esteja no governo. São herdeiros dos privilégios seculares
que o Estado distribui. A sociedade brasileira é injusta
dessa forma porque o Estado é um agente da injustiça. Esses
grupos não querem reforma de coisa nenhuma. O moralismo só
interessa aos grupos que querem mobilizar o Estado
brasileiro, ou pelo menos o sistema político brasileiro,
para não deixar que ele opere com liberdade. Isso já aconteceu
outras vezes. Quando o Juscelino (Kubitschek) começou a mudar
o Brasil, aquilo assustou tremendamente as elites urbanas. O
resultado foi a criação de uma série de escândalos que a
história provou ser completamente infundada, inconsistente
e falsa. Todos os personagens morreram pobres. Depois veio o
quê? Jânio Quadros, apoiado pela opinião pública. Opinião
construída pelo (jornalista Carlos) Lacerda, pela UDN nos
grandes centros urbanos. Em São Paulo, inclusive. Foi lá que ele
venceu. E deu no quê? Desorganização, populismo e aventura.
Depois do Jânio, veio o golpe militar. Como tachar de corrupto
um partido inteiro, o sistema de forças inteiro? Isso é falso.
Há políticos que desviam de conduta no PT, no PFL, no PSDB. A
agenda do moralismo não leva a nada. Ou leva a coisas piores.”
Paulo Moreira LeiteJornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em Washington.
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